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Polytheama: O cinema à espera de espetáculos

Diante do crescimento econômico da cidade de Goiana, na Zona da Mata de Pernambuco, o centenário cineteatro tenta reerguer sua história e a de seus espectadores

TEXTO CLARISSA MACAU
FOTOS IEZU KAERU

01 de Janeiro de 2014

Cinema foi inaugurado em 1914

Cinema foi inaugurado em 1914

Foto Iezu Kaeru

Era noite de Sexta-Feira da Paixão na cidade pernambucana de Goiana, em meados de 1940. O cinema Polytheama, na época chamado Nacar, estava lotado. O padre, o prefeito e toda a vizinhança goianense assistiam ao clássico da Semana Santa, A paixão e a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, dirigido pelo francês Ferdinand Zecca. Quem podia pagar o ingresso ficava nas convencionais poltronas de madeira e os menos apossados se dirigiam à “geral”, por trás da tela, de onde, consequentemente, as legendas apareciam ao contrário. Seu Lourival Preto, pipoqueiro, tinha o dom de sempre as traduzir para o povo – na ocasião, explicando a história de sacrifício mais famoso do Ocidente.

A hora mais tensa do filme era chegada, Jesus estava a caminho da cruz, sendo covardemente açoitado pelos soldados romanos. Indignado, alguém grita: “Tanto homem aqui e ninguém ajuda esse rapaz! Será possível? Tenham vergonha nessas caras!”. Conhecido como Billy Elliot, um dos espectadores do setor mais barato não aguentou as imagens do homem sofrendo, e atirou, em direção à cena, o banco no qual estava sentado. O assento perfurou a tela e acertou em cheio um homem do público “rico”; só se escutaram os gemidos de dor. Foi um pastelão cinematográfico.

Dos mais antigos cineteatros do Brasil, o Polytheama é do tempo em que as pessoas viviam o cinema de forma tão profunda e lúdica, que, no escuro da sala de exibição, tudo se tornava realidade. A casa foi inaugurada em Goiana, na Rua Marechal Deodoro da Fonseca, em 1914. Já passou por vários nomes e eras, quando se chamou Cine Nacar (1950-1960), com o melhor das chanchadas e dos filmes românticos, e Cine Rex (1960-1982), ao apresentar os mais picantes filmes pornôs nacionais e a ação de filmes de caubóis. Em 1982, voltou a ter sua denominação original, o sinônimo, em latim, de “vários espetáculos”, os quais simplesmente não aconteciam naquele período. Pela falta de atenção, na década seguinte, o edifício desabou, sendo ameaçado de demolição completa para se tornar um shopping. Só em 2010 foi restaurado pela Fundarpe, por R$ 1, 2 milhão.

Quase quatro anos depois, Goiana passa por mudanças profundas com a chegada de grandes empresas como a Fiat, Hemobrás, e o polo farmoquímico, firmando-se como um dos 10 maiores centros econômicos do estado. Enquanto isso, prestes a completar seu centenário em novembro deste ano, o espaço artístico do Polytheama está ocioso boa parte do ano, salvo exceções como a Mostra Canavial de Cinema, que acontece todo mês de novembro, um cineclube mensal e alguns shows musicais. O pipoqueiro da cidade, José Benigno, anda pela vizinhança levando seu carrinho de pipoca, há mais de 40 anos. Quando sabe de alguma sessão de filme, corre para a porta do cineteatro. “Esse é um velho companheiro nosso. Ficou um bom tempo parado. Voltou a funcionar, mas está um pouco maltratado no meio dessa cidade que parece estar sendo pintada de ouro. Tudo é caro, e a cultura está ficando em último lugar”, opina.


Idealizador da Mostra Canavial de Cinema, Caio Dornelas (esq.), e o locutor Vilmar Gomes

“O Polytheama começou sem dono específico. Foram pessoas de posses que se juntaram para construí-lo. Cada um ficou responsável por uma parte. Um pelo projetor, outro pela tela. E assim foi. Até que Lourival Ferreira conseguiu as ações junto à prefeitura e firmou-se como o primeiro dono desse que veio a se chamar Nacar. Depois, a prefeitura local se tornou a proprietária”, conta o publicitário e locutor Vilmar Gomes. Ele viveu boa parte dos seus 75 anos anunciando em carros de som – o principal veículo de comunicação de Goiana – os filmes em cartaz na cidade. “Ringo não perdoa, mata. Hoje, no Cine Rex, sete e meia da noite. O melhor filme do bangue-bangue italiano. Em cada cena, um tiro; em cada tiro, uma queda”, relembra a chamada de um dos filmes de faroeste mais famosos nos anos 1960.

“Agora, não se passa mais nada regularmente por lá, virou palco de palestra, de distribuição de diploma, formaturas, requisição de salário! Existem alguns shows musicais. Mas raramente se tem cinema, tanto que faz um bom tempo que não ponho os pés lá. Minha época era dos seriados, aquela história do ‘volte na próxima semana’ e todo mundo voltava. Das chanchadas de Oscarito, Grande Otelo, de filmes como ‘mais uma criança que morre no morro, é mais um anjinho no céu’, durante os domingos.”

Perguntado sobre uma obra que mexeu com a cidade, Vilmar lembrou a ficção científica estrelada por Tyrone Power Veneno lento, filme sobre um parto cesariana. “Uma obra proibida para menor de 18 anos. O maior detalhe era que, nesse tipo de película, mulher não podia se sentar perto de homem. Existiam sessões para cada um, tudo vigiado pela polícia federal”, relembra Vilmar. Junto a ele, os brasileiros O ébrio e a novela Direito de nascer, da TV Tupi, também movimentaram as bilheterias e o burburinho dos goianenses.

Como em toda cidade do interior que se preze, além do citado Billy Eliot, os personagens cotidianos do cinema eram muitos. Zefa Deão só aparecia durante a noite. Dona da última cadeira do lado esquerdo do Polytheama, era uma figura incógnita, mas inesquecível. “Ninguém sabia se era homem ou mulher. Mas ai de quem sentasse no seu lugar, ela sempre andava com uma bengala para acertar os infratores”, conta Vilmar. Havia, ainda, na lista de excêntricos, a Beata, “com seu bumbum enorme”; Miss Inês, “autointitulando-se de rainha da beleza, mas era feia que só vendo” e o Garajuba, que toda a noite, antes da sessão, ligava para uma noiva que nunca aparecia, enumera Vilmar.


Moçada local prestigiou a Mostra Canavial de Cinema

RIVALIDADES
Na terra dos caboclinhos e guaiamuns, não foi só o Polytheama que reinou no cinema local. Além dele, existiam o Cine Operário, o Cine Sesi e o monumental Cine Urubatã, criado nos anos 1950. A aposentada Pamela Rabelo, de 83 anos, mora na frente do Polytheama, porém sempre se recusou a ir ao local. “Goiana é uma cidade extremamente cultural e ligada à sétima arte. Mas eu, pessoalmente, não gostava do Cine Rex, como se chamava na época. Um lugar onde tudo era misturado, e nada prestava. Filme bom passava no Urubatã, um belo cinema de primeiro andar. A noviça rebelde sempre estava em cartaz. Uma pena que tenham demolido no anos 1980, para construir um supermercado”, diz, saudosa.

O locutor Vilmar Gomes está ao lado dos que preferiam o Cinema Polytheama. “Pra mim, esse, sim, foi um lugar de bons filmes. O Urubatã era de quem gostava de namorar, conhecido por ser comparado ao São Luiz do Recife, de tão luxuoso. Depois, foi se vulgarizando, tinha tanto barulho, que mal se ouvia o filme”.

Pamela aponta uma característica dos goianenses: “Em Goiana, tudo é muito dividido. Como eu, existia muita gente que se recusava a entrar no Cine Rex e existiam os que não iam ao Urubatã. Isso podia depender do pastoril de que você fazia parte, se era azul ou vermelho, ou da banda musical à qual você tinha ligação”, conta, remetendo à existência das duas mais antigas bandas musicais da América Latina: as conterrâneas Saboeira, relacionada ao partido liberal, à qual se costumava vincular ao Polytheama, e a Curica, mais conservadora, identificada ao Cine Urubatã.

O secretário de Políticas Sociais e Desportes da cidade, Ricardo de Sá Torres, tinha apenas oito anos de idade quando foi pela primeira vez ao Polytheama. “O Poly sempre foi mais ligado a uma classe mais pobre. Como tinha a chamada ‘geral’, o setor mais barato, todo mundo se sentia convidado a entrar nele, não somente os menos afortunados financeiramente, mas também os menores de idade, desejando assistir aos filmes proibidos. Por isso era dito ‘misturado’.” E completa: “O Urubatã já tinha um ar imponente e elitizado, com suas três cortinas e holofotes. Dia de domingo, eu escolhia o Poly, para assistir aos filmes de Roberto Carlos, que começavam a passar no cinema. Depois da sessão, todo mundo ia tomar sorvete na lanchonete que tinha aqui perto, a Frateli Vita”. Nos finais de semana, o local também foi usado para ensaios e apresentações de teatro, dança e grupos estudantis.


Luciano Albertine tocava contrabaixo no cinema

Os dois cinemas faziam sucesso por apresentarem shows de cantores conhecidos da época. No auge do iê-iê-iê, o músico Luciano Albertine tocou em várias bandas locais. “O Urubatã tinha estrutura. Mas o Rex trouxe nomes grandes, a exemplo de Waldick Soriano, Nelson Gonçalves e Ângela Maria”, recorda ele. Albertine chegou a se apresentar no Cineteatro da Rua Marechal, que, segundo ele mesmo, era sempre um fracasso. “Santo de casa não faz milagre. Sempre acham que artistas locais são doidos, malucos. O engraçado é que, se vier um doido de fora, aí, sim, é gênio”, opina Albertine.

Havia ainda os que frequentavam os dois cinemas sem nenhum problema. Para o fotógrafo Carmelo Antonio Oliveira, as programações se diferenciavam. “As pessoas assistiam à primeira sessão em um e, depois, trocavam de estabelecimento, para ver o que estava passando no outro. O final de semana era todo dentro dessas casas.”

CHEGADA DA TV
O cinema foi, para gerações, a principal forma de lazer. Nos anos 1970, as televisões chegaram para ficar nas pequenas cidades brasileiras, e não seria diferente em Goiana. “Por muito tempo, minha casa foi a única a ter TV na cidade, e virou uma espécie de novo cinema, cheia de pessoas para ver novela. Depois, cada um comprou a sua, e deixamos de socializar, em nome do conforto”, conta Ricardo Sá.

No lugar de Oscarito e Grande Otelo, os filmes do Cine Rex ganharam novas protagonistas. As deusas do sexo, como as atrizes Vera Fischer e Elena Ramos, invadiam as telas de cinema goianenses. “Foi na época do boom do videocassete. Ver filme repetido não fazia mais graça. O povo se afastou do cinema, e deu brecha para os filmes proibidos, a cultura do filme pornô”, diz Vilmar. Essa transformação, segundo o locutor, aconteceu através do gerente do período, o já falecido Teófilo Dias Neto, o Doca. “Doca começou a trazer não só filmes, mas também o teatro pornográfico. Chegaram a apresentar até sexo ao vivo”.


Exibição de Curica, de Hanna Godoy

Apesar de as pornochanchadas serem o carro-chefe do Polytheama da época, havia espaço para as novidades intelectuais. O guarda municipal Josedemir de Gomes, atualmente responsável pelo estabelecimento, alargou seus horizontes sobre o mundo na frente da telona. “Nos anos 1970, aprendi a falar inglês com Star trek e O massacre da serra elétrica. Porém os meus filmes preferidos conversavam com a situação do Brasil, como Amor comanda o cangaço, de Carlos Coimbra, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, do grande Glauber Rocha.” Longas que raramente lotavam uma sessão, a não ser que fossem apresentados durante o final de semana.

CULTURA CINÉFILA
“Hoje, tudo aqui está numa logística de novos empreendimentos. Já quiseram demolir o Polytheama para construir algo mais rentável que um ‘mero’ cinema. A população, felizmente, não deixou isso acontecer”, afirma Vilmar Gomes. Foram 30 anos de portas fechadas. O teto precisou desabar, na década de 1990, para chamar a atenção das autoridades. Tombado como patrimônio histórico em 2010, o Polytheama passou por uma reforma completa, com o objetivo de receber a classe artística da Zona da Mata Norte.

Caio Dornelas, um dos criadores do único cineclube da cidade, o Iapôi, e idealizador da Mostra Canavial de Cinema, recorda o dia da inauguração: “Ficamos muito felizes, o clube foi convidado para fazer a sessão de abertura. Toda a cidade veio conferir. Mas, hoje em dia, não existe protocolo claro para o uso das pautas. Ainda há a velha conotação política. Nessa gestão, estamos acessando o espaço sem problema, mas, em anos passados, chegamos a ser cobrados para usar o local, que é um bem público. A prefeitura alegava não ter como pagar alguém para cuidar do ambiente”.

Atualmente, o Polytheama possui um gerente responsável por toda a manutenção do espaço. A única máquina de projeção está quebrada, obrigando os usuários a possuírem equipamento próprio. O conserto foi prometido para a comemoração dos 100 anos.


Personagens do documentário Garotas da moda

A favor da cultura cinéfila, a Mostra Canavial de Cinema, ocorrida no segundo semestre do ano passado, atraiu pessoas ao cineteatro que ora assistiam aos filmes, ora se dispersavam, conferindo seussmartphones, e, em outros momentos, chegavam a filmar com seus celulares as obras exibidas.

A chegada de grandes empresas em Goiana motivou a vinda de pessoas de todo o país, além de uma exacerbada especulação de imóveis, que ameaça de demolição patrimônios históricos. “Vivemos uma mudança de ares. Através de um processo educativo, podemos conscientizar nossa população sobre a conservação e revitalização de nossa história”, opina Vilmarzinho, filho de Vilmar Gomes, membro do cineclube Iapôi e diretor de um dos filmes apresentados na seleção. Seu curta Zé Mateo mostra a rotina de um feirante goianense. “É uma tentativa de mostrar alguém invisível ao atual crescimento econômico, mas que, ao mesmo tempo, contribui com ele à sua maneira”, conta.

As travestis goianenses Pamela de Andrews, Amora Souta e Joyce Meneguel foram protagonistas do curta-documentário Garotas da moda (2012), de Tuca Siqueira. O filme rodou o país, mas só naMostra Canavial elas tiveram a chance de ver suas histórias retratadas na telona. “A cidade também tem que mostrar o lado da gente, a cultura LGBT. Fico emocionada que isso aconteça através do cinema. Poderíamos ter visto antes, mas nunca havia passado por aqui. Esperamos um dia fazer um show no Polytheama”, diz Pamela, que mantém com as amigas um grupo de dança, no qual faz cover de cantoras pop.

O artesão Edilson Oliveira trabalha no mercado de artesanato ao lado do cinema. Fã dos filmes que passam no Pollytheama, ele acredita que o espaço tem muito potencial, mas falta uma divulgação específica: “Não adianta anunciar em outdoors. Nossa memória é auditiva. Os carros de som são nosso principal meio de comunicação. Por ser cidade de interior, até nota de falecimento sai por lá. As chamadas de filmes deveriam voltar a acontecer por esses veículos, como antigamente”.

Vilmarzinho, filho do homem que mais chamou filmes na cidade, o locutor Vilmar Gomes, diz:“Existe uma hábito de dizer que o cinema é público. As pessoas, hoje em dia, têm dificuldade de acreditar nesse discurso. Será que é do povo mesmo, ou só do governo? É necessário que as pessoas comecem a adotar o Polytheama. E que a prioridade no seu cuidado não seja apenas eleitoreira, mas para firmar a importância da arte e da história de nossa cidade nas pessoas.” 

CLARISSA MACAU, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.
IEZU KAERU, fotógrafo.

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