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Cafés portenhos: Lugares de memória

Além de servirem aos momentos de pausa, essas casas e seus variados estilos são pontos de referência na paisagem de Buenos Aires

TEXTO Mariana Camaroti

01 de Março de 2014

Café Tortoni, o mais antigo da cidade

Café Tortoni, o mais antigo da cidade

Foto WikiCommons

Um dos maiores prazeres da cidade de Buenos Aires é caminhar pelas suas ruas sem horário nem roteiro, deixar-se seduzir pelo cheiro que transborda pelas calçadas e sentar-se nas cafeterias para, simplesmente, tomar um café, apreciar a bebida, folhear um jornal ou revista, jogar conversa fora e provar as iguarias servidas ali. Uma saborosa opção para quem visita a cidade e quer fugir dos roteiros turísticos, vivendo momentos como um autêntico portenho.

Curiosamente, nesta terra de chimarrão e chá em horário inglês – influências da cultura gaúcha e das invasões inglesas –, deter-se para tomar um cafezinho na rua é um costume a qualquer hora do dia. Quem já esteve na capital argentina certamente provou do clássico “café com leite com três medialunas”, os tradicionais croissants do país, combinação sugerida em todos os cardápios.

E é preciso dedicar tempo a esse ritual. Os amantes da bebida não têm pressa nem o hábito de tomá-la no balcão, em pé. Ao contrário disso, aproveitam o momento para dar uma pausa no ritmo frenético vivido nesta metrópole de 3 milhões de habitantes – um total de 13 milhões em sua região metropolitana.

Os cafés da capital argentina abundam por todos os bairros e não obedecem a um padrão. Tradicionais, modernos, decadentes, com ar vintage, afrancesados, velhos, surpreendentes, sofisticados, jovens, chiques, seculares, descolados. Suas existências conferem charme às ruas de arquitetura e costumes europeizados, despertando romantismo nos passantes. Nos sensíveis, provoca nostalgia, assim como sugere semelhança com outras belas cidades conhecidas por seus cafés, Paris e Roma.

“A vida desses estabelecimentos anda de mãos dadas com a história cotidiana da cidade. Falar de um café, bar, confeitaria, é falar um pouco da nossa essência cidadã e do nosso patrimônio”, diz o coordenador do programa de Extensão Cultural de Buenos Aires, o arquiteto Horacio Spinetto. “Os cafés estão em nossa memória coletiva e fazem parte da paisagem urbana”, acrescenta.

Presentes em letras de tango, em poesias, testemunhas de encontros literários e de importantes reuniões culturais, muitos deles fazem parte do Patrimônio Cultural e Histórico da cidade, sendo declarados Cafés Notáveis pela prefeitura.

Café Tortoni era frequentado por personalidades como Jorge Luis Borges, Carlos Gardel e Alfonsina Storni, reproduzidos em esculturas. Foto: Divulgação

Neles, famílias desfrutam a primeira refeição do dia nos finais de semana, jovens estudam, empresários fazem reuniões e alguns trabalham com seus laptops. Houve uma época em que a rede McDonald’s repunha gratuitamente o pedido de café dos que estavam estudando nos horários fora de pico.

VIAGEM NO TEMPO
Inaugurada em 1884, com inequívocos sinais de distinção, em uma área de fazendas e fincas, a Confeitaria Las Violetas é um dos mais elegantes locais do ramo em Buenos Aires. Abriu suas portas para atender a alta sociedade que frequentava o então rural bairro de Almagro – fazendeiros, comerciantes e políticos.

Seus clientes chegavam em carruagens vestindo fraques, cartolas, bengalas, enquanto as distintas senhoras trajavam vestidos longos e elegantes chapéus. Na história da casa, consta que até o então presidente Carlos Pellegrini participou da inauguração. As fotos da época podem hoje ilustrar livros de História.

O cenário ao redor não é mais aquele. O bairro urbanizou-se, virou zona residencial e comercial, e o metrô passa perto dali. No entanto, o tempo deteve-se portas adentro. Imponentes colunas, detalhes dourados do salão e paredes revestidas de madeira remetem aos anos áureos da economia e da alta sociedade argentinas.

“Os vitrais e luminárias de inspiração francesa, comuns naquele período, são originais. Foram restaurados, junto com um trabalho de recuperação e reforma que o lugar recebeu para reabertura em 2001, após os dois anos em que esteve fechado”, conta o gerente, Abel Vitienes.

Poucas coisas mudaram, como o balcão, os toldos e a entrada, antes pela esquina. “Aqui há muitas histórias e os clientes que frequentam assiduamente nossas mesas mantêm alguma relação com este ambiente”, revela.

É o caso de Lidia Esther Mariosa, que se sente profundamente ligada à Confeitaria Las Violetas. Seus pais eram do bairro, encontravam-se na confeitaria e celebraram não apenas o casamento, mas também batizado, aniversário e eucaristia das filhas no requintado salão, entre outras datas. “Venho aqui desde que estava na barriga da minha mãe. Este lugar é emblemático. Há muito o frequento todos os dias com a minha irmã. Aqui me sinto em casa”, conta esta senhora, que, como muitas pessoas da sua geração, prefere o chá com leite e torradas no lugar da dupla café com leite e medialunas


A elegante confeitaria Las Violetas, inaugurada em 1884.
Foto: Mariana Camaroti

A elaboração de todos os produtos de pastelaria e sanduíches do local acontece no subsolo, numa área tão grande quanto as dimensões do salão. A joia da casa é o café colonial Maria Callas, que traz uma variedade de sanduíches, tortas, torradas, medialunas, café ou chá com leite, queijo, geleia, docinhos e outras delícias para três ou quatro pessoas.

Mais antigo café aberto da cidade e destino certo dos turistas, o Café Tortoni conserva, na fachada e no interior, a elegância de um estabelecimento outrora frequentado por importantes artistas, jornalistas, músicos de tango e escritores como Jorge Luis Borges, Federico García Lorca e Astor Piazzolla.

O chocolate quente com churros recheados de doce de leite é um clássico neste lugar inaugurado em 1858, assim como tirar fotos em seu salão, biblioteca e antiga barbearia.

No passado, suas mesas eram montadas também na calçada da Avenida de Mayo, elegante via de influência arquitetônica espanhola, no centro histórico de Buenos Aires. Mas o costume perdeu-se com o alargamento do asfalto para dar passagem aos carros na via que liga a Casa Rosada, sede do governo, e o monumental Congresso Nacional.

Dispor as mesas na calçada é um charme à parte, ainda hoje cultivado pelos cafés da capital argentina, apesar da modernidade. Sob o sol, toldos, guarda-sóis, árvores ou pérgulas, as mesinhas em meio ao passeio são convidativas. No inverno, alguns usam aquecedores na calçada para não perder os clientes.

Numa esquina do turístico Bairro de San Telmo, o Café e Restaurante El Federal é uma pedida acertada para quem quer unir informalidade a antiguidade. O arco de vitral, as propagandas e fotos do início do século passado e a madeira “de sempre” se somam às velhas garrafas, oferecendo um ar de taverna.

O cliente pode sentar-se na calçada, no salão principal, estreito com mesinhas na janela, ou em alguma das duas salas mais reservadas. Nestas, quadros com fileteado – técnica de pintura decorativa típica portenha – e duas grandes máquinas registradoras retrôs compõem o ambiente. Portas altas, móveis originais e vidros bordados são detalhes que não passam desapercebidos. No passado, funcionou ali um armazém de bebidas e comidas e, anteriormente, um prostíbulo.


Las Violetas  tem clientes fieis como Lidia Esther Mariosa (D). Foto: Mariana Camaroti

Cliente assídua do El Federal, a arquiteta chilena radicada em Buenos Aires, Paula Araya, diz por que cultua os cafés antigos. “Neles, existe um público de todas as idades e tipos. Você pode estar tomando um cafezinho e a pessoa do lado, um gim. Esses encontros é que me fazem gostar de lugares assim”, revela, enquanto escolhe com amigos o que vai tomar no final da tarde.

Olhando rapidamente para as mesas e as pessoas que entram e saem, é fácil confirmar o que diz o gerente Samuel Gonzales: “O forte aqui são os turistas, principalmente estrangeiros”, diz detrás do balcão, enquanto prepara os pedidos das mesas.

CAFÉS NOTÁVEIS
Assim como Le Procope, o Café de Flore e o Les Deux Magots, de Paris; o Gijón e o Comercial, de Madri; o Greco, de Roma; e o Girondino, de São Paulo, os cafés de Buenos Aires são verdadeiros pontos de reunião e convocatória, criação e canalização de sonhos.

“Os cafés notáveis fazem parte do patrimônio cultural da cidade e requerem um constante trabalho de proteção edilícia, difusão e recuperação”, afirma a subsecretária de Cultura da Secretaria de Cultura da capital argentina, Josefina Delgado.

O que ela chama de cafés notáveis são, como o Tortoni, o Las Violetas e tantos outros antigos – sejam eles elegantes ou não –, os que resistiram ao tempo, têm um valor arquitetônico e são importantes para a história cotidiana do bairro em que estão localizados. Muitos, em algum momento, tiveram uma representatividade para vida cultural da cidade, foram tombados e recebem apoio financeiro da prefeitura.

A essa lista pertence o Café de los Angelitos, em Balvanera, fundado em 1890. Com suas pequenas mesas redondas no centro do salão e janelas de vidro bordado, encimadas por toldos, pé direito alto e piso de ladrilho hidráulico, ele cumpre verdadeiramente o requisito de referência do dia a dia portenho.

No que por muito tempo foi a estação ferroviária mais importante da América Latina, o Café Retiro, de mesmo nome do terminal, provoca uma irrefutável viagem no tempo. Colunas jônicas, mezanino com grade de desenho rebuscado, cúpula e luminárias penduradas do alto teto caracterizam um elegante salão de chá e café.


Tienda de Café é especializada na bebida, principalmente nos blends.
Foto: Mariana Camaroti

Com bem menos glamour, mas capaz de despertar o prazer de ser bem atendido, encontra-se o Ocho Esquinas, no Bairro de Chacarita. O lugar não é grande, mas lindo, com mobiliário original, de 1939.

“A luz entra pelos vidros grossos amarelos, embelezados por desenhos geométricos. Uma luz especial que dá ao ambiente uma atmosfera suave e aveludada. Parece uma foto sépia”, escreveu o pesquisador de cafés, bares e cardápios Pietro Sorba, em seu livro Bodegones de Buenos Aires (Editora Planeta).

A proprietária, Lucia de Bálsamo, revela com orgulho que as mesas são servidas com uma louça de quatro décadas e que ela repõe as avariadas com peças conseguidas com muita procura nas casas de leilão e antiguidade. “As últimas comprei em San Telmo, algumas com falhas, mas para manter a mesma linha. Tudo aqui é muito cuidado”, afirma.

Entre as peculiaridades do lugar está oferecer comida alemã no almoço e no jantar, com direito a shows de tango e milonga nas noites de quinta a sábado, e permitir ao cliente escolher o que deseja nas bandejas que circulam, como a medialuna ou factura (delicioso brioche argentino).

“Estava acostumado a servir em uma churrascaria. Ao ser contratado, tive não só que estudar a história deste lugar como também me acostumar com o ritmo mais lento dos clientes”, conta o garçom Gustavo Angel. As duas fileiras de mesas e bancos fixos nas laterais do salão e as mesinhas apertadas no centro, junto com os frascos de petiscos do balcão e os presuntos crus pendurados do teto, completam a originalidade deste café notável.

MODERNOS
Mas a charmosa princesinha do Rio da Prata também conta com modernidades. Impossível não se sentir atraído pela bela casa antiga de esquina, pintada de vermelho e com janelões, onde funciona a Tienda de Café do Bairro de Belgrano.

Realmente especializado na bebida – principalmente blends –, o Tienda de Café oferece ainda o produto em grãos ou moído na hora e outros mimos no seu empório, como cafeteira italiana, xícaras grandes e frascos. Este é o mais lindo da rede de mais de 20 sucursais, que continua crescendo.


A combinação café com leite com medialunas é sugerida em todos os cardápios.
Foto: Mariana Camaroti

Olhando o cardápio, o cliente que não é habitué se confunde com tantos nomes para um único produto. Café, café doble (duas vezes a medida do expresso), café con leche, em pocillo (pequena xícara) ou jarrito (um pouco mais que o anterior), cappuccino, cappuccino italiano, macchiato (expresso forte com espuma de leite) mocha (expresso com espuma de creme de leite), cortado (pingado com leite), lágrima (leite pingado de café), além das versões geladas oferecidas no verão.

É preciso entender os códigos portenhos ou perguntar desinibidamente ao garçom para se arriscar nas diferentes opções. Para cada uma delas, uma xícara com forma e tamanho diferente. Mas todos servidos, como é costume em Buenos Aires, com um copinho de água com gás e/ou suco de laranja e um biscoitinho. Vale saber que, na cultura local, ao pedir un café, o que o atendente trará será o expresso, em xícara diminuta.

Na Tienda de Café, os cookies, scons, torradas, tortas doces e salgadas, muffins de baunilha ou chocolate com castanha e sanduíches são algumas das ofertas do cardápio para acompanhar a especialidade da casa, que também funciona como restaurante no almoço e no jantar. No aconchegante primeiro andar, antigas chaminés e a luz natural criam um clima tentador para um encontro de amigos.

“Somos uma cafeteria de bairro que, embora tenha turistas, é mais voltada para os clientes fixos. E são tantos, que vendemos 2 kg de café expresso por dia, ou seja, uns 350 cafés diários (uma média de 8 g cada), além de mais de 200 medialunas”, revela Nestor Daniel Quirola, responsável pelo lugar, que tem um Starbucks ao lado como concorrência – mas que não lhe faz sombra.

No mesmo bairro, está o Dulce Buenos Aires, especializado, como o próprio nome diz, em doces. A vitrine refrigerada tem uma variedade de tortas que, junto com as opções secas exibidas no balcão, são de dar água na boca. As porções são generosas e é tudo feito no local, estilo caseiro, e com produtos o mais naturais possível.

A casa, que tem apenas cinco anos, possui um ambiente vintage, com mesas e cadeiras antigas compradas em leilões e casas de antiguidade. A louça delicada é um capítulo à parte: cada peça – xícara, pires, prato, bule e prato, também distintos entre si – foi adquirida em locais especializados em objetos antigos. O conjunto da obra resulta em um lugar romântico, onde as pessoas jogam conversa fora ao gosto de café e delícias.

“Os cafés de Buenos Aires têm um não sei quê que atrai as pessoas”, comenta a proprietária, Paula Mudric, parafraseando o famoso tango de Astor Piazzolla Balada para un loco. “Nossos clientes trazem seus computadores e passam horas trabalhando ou estudando, amigos se reúnem, casais vêm tomar café da manhã. Sentem-se em casa e esse é o nosso objetivo, desde a elaboração da comida à criação do ambiente”, acrescenta.


Dulce Buenos Aires aposta no estilo caseiro, com produtos o mais naturais possível.
Foto: Mariana Camaroti

Tratando-se de delícias, o Nucha não poderia ficar de fora. Impossível não se entregar aos prazeres do paladar nessa rede especializada em doces com elaboração artesanal. Os chocolates, tortas, macarrons (biscoito recheado francês), alfajores e scons, entre outros deleites, são visualmente sedutores e surpreendem no sabor. Seu bom atendimento e delicada beleza tornam a Nucha do Bairro de Palermo imprescindível no roteiro de quem prima por uma cafeteria especial.

A mistura de café com leitura, tão característica da capital argentina, encontra seu romance perfeito na Livraria El Ateneo Grand Splendid, apontada pelo jornal inglês The Guardian como a segunda mais bonita do mundo. Neste teatro transformado em bookstore no Bairro da Recoleta, o antigo palco abriga o Impresso Café, as estantes de livro ocupam o lugar das fileiras de poltronas e os camarotes viraram espaço de leitura.

As cortinas foram mantidas e adornam o ambiente de mesas, sofás e piano onde leitores ávidos sorvem letras e bebidas. Nesta joia da leitura mundial, um simples cafezinho ganha um sabor sublime. Ou um modesto livro deriva em um prazer inesperado. Café e leitura, um casamento perfeito. Porém ainda mais encantador quando o cenário é Buenos Aires. 

MARIANA CAMAROTI, jornalista radicada em Buenos Aires.

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