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Comunitário: Tablado para quem quiser

Essa dialógica manifestação teatral compartilha preocupações, verbaliza problemas e procura resolvê-los

TEXTO Pethrus Tibúrcio

01 de Junho de 2014

Desde sua criação em 1989, as Loucas da Pedra Lilás trabalham temas como violência de gênero e saúde sexual

Desde sua criação em 1989, as Loucas da Pedra Lilás trabalham temas como violência de gênero e saúde sexual

Foto Divulgação

Para fora da porta de casa, os locais onde vivemos nossas experiências mais substanciais são o que podemos chamar de “comunidades”. Dentro delas, problemas, queixas comuns para lugares comuns. Esse grupo de pessoas é o intermédio entre o indivíduo e a sociedade mais ampla, que precisa dialogar e, às vezes, o faz pelo teatro.

Há, porém, duas formas de se pensar “comunidade” e, portanto, o teatro que se faz nela. A primeira aponta para a comunidade no sentido geográfico: um bairro, uma rua, uma vila. A segunda ignora a proximidade dos participantes e os reúne pelos interesses e pautas compartilhadas. Marcia Pompeo, pesquisadora da Universidade do Estado de Santa Catarina, considera essa uma das formas mais frequentes de se fazer teatro no país. “O teatro na comunidade, no Brasil, é uma prática ampla, diversa, viva, que não para de crescer, e está ganhando visibilidade e articulação.”

Essas formas comunitárias do fazer teatral podem ser divididas em três pilares, caracterizados pelos modos como os fluxos de informação acontecem: teatro para, com e pela comunidade. O primeiro caminho aponta para perspectivas que busquem levar informações para locais onde elas são precárias. A segunda para um olhar que, mais do que isso, procure democratizar as formas de se fazer teatro. Esses dois caminhos são evoluídos ou complementados por iniciativas dialógicas, nas quais eles são feitos pelo povo, a fim de fortalecer comunidades, compartilhar preocupações, verbalizar problemas e procurar maneiras de resolvê-los.

O teatro para comunidade é facilmente identificável, através de duas figuras recorrentemente usadas pelo poder público para a transmissão de informação: Mateus e Catirina, que fazem uma série de campanhas, a exemplo da educação sanitária, com esquetes dos personagens. Nessa perspectiva quase unilateral de comunicação, as apresentações de teatro são frequentemente seguidas de sessões de perguntas e respostas e divulgação de material instrutivo. O programa Consultório na Rua, política pública promovida pelo Ministério da Saúde, lançado em maio deste ano, é um exemplo. A intenção é inserir moradores de rua de 19 bairros do Recife na rede de saúde pública. As inserções nos bairros são sempre abertas por esquetes de teatro, que falam sobre doenças e serviços. “A linguagem nos dá a possibilidade de falar de doenças como tuberculose e hanseníase de forma lúdica e atrativa. Nas apresentações, falamos de prevenção e orientamos a busca de serviços e profissionais”, explica a coordenadora do projeto, Brena Leite.


Nas “místicas” do MST, utiliza-se o teatro para renovar a esperança de uma revolução social. Foto: Divulgação

FALAR POR SI
Em certos contextos, essa perspectiva “de cima para baixo” não é a única e pode ser considerada ultrapassada. A partir de dado momento, busca-se acesso ao teatro num movimento de levá-lo para as áreas rurais e urbanas empobrecidas, tirando dele o caráter de entretenimento de elite e dando mais abertura às pessoas falarem por si. Um exemplo local ocorre hoje na comunidade do Detran, na zona oeste do Recife, através de um projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

O Arte e saúde: promovendo comunicação e a capacidade funcional em idosos através do teatro é uma iniciativa interdisciplinar dos professores Luiz Reis (de Teatro), Vanessa de Lima (de Fonoaudiologia) e Kátia Magdala (de Terapia Ocupacional). Junto a vários bolsistas, o grupo reúne, todas às tardes de quintas-feiras, cerca de 20 a 25 mulheres idosas em oficinas de criação e discussão. Além de formá-las para participarem do processo criativo do teatro, o projeto quer fortalecê-las como espectadoras.

“A realidade do Detran aparece naturalmente nas narrativas e memórias das mulheres, mas a gente também quer que elas circulem e ampliem suas experiências, percebendo o que lhes foi suprimido”, explica Luiz Reis. Uma das iniciativas do projeto – financiado pela UFPE e, mais recentemente, por edital do Ministério da Cultura – é levar as mulheres para lugares e espetáculos que não conheciam ou tinham dificuldade de acesso, como a Paixão de Cristo e O Rei Lear no meu quintal. A escolha do Detran como receptor do projeto se deu, entre outras motivações, pela ausência de aparelho cultural que receba ou movimente apresentações no local. Hoje, o projeto funciona no terraço de uma escola municipal.

Segundo a pesquisadora Marcia Pompeo, esse tipo de trabalho se relaciona com a perspectiva marxista de encarar a classe trabalhadora como a classe revolucionária. Barateamento dos ingressos e instrumentalização dos espetáculos foram as primeiras iniciativas. Ela relaciona estas ao Teatro de Agitação e Propaganda, criado a partir da Revolução Russa. O agitprop, como também era chamado, mantinha uma postura doutrinária (a fim de difundir os pensamentos socialistas), mas colaborou ao estimular o uso de símbolos, estabelecer diálogos e cenas curtas, favorecendo o conteúdo em detrimento da forma. “Essa simplicidade permitia que se apresentassem em diferentes espaços, como em frente de fábricas, na rua, em zonas rurais, dando também mobilidade para que mudassem de um espaço para outro com facilidade”, explica ela.


Desenvolvido por professores da UFPE, projeto Arte e Saúde estimula um grupo de idosas a participarem do processo criativo do teatro. Foto: Divulgação

TEATRO DIALÓGICO
Uma terceira perspectiva do teatro de comunidade, mais horizontal, faz uma crítica ao teatro propagandístico e um convite às pessoas a falarem da própria realidade. Essa linha é conduzida, principalmente, pelo dramaturgo Augusto Boal que, em contato com a pedagogia de Paulo Freire, criou o Teatro do Oprimido. “É um conceito guarda-chuva de proposição teórico-prática de um teatro aplicado, também com interesses estéticos, mas sobretudo sociais, terapêuticos e políticos”, explica Luiz Reis. A ideia é dar voz a pessoas em situações de opressão e propor soluções, usando o teatro como ferramenta de libertação. “É usar o teatro como ensaio de uma revolução”, complementa.

As Loucas de Pedra Lilás surgiram em 1989, portanto, há 25 anos. Nos protestos de rua, tal qual a Marcha das Vadias, suas apresentações irreverentes são destaque nas coberturas midiáticas. Seu teatro é declaradamente feminista. As pautas que tinham há um quarto de século mantêm-se em pleno 2014: autonomia da mulher, violência de gênero, saúde sexual e reprodutiva, aborto, mortalidade materna. “O Loucas nasce dentro da demanda do movimento feminista de dar mais visibilidade às nossas questões de maneira lúdica e artística”, diz Cristina Nascimento, coordenadora pedagógica do grupo.

As reuniões, que hoje acontecem alternadamente nas casas das integrantes, deixam claro que o conceito de comunidade não se restringe ao espaço geográfico. Elas são: Ana Bosch, Cristina Nascimento, Patrícia Lima e Nadege Nascimento. Cara pintada, roupas pretas e vozes estridentes, elas vão às ruas, escolas, a postos de saúde, seminários, e aonde mais sentirem necessidade, a fim de criar temporários espaços de discussão. Todos os tópicos – regrados pelo caráter anticapitalista, antirracista e anti-patriarcal – defendem a emancipação da mulher. Quando perguntada sobre o porquê do uso do teatro como comunicação, Cristina responde: “O teatro é uma arte viva e presente, que junta diversas linguagens a partir de um meio de comunicação direto e não intermediado”.

O processo criativo do grupo também busca aparato teórico no Teatro do Oprimido. Dentro dele, Boal apresentou várias metodologias e a mais conhecida é o teatro-fórum. A ideia é criar uma situação de opressão condizente com a realidade daquela comunidade, e, no meio da peça, quando a situação chega ao seu limite, os intérpretes (ou curingas) convidam o público a fornecer soluções e, às vezes, atuarem para colocarem fim às questões. O processo criativo das Loucas começa em reuniões internas entre as integrantes, uma vez que elas vêm de contextos diferentes e carregam experiências e leituras diversas. A partir disso, elas estabelecem conversas com grupos com os quais interagem, como parentes e vizinhas. “Quando vamos para as ruas, criamos verdadeiras audiências públicas, às vezes com presença de representantes do poder público”, diz Cristina.


O dramaturgo Augusto Boal faz um convite às pessoas para falarem da própria realidade. Foto: Divulgação

MÍSTICAS
Marcia Pompeo identifica a prática de teatro na comunidade a partir de iniciativas vindas das políticas públicas, das organizações não governamentais (ONGs), de instituições religiosas, de grupos de teatro, de pessoas independentes e também dos movimentos sociais. O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) utiliza, desde o princípio, as práticas teatrais e elas são apresentadas em grupos consolidados ou dentro das “místicas”.

Na rotina dos movimentos sociais, é comum que os participantes destinem momentos específicos à prática das chamadas místicas. No MST, elas acompanham sua origem, por volta de 1984. Usam diversas linguagens, inclusive o teatro, a fim de fazer resgates históricos e renovar a esperança de uma revolução social, sendo o principal local de socialização das experiências individuais e comunitárias.

Ana Emília Borba, militante do Coletivo de Comunicação e Cultura do MST Pernambuco, explica a prática dentro do movimento: “As místicas são parte de nosso cotidiano, alimentam nossos sonhos, nossa utopia. É uma mistura de sentimentos que são expressos de diversas formas, que podem ter ou não as linguagens artísticas”.

É também a partir de Augusto Boal que o teatro surge no Movimento dos Trabalhadores sem Terra de forma mais organizada. Em 2001, no Rio de Janeiro, militantes de vários estados participaram de um curso sobre o Teatro do Oprimido com o dramaturgo. Lá, deram início à chamada Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré – coletivo responsável pela articulação nacional entre os grupos, promovendo encontros de intercâmbio entre eles.

“O teatro, para nós, é um instrumento de transformação social, deve servir como espaço de reflexão, crítica e ação. O trabalho mais interessante que fizemos foi em 2005, durante a Marcha Nacional por Reforma Agrária, quando organizamos um teatro-procissão com mais de 200 pessoas em cena”, comenta Ana Emília, sobre a trajetória do movimento nacional com o teatro. A partir dessa experiência, diversos grupos se formaram no país. Em Pernambuco, apesar das oficinas feitas com os assentados e seus filhos, nenhum grupo foi consolidado.

As práticas dentro do MST não apenas quebram a total dependência da mídia hegemônica – que é frequente alvo de críticas dos militantes –, mas dialogam sobre questões internas ao movimento, ao mesmo tempo que procuram externar em sua bandeira opressões como racismo, machismo, homofobia e violência doméstica, discutidas dentro do movimento. 

PETHRUS TIBÚRCIO, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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