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Coleções: O universo mágico das figurinhas

Mania pelos álbuns de cromos se mantém entre crianças e adultos; entre os temas, personagens de animações e times de futebol. E em ano de Copa, aumenta a corrida às bancas de revista

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Maio de 2014

Imagem Reprodução

Na manhã de um sábado recente, um garoto de 10 anos chegou à Banca Yale, no Bairro do Rosarinho, no Recife, acompanhado do avô. Estava colecionando três álbuns de figurinhas (Brasil de todas as Copas, Liga dos Campeões da Europa e Copa do Nordeste) e procurava trocar os cromos repetidos. Já tinha cumprido sua missão, quando, na hora de ir embora, enxergou numa prateleira no interior da banca mais um álbum de futebol, o da Premier League, o principal campeonato da Inglaterra. Pediu ao avô para comprar mais aquele e não aceitou a negativa baseada no argumento de que ele já estava colecionando, simultaneamente, três livros ilustrados. Chorou e esperneou. Insistia em ter também mais um álbum porque, além da paixão pelo futebol, era irresistível a sensação de abrir pacotes e colar figurinhas.

As pequenas fotos que surgem dos pacotes rasgados vão, aos poucos, ao serem coladas, compondo um quadro maior nas páginas, retratando ídolos do esporte, do cinema ou da TV, automóveis, monstrinhos ou princesas. A beleza e o colorido são os principais componentes do deslumbramento que toma conta dos colecionadores de todas as idades.

Mas, ao lado do prazer visual, há também uma forte sensação olfativa e tátil. Impossível não pensar no cheiro agradável de papel novo e da tinta de impressão que se sente ao abrir o envelope, como também não dá para esquecer o prazer que se tem ao manusear a superfície deslizante da figurinha, o contato das mãos com a textura das páginas do álbum, repletas de adesivos.

Numa época em que muitos propagam a iminente desmaterialização da cultura e a virtualização de quase tudo na área do entretenimento, o ato de colecionar figurinhas de papel, um resquício do mundo moderno, pré-digital, sobrevive com grande vigor. É uma atividade típica da cultura de massa do mundo industrial, uma brincadeira infantojuvenil que remete aos tempos das matinês de cinema, revistas em quadrinhos, pipocas, sorvetes, chicletes, brincadeiras com bola de gude, peão, bonecas, patins e bambolês. Todos são produtos que, apesar de definirem a experiência de ser criança, continuam fascinando muitos na vida adulta.

Nas bancas de revistas, as figurinhas autoadesivas apaixonam as crianças. Entre os adultos, são objetos antigos guardados e mostrados aos filhos ou aos netos. Esses itens da memória afetiva, lembranças e vivências que levam de volta à infância (no caso dos colecionadores adultos), ou reforçam a infância ainda presente, fazem girar também a economia.

Somente no Brasil, pelo menos oito editoras lançam dezenas de livros ilustrados a cada ano. A editora italiana Panini é a multinacional que domina o mercado de álbuns esportivos. Apesar de invisível para muitos, é um setor que envolve toda uma rede de editores, distribuidores, bancas de revistas e consumidores. A Panini, sozinha, imprime, em várias partes do mundo, entre cinco e seis bilhões de figurinhas ao ano, quase uma para cada habitante do planeta.

CROMOS ROUBADOS
Todos os anos em que se realiza a Copa do Mundo é a mesma história. Colecionadores correm às bancas de revistas em busca dos pacotinhos de figurinhas dos jogadores das 32 seleções participantes. Este ano, com a copa sendo realizada no Brasil, espera-se uma movimentação ainda maior por aqui.

Na Copa de 2010, as figurinhas foram parar até nas páginas policias dos jornais, quando cinco homens armados invadiram uma distribuidora em Santo André, na Grande São Paulo, renderam 30 funcionários e levaram 135 mil cromos. A polícia recuperou parte do roubo, mas, dias depois, um novo assalto a um caminhão de distribuição levou mais 200 mil cromos. As ações demonstram o valor econômico da aparente brincadeira de criança.

Para alguns, os roubos lembraram o enredo de um livro infantojuvenil lançado em 1969, e ainda hoje em catálogo, com mais de 60 edições publicadas. Em O gênio do crime, o autor João Carlos Marinho conta a história de um álbum de figurinhas que estava sendo colecionado por garotos. Naquela época, era muito comum que os álbuns dessem prêmios – como aparelhos de TV, rádio ou liquidificador – a quem completasse cada uma das páginas.


Álbuns são incrementados com passatempos. Imagem: Reprodução

Para dificultar a tarefa dos colecionadores, os editores costumavam prender a circulação de algumas figurinhas – que ficavam sendo consideradas raras ou difíceis –, para que somente poucos conseguissem completar. Só que, na história inventada por Marinho, uma gráfica clandestina decide imprimir os cromos raros e colocá-los no mercado. Um grande número de crianças começou a completar o álbum e a exigir os prêmios. A editora original foi à falência e teve de requisitar os serviços de um garoto com jeito de super-herói para resolver o problema.

Atualmente, no mundo real, as editoras garantem que não existem mais figurinhas raras, que todas são fabricadas e distribuídas na mesma quantidade. Mas persiste o mito de que algumas – as cromadas, por exemplo – são mais valiosas do que outras. A internet, em vez de prejudicar, neste caso, ajuda os colecionadores. As editoras incentivam as pessoas a encaminhar, pelo site, pedidos de cromos que faltam, permitindo que todos possam completar suas coleções. Além disso, o site Troca figurinhas tornou-se uma plataforma útil para encontrar cromos do presente e do passado. Há quase 1.600 álbuns cadastrados, alguns exemplares até da década de 1950. Mesmo no caso dos mais antigos, tem sempre gente querendo trocar ou comprar, para conseguir talvez aquela raridade que ficou faltando no álbum da Copa de 1970, por exemplo.

ESPECIALISTA
No Recife, a Banca Zapp, no Bairro do Derby, acabou se especializando nesse mercado. Num único dia, é possível encontrar por lá até 20 álbuns diferentes sendo vendidos simultaneamente, com temas para todos os gostos. Além dos populares sobre futebol, recentemente têm sido comercializadas figurinhas com temas de filmes de animação como Aviões, Peabody e Sherman e Smurfs 2, desenhos da TV como Bob Esponja, novelas juvenis como Violetta 2 e Chiquititas, personagens como Chaves, Tartarugas Ninja, Ben 10 e Angry Birds e Galinha Pintadinha. Há também livros ilustrados com ídolos musicais, filmes de Hollywood e até sobre religião.

Jesus dos Passos, dono da banca, diz que vem investindo no segmento há 12 anos, para ocupar um nicho de mercado. Todos os sábados, ele monta um toldo para abrigar a turma que chega para trocar repetidas. E, uma vez por mês, leva a iniciativa ao Recife Antigo de Coração, evento que ocorre no Bairro do Recife. De acordo com Passos, a popularização dos gadgets digitais não prejudicou este tipo de colecionismo. “Pelo contrário, só tem crescido o movimento e tenho vendido até para pessoas do interior onde não há bancas”. Ele acrescenta que a tentativa das editoras de fazer álbuns virtuais não tem dado muito certo, tanto que, ao abrir os pacotes da Liga dos Campeões, por exemplo, as crianças abandonam no chão, imediatamente, o cartão com o código que dá direito a colecionar o álbum virtualmente e concentram-se nos cromos em papel. “Elas querem mesmo é pegar nas figurinhas físicas.”

O PRECURSOR ITALIANO
No Brasil, atuam editoras como a Abril (no segmento de álbuns sobre filmes), a Topps, a Kromos, a Alto Astral, a Online Editora, a Deomar, entre outras. Mas é a multinacional Panini que domina o mercado brasileiro e mundial. O italiano Giuseppe Panini, ex-dono de banca de revistas, que havia se tornado distribuidor, fundou a editora em 1961, quando decidiu comprar um lote de cromos inutilizados e inventar um álbum para eles. O empresário não foi o criador da figurinha nem dos livros ilustrados de futebol, mas foi quem, junto com quatro irmãos sócios, transformou a brincadeira numa indústria mundial.

Em cinquenta anos, o grupo mudou de dono cinco vezes e expandiu-se para outras áreas editoriais. Hoje, tem filiais em 10 países e vende seus produtos em mais de 100. Com 900 funcionários, teve em 2012 um faturamento de 637 milhões de euros (cerca de R$ 2,1 bilhões). E, principalmente, detém os direitos exclusivos da Fifa para os álbuns de futebol das competições oficiais – além de contratos com as ligas nacionais de futebol em muitos países.

A força dos cromos na Itália é tanta, que existe até um museu especializado no assunto, em Modena, cidade onde fica a sede da Panini e que é considerada a “capital mundial da figurinha”. Aberto ao público desde 2006, o Museo della Figurina é baseado no acervo doado por Giuseppe Panini, em 2002, à municipalidade de Modena. Até então, a coleção era mantida fechada no interior da empresa. O atual acervo do museu tem mais de 500 mil itens, entre figurinhas, cards e outros objetos afins.

As exposições contam a história do hobby desde o seu surgimento, na França. Considera-se que as primeiras figurinhas foram impressas em 1867, em Paris, pela Lithographie Bognard, para a revista Au Bon Marché, que tratava dos pavilhões montados para a Exposição Universal da Arte e da Indústria, realizada em Paris naquele ano.


Figuras de jogadores sãos as mais procuradas durante campeonatos.
Imagem: Reprodução

Durante décadas, as figurinhas serviram para a promoção de produtos comerciais. Elas são consequência do surgimento da cromolitografia, processo gráfico que permitia imprimir rapidamente grandes quantidades de imagens a cores. Foi uma revolução, no século 19. De repente, as pessoas tiveram acesso relativamente barato à reprodução gráfica de imagens de boa qualidade, antes só acessíveis aos ricos, através de pinturas. Tudo isso veio numa época de rápida industrialização e transformação urbana na Europa. As figurinhas se tornaram imediatamente um tema que não podia ser ignorado em qualquer sociologia da infância ou história do cotidiano.

CARÁTER IDEOLÓGICO
Os álbuns de figurinhas são retratos preciosos das épocas em que foram publicados e refletem a ideologia dominante. Eles acompanharam de perto todo o século 20, a era de ouro do cinema de Hollywood, a difusão das histórias em quadrinhos, a retomada dos filmes de animação nos últimos 20 anos, a música pop, a transformação do futebol numa indústria bilionária mundial.

Até os anos 1970 (ainda com figurinhas que precisavam de cola para serem afixadas), eram comuns, além do futebol e da cultura pop, os álbuns sobre figuras ilustres e vultos históricos. Havia uma certa preocupação didática que, evidentemente, refletia posições políticas dominantes na época em que circularam. No Brasil, de onde saíram vários álbuns generalistas que misturavam um pouco de tudo – de ídolos do automobilismo a animais exóticos – havia espaço, no começo da década, para cromos que retratavam o chamado “Brasil grande”, defendido pelo regime militar, com figurinhas que comemoravam obras como a construção da Transamazônica e da ponte Rio-Niterói, ou que mostravam o general-presidente Emílio Garrastazu Médici.

GRANDES ACERVOS
O desembargador paulista Moacir Andrades Peres é conisderado o maior colecionador do país. Ele diz ter cerca de três mil álbuns diferentes, entre os quais 200 realmente valiosos. Além de colecionador contumaz, Peres adquiriu acervos de outras pessoas para aumentar o seu e exibe, como troféu, a primeira figurinha de Pelé, em 1957, ainda como um adolescente magro, usando um bigodinho.


Dono da Banca Zapp, Jesus dos Passos especializou-se na venda de álbuns de figurinhas.
Foto: Marcelo Abreu

No Recife, um dos colecionadores mais assíduos nas bancas em que há troca de cromos é Geraldo André da Silva, de 68 anos. Ele tem cerca de 60 álbuns completos – sem contar alguns que foram perdidos numa chuva que invadiu sua casa. É absolutamente eclético em seu gosto. Coleciona de futebol a princesas, passando por animais selvagens e carros. Tem, entre seus trunfos, o livro ilustrado completo de As Aventuras de Perna e Buco, uma curiosa campanha feita pelo governo do estado para estimular as crianças a trocar notas fiscais pelas figurinhas e que foi um sucesso em Pernambuco, com mais de 400 mil exemplares distribuídos, no início da década de 1980.

Silva é um daqueles colecionadores natos, pessoas que sentem prazer em guardar tampinhas de garrafa, moedas, cards, chaveiros, selos, latas de cerveja, tudo o que possa ser catalogado, uma verdadeira testemunha da paixão humana pelas coleções.

As figurinhas representam um universo supostamente infantil que nunca abandona as pessoas. Ao conversar com os pais e avós que acompanham as crianças às bancas onde são realizadas trocas nos fins de semana, é comum ouvir histórias que dão conta da retomada da paixão na idade adulta, quando os filhos estão aí, por volta dos seis, sete anos e começam a se interessar por esses objetos.

Mas os filhos crescem, abandonam o hábito na adolescência e alguns pais, no embalo, continuam as coleções, decididos a não mais esquecer a antiga curtição de infância. Avós relatam a frustração de não terem tido dinheiro para colecionar cromos quando eram crianças e, hoje, para compensar, investem o que podem nos álbuns dos netos. Quanto às crianças, elas não tiram os olhos dos maços de figurinhas repetidas dos colegas de troca-troca. Não perdem tempo com divagações. Curtem a atividade de forma visceral e imediata, ainda sem nostalgia e sem o sentido do tempo que passa. 

MARCELO ABREU, jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu - a aventura na estrada do Oriente.

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