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'Anjo negro': No terreiro de Nelson Rodrigues

Espetáculo do grupo O Poste Soluções Luminosas, que estreou em festival no início deste ano, ganha tratamento cênico inspirado nas religiões afro-brasileiras

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Abril de 2014

Foto Diego Melo/Divulgação

"Vosso amor, vosso ódio não têm fim neste mundo! Branca Virgínia... Negro Ismael...” O racismo incutido naquele que, sempre vestido de terno branco, odeia a própria cor. A máscara da Virgem Santa camuflando uma Medeia de filhos com a cor e a cara do pai. A tragédia se passa dentro de um terreiro que profanou o sagrado, a pureza, a família, a virgindade. O terreiro de Nelson Rodrigues. “Primeiro, nós fazemos uma pesquisa de campo, vamos aos terreiros, aos centros e, além de conversarmos com os pais de santo, observamos o corpo dos orixás, as incorporações”, conta Samuel Santos, diretor do grupo de teatro O Poste Soluções Luminosas, em cartaz com a peça Anjo negro até 27 de abril.

O grupo estuda as religiões de matriz africana (candomblé e umbanda) e leva para o palco o resultado dessa pesquisa: “Quando observamos as incorporações, identificamos os centros de energia, o corpo que se dilata e se transforma em outro. O ator tem um pouco disso: ele se transforma em outra pessoa através de seu corpo e de seu sentimento”, descreve.

Interpretado pelo ator Ângelo Fábio, Negro Ismael foi criado a partir da imagem da fúria de Xangô, orixá que representa a Justiça e cuja lei é como a pedra: dura, justa e cega. No texto, Nelson Rodrigues descreve Ismael exatamente assim: inflexível, as mãos duras como uma rocha. “Trabalho com movimentos minimalistas, um estado de contenção, contrapondo com explosões e desconstruções, em que os centros de energia migram para vários pontos do corpo”, conta o ator.

Outra imagem é a do Exu Tranca-Ruas. Ismael tranca Virgínia e não a deixa sair. Ele detém as chaves da casa, dos aposentos e controla quem entra e quem sai. “Isso tem muita relação com o Exu Tranca-Ruas, que é o mensageiro entre as duas portas: a dos homens e a das divindades”, explica Samuel Santos. Essa entidade está presente no imaginário popular como assombrosa, assustadora, mas, de acordo com a religião, ele trabalha nas trevas em nome da luz. Abre ou fecha as portas conforme a necessidade. “Na montagem, é como se vivenciássemos o amor entre Xangô e Iansã, ou Exu Tranca-Ruas e Pombajira”, diz Ângelo Fábio.

Branca Virgínia foi pensada a partir da Pombajira. “Nós não incorporamos esse elemento de uma forma explícita. Pegamos traços que caracterizam as entidades e os transformamos no corpo de Virgínia, nas expressões, dilatações, contrações, sonoridade vocal”, define o diretor.

A atriz Smirna Maciel pesquisou êxtase religioso, transe e possessão. “Nas religiões de matriz africana, o elemento feminino e sua força são bem mais notórios, para mim, do que na religião cristã”, expõe. O corpo de Virgínia foi construído sobre três centros energéticos femininos: quadril, seios e mandíbula. “A voz da personagem, apesar de apresentar variações, é grave e tenta traduzir a feminilidade natural ou ancestral, sem o adoçamento sugerido pela cultura cristã ocidental”, complementa.

EM CENA
Nada é realista na montagem. Tudo é desordenado, esquecido pelo tempo, fechado em si mesmo. Os objetos são como os desalinhos, desequilíbrios dos habitantes à beira do precipício, da loucura. Um trono para o rei, impotente diante do amor e da loucura que o rodeiam. “A ideia é formar um ambiente isolado, fechado, sem contato nenhum com a vida que segue do lado externo”, diz Samuel, descrevendo o cenário da peça.

Dentro desse espaço fechado, escadas conduzem a plataformas, trampolins. “São objetos que simbolizam a tensão, a insegurança, pois o ser humano, quando sobe uma escada ou num trampolim, fica cambaleante, sem a firmeza necessária”, continua. Isso tudo está presente nos personagens e na atmosfera da dramaturgia. Os trampolins também servem de cama, já que a relação sexual entre o casal protagonista advém do abismo, da desconfiança.

“Eu jurei que viria dizer apenas estas palavras: ‘Ismael, tua mãe manda sua maldição’”. Elias, o irmão branco, chega à casa de Ismael, tal qual o rei Édipo, cego e perdido, às portas de Colono, como um duplo de Ismael, com traços finos, louro, cintura fina, meigo, carinhoso. Na montagem de O Poste, ele vem como um vodu, mandado pela mãe para amaldiçoar o irmão. A partir dessa cena, Ismael cai na própria desgraça e na que o circunda. “Nelson dilui a estrutura da tragédia grega, do coro que ajuda a criar um efeito épico. Os coros de Anjo negro não têm esse distanciamento da trama, da narração, portanto, ajudam a criar a atmosfera de terreiro que a peça tem”, argumenta o diretor.

Na tragédia mítica rodriguiana, Jesus Cristo entra também como símbolo do desejo de Virgínia: “Ismael, quero que você me arranje um quadro de Jesus! Jesus não tem o teu rosto, não tem os teus olhos – não tem, Ismael!”. Ao nascer Ana Maria, filha branca de Virgínia com Elias, Ismael a cega, assim como fez com o irmão, para que ela nunca veja sua negritude. Percebendo ali o início de uma relação incestuosa, Virgínia, com a cumplicidade do marido, traça o plano final para matar a filha, já adolescente.

Nelson reproduz, em cena, um microcosmo da sociedade brasileira, destacando a violência como fator de base dos fundamentos étnico-sociais, e a vivência de um casal inter-racial, na ambiguidade de sua linhagem mestiça. O dramaturgo expõe de maneira perturbadora temas adormecidos no inconsciente coletivo.

O projeto se chama Um Nelson ancestral. “Quando começamos os ensaios, cada um acrescentou sua experiência, inclusive eu, que tinha recentemente acabado uma pesquisa sobre a dança de culto a Oxum dentro do Afoxé Oxum Pandá”, conta Smirna Maciel. A intenção do diretor foi desconstruir o imaginário já cristalizado que se tem sobre a obra de Nelson. “Achei isso uma audácia tremenda, principalmente, por pegar um texto que muitos consideram ultrapassado. Pelo contrário! É um texto atualíssimo”, defende Ângelo Fábio. 

GUILHERME NOVELLI, jornalista.

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