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O artista livre do “eu” na arte contemporânea

Obra publicada pela pesquisadora Tania Rivera reconvoca as teorias de Freud e Lacan para discutir premissas do objeto artístico “des-representado”

TEXTO Frederico Feitoza

01 de Janeiro de 2014

A figura topográfica da Fita de Moebius serve tanto à arte contemporânea quanto ao ensino

A figura topográfica da Fita de Moebius serve tanto à arte contemporânea quanto ao ensino

Imagem Reprodução/ Maurits Cornelis Escher

Nos anos finais de sua carreira e de sua vida, aproximadamente entre 1976 e 1988, Ligia Clark resolveu elevar a sua arte a um novo status, diluindo-a numa grande obra “terapêutica” chamada Estruturação do self. No seu apartamento em Copacabana, realizava sessões individuais, nas quais o cliente experimentava as relações entre o seu corpo e o mundo por meio do uso de objetos simplórios organizados por ela, como sacos de isopor, conchinhas e almofadas.

Esses “objetos relacionais” – referência ao termo usado em psicanálise para descrever aquilo através do que o sujeito articula seus desejos e pulsões – tinham o objetivo de elaborar uma fantasmagoria inerente a cada um. Para Clark, a experiência estética ali gerada, e a posterior descrição das sensações plásticas que seus clientes relatavam, funcionavam de forma análoga a uma análise. A encenação da fantasia colocaria em ato a natureza cindida entre corpo e ser, constituinte de todo sujeito, como defende a Psicanálise. Anos antes, em Paris (1972-1974), Ligia passara por uma instigante análise com o reconhecido psicanalista francês Pierre Fédida: “Uma costura do meu corpo”, como escrevera em carta a Helio Oiticica.

As relações entre arte contemporânea e psicanálise vão além. Elas superam remanejamentos conceituais e colocam em evidência afinidades que podem ser embaraçosamente complementares. Ambas seriam capazes de fazer o sujeito “perceber percebendo-se” ou, ainda, sentir-se “des-representado no tempo e no espaço”. Mas o que significaria isso tudo? É o que a professora Tania Rivera, do Departamento de Artes da Universidade Federal Fluminense, tenta explicar em seu livro O avesso do imaginário – arte contemporânea e psicanálise (Cosac Naify).

Tania afirma que prefere pensar tais relações a partir de uma figura topográfica que foi utilizada tanto pela psicanálise quanto pela arte contemporânea: a fita de Moebius. Velha conhecida de Jacques Lacan, e utilizada para explicar a relação do sujeito do inconsciente com o objeto que causa o desejo (reduzido à expressão “objeto a”), essa superfície dobrável e desdobrável permitiria pensar as relações de sequência e deslizamento entre esses dois campos culturais. Tanto Ligia Clark, em seu Caminhando (1963), quanto Cildo Meireles, em Mebs/Caraxia (1971), até os Parangolés de Hélio Oiticica (descritos por Ligia Pape como uma fita de Moebius engolfada em si mesma) se utilizaram dessa forma para expressar a sequência entre interioridade e exterioridade do eu, algo sem um dentro e sem um fora, mas, ao mesmo tempo, dotado dos dois.


Na obra Rhythm O, Marina Abramovic trata do apelo ao Outro e a alteridade
radical. Foto: Reprodução

Com a fita de Moebius seria finalmente possível ilustrar um dos grandes dilemas postos em pauta pela arte contemporânea: nem o autor, nem a obra, o verdadeiro valor daquilo que se apresenta como arte diria respeito à sua capacidade de agenciar no sujeito algo que a psicanálise chamaria de uma operação significante, uma incidência capaz de gerar no mundo natural a própria cultura, incerta e caótica, como um espelho trincado, inviável de conserto. Esse momento de estranhamento do sujeito consigo e com o mundo seria uma de suas grandes características. No âmbito da arte contemporânea, a máxima freudiana, que dita que o “eu não é mais o senhor da sua própria casa”, será finalmente traduzida (e diluída) na cultura.

Não se deve pensar, no entanto, que apenas artistas que tomam a fita de Moebius como referência conceitual ou que trabalham diretamente com a psicanálise, como se pode observar nas obras de Louise Bourgeois (O retorno do desejo proibido; Abuso infantil) ou Joseph Kosuth (Zero & not; O.&A./F!D!) são capazes de articular arte e inconsciente. Dispositivos como performances e videoartes são bastante evocativos desse sujeito que se desconhece, que se vê fraturado e avesso à própria imagem.

CORPO
Na performance, expressão dominada pelo feminino em nomes como Marina Abramovic, Sophie Calle ou Yoko Ono, o corpo se dá a ver cruamente na sua dimensão de dependência constitutiva em relação ao outro. Situação que revela quão perigosa pode ser a oscilação entre sujeito e objeto, a exemplo do que Abramovic realizou em Rhythm O, de 1974, ao entregar o próprio corpo à manipulação dos espectadores, por meio de uma diversidade de objetos, dentre os quais uma arma carregada, que acabou sendo apontada para a sua cabeça. Ao finalmente expor que esse sujeito só se dá em ato passageiro, a potência da performance se encontra na reflexão poética que o engata à sua condição contemporânea de inapreensível.


Os parangolés de Hélio Oiticica expressam a operação significante
em trânsito entre sujeitos, cujo circuito só se completa com o público.
Foto: Reprodução

No caso da videoarte, o agenciamento de imagens e palavras serviria enquanto “significância”: forma de resistência aos sentidos estabelecidos no universo simbólico da linguagem. Artistas como Gary Hill e Nam June Paik seriam capazes de gerar um curioso efeito de escrita imagética similar ao trabalho dos sonhos. Na sua linguagem arbitrária e móvel, os objetos ganham significados incompatíveis, subvertendo aquela imagem homogênea e sem falhas comum à televisão, e fazendo entrever o estranho ponto – ou o ponto cego, como diria Lacan, em que a imagem se engancha ao irrepresentável.

Em outra seção, devotada à reflexão sobre a crítica artística e à estética, Tania fornece uma possibilidade de se pensar a dimensão ética e os valores na arte contemporânea. O valor da transitoriedade do belo, conforme explorado por Freud em 1915, como condição para a sua experiência, nos serviria para pensar que a aura não declinou com o avanço da reprodutibilidade técnica, mas foi redimensionada segundo uma nova noção de temporalidade na era multimidiática. Como dirá o psicanalista dentro de sua lógica econômica: “a limitação da possibilidade de uma fruição eleva o seu valor”.

A radical abertura ao Outro como característica ética mais presente na arte contemporânea é, por fim, explorada por meio do pensamento do pernambucano Mario Pedrosa, principalmente através da sua experiência com internos da instituição psiquiátrica do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, a qual frequentou por anos. A ele interessava entender a distância de “si a si mesmo”, que percebia tão claramente no devaneio psicótico, e que favorecia a construção de uma obra com uma linguagem própria, justamente no ponto em que o “eu” se diluía.

A intrincada explicação da arte contemporânea, como a da própria psicanálise, torna-se uma eficiente marcadora da postura do sujeito, ora como aquele que sucumbe aos imperativos do eu e aos seus receios identitários, ora como aquele que encara a sua inapetência diante do real, como o impossível da apreensão total da existência. Na arte, todo um espaço para esse sujeito perdido é criado, ele mesmo se tornando capaz de “espaçar”. Como torna clara a experiência heideggeriana, que Tania descreve com a obra Através, de Cildo Meireles, exposta no Instituto Inhotim, entre homem e espaço existe uma misteriosa relação de constituição mútua. Espaço que liberta, desbrava e abre. 

FREDERICO FEITOZA, jornalista, especialista em jornalismo cultural, doutor em Comunicação.

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