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Found Footage: O ataque dos falsos documentários de horror

Baixo custo de produção, popularização da tecnologia e consumo de vídeos amadores são ingredientes que alimentam fenômeno do mercado cinematográfico

TEXTO Rodrigo Carreiro

01 de Janeiro de 2014

'Cloverfield', filme de 2008, é um dos mais conhecidos do subgênero

'Cloverfield', filme de 2008, é um dos mais conhecidos do subgênero

Foto Divulgação

Ficção e documentário são as duas categorias amplas que dividem a produção internacional desde o nascimento do cinema. Aparentemente, constituem filões excludentes entre si. Só aparentemente. Ao contrário do que pode parecer, o espaço limítrofe entre ficção e não ficção nem sempre é claro. Existe consenso entre críticos e pesquisadores de cinema em torno da ideia de que uma pequena porção de filmes pode apresentar dificuldades de indexação. O mais significativo exemplo disso está num subgênero do cinema de horror contemporâneo: o falso documentário.

Esses filmes são parte integrante de um ciclo de produção chamado (de forma inexata, aliás) pela crítica norte-americana de found footage (em português, algo como “filmagens encontradas”). Eles consistem em realizações que combinam forma documental e conteúdo ficcional. Em outras palavras, os found footage de horror são construídos, parcial ou totalmente, a partir de falsos registros amadores de fatos extraordinários. A estilística documental utilizada nesses filmes valoriza certa imperfeição formal, de modo a gerar no espectador a ilusão (muitas vezes consentida) de que cada um deles constitui um documento histórico – um registro não encenado de um pedaço de realidade.

Entre os títulos mais conhecidos do subgênero estão A bruxa de Blair (Eduardo Sánchez e Daniel Myrick, 1999), [Rec] (Jaume Balagueró e Paco Plaza, 2007), Cloverfield (Matt Reeves, 2008), Diário dos mortos (George Romero, 2007) e Atividade paranormal (Oren Peli, 2007). Mas o fenômeno extrapola em muito essa meia dúzia de títulos famosos. Graças a uma série de razões que incluem o baixíssimo custo de produção, a proliferação de dispositivos de registro de imagem e som a preços acessíveis, e a toda uma cultura audiovisual contemporânea que combina o consumo regular de vídeos amadores e a exposição da intimidade, através de plataformas como o YouTube, os filmes de found footage caíram nas graças de produtores e cineastas e têm sido lançados às centenas.

Seja com milhões de dólares financiados por grandes estúdios de Hollywood ou com a câmera emprestada por um amigo, falsos documentários de horror vêm sendo feitos em países como Índia, Brasil, Noruega, Espanha, Dinamarca, Austrália, Costa Rica, França, Alemanha, México e Bélgica, além dos Estados Unidos. Alguns títulos ganham lançamentos com extravagantes estratégias de marketing e são exibidos em cinemas de luxo; outros têm sido disponibilizados timidamente através da internet, quase sem divulgação.

O que mais impressiona é o tamanho do fenômeno: cruzando dados obtidos em bancos de dados de registro cinematográfico (Internet Movie Database, Box Office Mojo e Amazon) com consultas ao vasto fórum de discussão do IMDB (frequentado virtualmente por 17 milhões de usuários), é possível confirmar o lançamento, de 2007 em diante, de pelo menos 250 falsos documentários de horror em longa-metragem. Quatro minisséries de TV e dois games eletrônicos também recorreram a essa estratégia narrativa nesse período.


Sucesso mundial do filme A bruxa de Blair, de 1999, estabeleceu novo status ao gênero.
Foto: Divulgação

PIONEIRISMO
O uso da forma documental acoplada a enredos ficcionais inseridos no gênero horror existe historicamente desde 1980, ano em que foi lançado o pioneiro filme italiano Holocausto canibal, de Ruggero Deodato. Nos 20 anos que se seguiram, meia dúzia de lançamentos ocasionais deu sequência ao formato, que ainda não podia ser considerado um subgênero fílmico. Estatisticamente, a produção desse tipo de filme só veio a ganhar esse status a partir do sucesso conquistado por A bruxa de Blair, em 1999.

Combinando a textura estilística típica dos documentários observacionais dirigidos por norte-americanos e franceses na década de 1960, com uma estratégia de marketing engenhosa, que usou a internet para reforçar o caráter de registro documental das imagens e sons do filme e, assim, apagar os indícios capazes de auxiliar os espectadores na indexação da obra como uma ficção, A bruxa de Blair se tornou o quarto filme de horror mais assistido de todos os tempos. Realizado por um grupo de estudantes de cinema, pelo custo minúsculo de US$ 30 mil, ele inspirou tanto grandes estúdios de Hollywood quanto cineastas independentes de todo o mundo: sim, era possível filmar com equipamento e atores amadores, ter o resultado exibido em grandes cadeias de cinemas, chamar a atenção da crítica e fazer muito dinheiro.

Parte do segredo do sucesso do longa-metragem – e também da onda de curiosidade que envolve hoje o lançamento sucessivo de tantos found footages – tem a ver com a estratégia usada para promover aquele título. Nem a bruxa do título e tampouco o sumiço dos protagonistas eram reais. No entanto, os diretores não queriam que seus futuros espectadores soubessem disso. Dessa forma, ajudaram a planejar uma campanha de marketing viral que tinha a intenção de confundir uma parte do público a esse respeito. Meses antes do lançamento de A bruxa de Blair, um site construído por eles alimentou a suposta veracidade do enredo. Jornais reproduziram a história e, a partir daí, a confusão quanto ao caráter ontológico do seu conteúdo ganhou vida própria, espalhando-se pela internet.

O filme seria uma edição (um letreiro exibido no início da projeção explicita isso, mas não explica quem seria responsável pela montagem do material, o que evidencia a tentativa deliberada dos diretores do filme no sentido de escamotear a instância narradora) dos registros brutos captados pelas duas câmeras que estiveram em poder deles durante o desaparecimento. Os registros – rolos de celuloide no formato 16 mm e fitas de vídeo – teriam sido encontrados pela polícia, durante buscas na floresta, um ano depois do sumiço.

A estratégia alcançou o resultado desejado. Muitos espectadores pagaram para assistir ao que pensavam ser um documentário real. Essa parte da plateia não sabia que o filme era, de fato, uma ficção produzida, encenada e editada usando convenções estilísticas do documentário – e, para aumentar a confusão, promovida como um. Aí veio a maior surpresa para os envolvidos: depois que a “farsa” foi revelada, curiosamente, o interesse do público não diminuiu. A atenção despertada pela estratégia fez o lançamento alcançar índices inéditos de arrecadação para um filme independente.


Atividade paranormal, que estreou em 2007, já está na quarto lançamento. Foto: Divulgação

O sucesso comercial de A bruxa de Blair não passou despercebido por diretores e produtores. A proliferação de câmeras de vídeo analógicas de baixo custo e a rápida evolução dos equipamentos digitais de gravação de imagens (inclusive telefones celulares) ajudaram a baixar ainda mais os custos de realização. Sem necessidade de usar dispendiosas câmeras de 35 mm, sem altos salários de atores famosos, sem necessidade de construir cenários e outros fatores que encarecem o orçamento, torna-se possível realizar um found footage de horror com valores acessíveis à maioria dos cineastas, nos mais variados países.

FILMES SUJOS
Essas condições incentivaram a produção e lançamento de ficções codificadas como documentários no mundo inteiro. Cineastas respeitados, como George Romero, embarcaram na tendência. Um estúdio norte-americano de pequeno porte, chamado Asylum, passou a lançar regularmente falsos documentários no mercado estadunidense de vídeo doméstico, sempre com orçamentos inferiores a US$ 100 mil. Entre 1999 e 2007, a produção de falsos documentários no estilo found footage tornou-se regular, explodindo de uma vez por todas a partir daquele ano, quando foram lançados dois filmes de grande sucesso realizados dentro do formato narrativo: Cloverfield e Atividade paranormal.

Além desses dois filmes, um criativo longa espanhol chamado [Rec], dirigido por Paco Plaza e Jaume Balagueró, introduziu planos-sequência inovadores de até 17 minutos e mixagem de som calculadamente elaborada para “sujar” a trilha de áudio em pontos específicos do enredo, de forma a não atrapalhar a exposição da estória narrada. [Rec] estabeleceu o paradigma a partir do qual títulos como Filha do mal (espécie de variação do clássico O exorcista refeito em estilo found footage) e Apollo 18 (que levou os falsos documentários de horror até a Lua) levaram multidões de cinéfilos ao cinema.

Pesquisadores tentam explicar esse sucesso por uma teoria que tem a ver com o efeito de real produzido por imagens e sons realizados sob os estímulos do amadorismo e da intimidade. Via de regra, um falso documentário de horror adota o ponto de vista narrativo de alguém que testemunha o acontecimento extraordinário. A posição do observador pode variar (em alguns filmes o ponto de vista é da vítima; em outros, de uma testemunha; há casos em que o registro é providenciado pelo agressor, e filmes em que o ponto de vista transita entre as três opções anteriores), mas algo nunca varia: o dispositivo de registro (a câmera e o gravador de sons).

Dessa forma, o estatuto de documento agregado aos registros imagéticos e sonoros pela estilística do documentário não apenas adiciona nova dose de realismo à trama, mas também sugere a ilusão de que o espectador presencia um recorte da intimidade de alguns personagens ao qual normalmente não deveria ter acesso. A identificação do espectador com esses últimos é, assim, reforçada. Esse desejo voraz e voyeur, estimulado pela cultura de consumo do vídeo amador desta época, pode ajudar a explicar a proliferação em massa desse subgênero.

FOUND FOOTAGE EM 10 FILMES

Canibal holocausto (1980)
Antropólogo encontra material filmado por documentaristas desaparecidos na Floresta Amazônica e descobre o segredo sangrento que envolve o lugar. Foi censurado porque muita gente acreditou que os atores tinham sido mortos de verdade durante a filmagem.

Aconteceu perto da sua casa (1992)
Produção belga de baixo orçamento acompanha o trabalho de equipe de filmagem que documenta crimes cometidos por um serial killer. Filme pioneiro, cerebral, mais preocupado em discutir a escalada de permissividade moral na sociedade do que em dar sustos.

A bruxa de Blair (1999)
Três estudantes desaparecem numa floresta enquanto filmam documentário sobre uma bruxa lendária que teria vivido no lugar. Produção independente de US$ 30 mil, tornou-se o quarto filme de horror mais visto da história do cinema e provocou a explosão comercial do gênero.

The last horror movie (2003)
Assassino serial entediado apaga conteúdo de fita VHS em locadora e coloca, em seu lugar, filmagens dos crimes cometidos por ele, enquanto ameaça perseguir quem assiste ao conteúdo. Produção independente inglesa realizada no rastro do sucesso de A bruxa de Blair.

Atividade paranormal (2007)
Câmera de vigilância registra manifestações sobrenaturais dentro da nova casa de casal jovem. Filmado quase sem orçamento, foi descoberto por Spielberg e resultou na mais famosa franquia do gênero, com seis continuações.

Diário dos mortos (2007)
Incursão do veterano George Romero no gênero, mostra estudantes de cinema fugindo de um apocalipse zumbi (e, ao mesmo tempo, registrando-o). Metáfora inteligente para a proliferação de dispositivos de filmagem e a consequente cultura do vídeo amador.

[Rec] (2007)
Equipe de TV fica de quarentena em prédio onde se alastra um vírus que transforma pessoas em zumbis. Sangue, sustos e final surpreendente no filme que definiu novos paradigmas técnicos de som (imperfeição calculada) e imagem (planos-sequência) do gênero.

O caçador de trolls (2010)
Estudantes rodam documentário sobre um misterioso caçador de ursos que revela ser, na verdade, um agente secreto autorizado a exterminar criaturas lendárias nos fiordes noruegueses. Roteiro criativo e efeitos especiais de primeira em produção do gênero da Noruega.

El sanatorio (2010)
Grupo de amigos filma documentário dentro de um hospital psiquiátrico abandonado que tem fama de mal-assombrado. Mistura de suspense com alguns sustos e humor em produção independente rodada, quase sem dinheiro, na Costa Rica.

Desaparecidos (2011)
Primeira realização brasileira em longa-metragem dentro do gênero, mostra o suposto conteúdo de câmeras que filmaram o desaparecimento de jovens durante uma festa em uma ilha particular no litoral de São Paulo. Roteiro fraco, som de primeira qualidade. 

RODRIGO CARREIRO, jornalista, crítico de cinema e professor universitário.

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