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Magic Bus: O tapete voador da contracultura

Há 50 anos, o escritor Ken Kesey pegou a estrada com sua turma de gozadores num ônibus colorido e deu início à cultura psicodélica

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Junho de 2014

Viagem no antigo ônibus escolar partiu da Califórnia

Viagem no antigo ônibus escolar partiu da Califórnia

Foto Reprodução

Depois de terminar de escrever seu segundo romance, Sometimes a great notion, e publicá-lo em 1964, Ken Kesey decidiu abandonar a carreira de escritor. Dois anos antes, seu primeiro livro, Um estranho no ninho, havia sido um grande sucesso e seria adaptado para o cinema por Milos Forman, na década seguinte. Mas, naquele 1964, aos 29 anos, Kesey queria mesmo era experimentar. Junto com uma trupe de amigos que orbitavam em torno de sua casa de madeira no vilarejo de La Honda, a 70 quilômetros de São Francisco, ele planejou uma viagem que seria um marco na sua mudança de vida: um trajeto de costa a costa, partindo da Califórnia e cruzando todo o país em um velho ônibus escolar.

A desculpa para a empreitada era ir a Nova York para o lançamento do segundo livro e visitar a Feira Universal que se realizava na cidade. Mas, na verdade, Kesey e seus amigos queriam mesmo era experimentar LSD em grandes quantidades, e sair pelo país adentro chocando as pessoas com o ônibus colorido, as roupas malucas, ouvindo rock a todo volume e emitindo sons e ruídos através de microfones e alto-falantes instalados no ônibus. O plano era sentar no bagageiro do teto para soprar bolhas de sabão nos transeuntes e tirar um som qualquer dos instrumentos musicais que levavam. E também registrar tudo em filme de 16 milímetros para algum projeto no futuro. Em suma, queriam responder à seguinte pergunta: o que acontece quando um comportamento estimulado por alucinógenos colide com o conformismo das vidinhas banais das pessoas comuns?

A aventura do ônibus de Ken Kesey e seus Merry Pranksters, iniciada em 17 de junho de 1964, acabou se tornando um marco na contracultura do século 20, um referencial que viria a influenciar toda uma geração, levando à popularização do mito da viagem, em todos os sentidos. Pode-se dizer que o Magic Bus foi o momento em que a geração beat dos anos 1950 se transformou na moçada hippie da década de 1960. O próprio escritor diria depois, numa entrevista em 1999, que se considerava “jovem demais para ser um beat e velho demais para ser um hippie”. Era, então, o elo entre os dois movimentos.

Em junho de 1964, “hippie” era uma palavra ainda de uso restrito. O rock’n’roll estava na fase ingênua dos Beatles de terno, que haviam acabado de conquistar a América. Bob Dylan era um cantor folk de música de protesto. Toda a cultura das drogas, com seu lado sombrio e violento, era coisa de um futuro distante. O LSD – iniciais para a dietilamida do ácido lisérgico – inventado em laboratório, em 1938, era de uso tão limitado, que não havia uma lei que o proibisse.

Mas Kesey já estava por dentro de tudo. Desde 1961, ele vinha sendo pago para ser cobaia num programa secreto de experimentação de drogas psicoativas no Hospital de Veteranos de Menlo Park, próximo a São Francisco. O objetivo do projeto, patrocinado pela CIA, era estudar os efeitos de drogas como LSD, psilocibina e mescalina nos seres humanos. Intelectuais, boêmios e dissidentes em geral aproveitavam-se do programa para ludibriar o governo e “expandir a consciência”, como se dizia na época.


Ken Kesey era cobaia de um programa de drogas psicoativas.
Foto: Reprodução

LA HONDA
A experiência transformou sua vida. Ken Kesey havia nascido no estado do Colorado, em 1935, mas foi criado no Oregon, no meio rural. Quando criança, interessava-se por ventríloquos, mágica e hipnose. Havia se mudado para a Califórnia para tentar ser escritor. Viveu uns tempos em Palo Alto – próximo à Universidade de Stanford, onde estudava Literatura –, numa rua cheia de intelectuais. Lá conheceu os amigos que seriam seus companheiros de aventuras.

Quando se mudou para o bucólico vilarejo de La Honda, as experiências com as drogas inspiraram um estilo de vida que se assemelhava a um circo ambulante de maluquices. Freak passou a ser a palavra do momento. Piração, experimentação, eliminação de barreiras mentais, um mundo novo a ser vivenciado a partir da liberação dos sentidos sob o efeito do ácido lisérgico.

Foi Ken Babbs, um dos amigos, quem deu a ideia de aproveitar a viagem para realizar as chamadas pranks (presepadas, gozações, trotes, palhaçadas), para chocar a sociedade da época, considerada por eles careta e conservadora. A experiência foi registrada pelo jornalista Tom Wolfe, um dos grandes nomes do novo jornalismo, que escreveu o clássico livro-reportagem intitulado O teste do ácido do refresco elétrico, publicado em 1968.

O grupo acabou se denominando como os Merry Pranksters, que pode ser traduzido como “presepeiros alegres” – a expressão foi vertida para o português na edição brasileira do livro de Wolfe para o igualmente correto “festivos gozadores”.

O ônibus levava a bordo 15 pessoas e tinha pintado, no lugar que indica o destino, a palavra Furthur, uma corruptela de further que significa “mais adiante”, uma perfeita definição filosófica para a experiência da viagem. Dentro do veículo, fabricado em 1939 pela International Harvester, havia bancos, beliches, uma pia e uma geladeira, onde nunca faltavam garrafas com suco de laranja contendo LSD. Na traseira, estava escrito: “Cuidado: carga estranha”.

Mas a maior atração do excêntrico grupo era o motorista. Kesey o havia conhecido quando, um dia, ainda morando em Palo Alto, viu alguém surgir do nada em frente de sua casa dizendo que seu jipe tinha quebrado. O sujeito começou imediatamente a desmontar o carro, falando em disparada, como se fosse um maníaco. “Eu assisti a ele correndo pra lá e pra cá, um personagem frenético e enlouquecido falando num monólogo que parecia com o Finnegans Wake (de James Joyce) tocado em versão acelerada.”


Ida dos Beatles à Índia marcou auge da psicodelia. Foto: Reprodução

Sim, era Neal Cassidy, o próprio herói do livro On the road – pé na estrada, escrito por Jack Kerouac. Cassidy havia sido imortalizado sete anos antes como o Dean Moriarty no clássico da literatura beat. Pois aí estava ele de novo, em carne e osso, agora aos 39 anos de idade, juntando-se sem convite ao bando de presepeiros, para fazer o que sempre fez de melhor: dirigir veículos de uma forma totalmente irresponsável, mas, paradoxalmente, segura, tagarelando sem parar sobre os mais variados assuntos.

COM TIMOTHY LEARY
Formado o grupo, o ônibus seguiu em direção ao leste, parando em lugares como Phoenix, no Arizona, e Houston, no Texas. Os adultos ficavam atônitos com a passagem do veículo, as crianças se divertiam como na chegada de um circo à cidade. Pouco antes de Nova York, os pranksters pararam na comunidade de Millbrook, onde o professor Timothy Leary, o guru do LSD, mantinha uma comuna de experimentação psicodélica, no meio de uma fazenda. Tom Wolfe descreve a chegada do grupo no livro Teste do ácido: “Quando avistaram a grande mansão de pão de ló, com suas torres, torrinhas e seixos formando quebra-cabeças (...) começaram a atirar bombas de fumaça verde do topo do ônibus”. O próprio Leary, na sua autobiografia Flashbacks - LSD: a experiência que abalou o sistema, lembra que um amigo lhe confessou naquele dia: “Sinto como se fôssemos uma bucólica aldeia índia invadida por um bando de vaqueiros fanfarrões do Oeste selvagem”.

O ônibus cheio de excêntricos foi parado algumas vezes pela polícia, mas ninguém chegou a ser preso. Depois da viagem, os pranksters promoveram em São Francisco os famosos trips festivals e os acid tests, festas em que se consumia drogas sob luzes estroboscópicas, ao som de bandas de rock como Greatful Dead e Jefferson Airplane. Em 1967, o movimento hippie tomou conta de São Francisco. Virou moda nos Estados Unidos pegar a estrada, deixar o cabelo crescer e levar uma vida fora do sistema. O que em 1964 se restringia a grupo de malucos gozadores passou a ser um estilo de vida difundido pela mídia. Em 1969, o Festival de Woodstock amplificaria esses valores para boa parte do mundo.

GRANDE INFLUÊNCIA
O LSD foi proibido em 1967. Procurado pela polícia norte-americana, Kesey fugiu para o México, mas depois acabou sendo preso por uns meses. Aquele velho ônibus escolar colorido, no entanto, havia se tornado um símbolo muito forte e seria usado pela contracultura nos anos seguintes.

A banda The Who lançaria, em 1968, uma música chamada Magic bus (cuja letra, na verdade, trata apenas de um veículo que leva o narrador da canção para a casa da namorada). Na capa de uma coletânea da banda, um ônibus londrino de dois andares foi pintado em cores psicodélicas. Também em Londres, logo após o colorido disco Sgt. Peppers, os Beatles lançavam o álbum e o filme Magical mystery tour, cuja história se passa num ônibus pintado de muitas cores. John Lennon mandou pintar sua limusine em estilo psicodélico.

O guitarrista Jimi Hendrix, mais do que ninguém, ajudou a popularizar a estética florescente, de cores fortes e distorcidas, quando lançou, em 1967, seu primeiro disco, intitulado Are you experienced. A pergunta referia-se, é claro, à experiência com ácido.


Pergunta Are you experienced? era relativa ao LSD. Imagem: Reprodução

Em 1969, o mesmo ônibus dos pranksters cruzou de novo o país, dessa vez em direção a Woodstock, levando o grupo para o famoso festival. Também em 1969, saiu o filme Sem destino (Easy rider), de Dennis Hopper, que conta sobre uma viagem de moto de três aventureiros pelos Estados Unidos. Por essa época, os europeus também já estavam se mandando para a Índia e o Nepal, por terra, seguindo de ônibus, trem, caminhão, carros, ou um misto de tudo (menos avião). Pelo menos na superfície, o mundo estava mais solto e colorido e o Magic Bus, verdadeiro tapete voador da contracultura, já havia virado um mito.

O filme que seria feito originalmente pelos pranksters, com imagens da viagem, não foi concluído. Ao voltar à Califórnia, perceberam que não conseguiriam sincronizar as imagens com o som, registradas de forma desorganizada. Tom Wolfe usou o material bruto para escrever seu livro O teste do ácido com grande riqueza de detalhes. Se fosse depender somente da memória caótica dos participantes da experiência, estaria perdido. Somente no ano 2000 é que a primeira parte do filme veio à tona, resumindo em 56 minutos a viagem. Chamou-se The intrepid traveler and his merry band of pranksters look for a kool place (O viajante intrépido e seu bando de presepeiros alegres procuram um lugar legal).

Em 2011, foi lançado o documentário intitulado Magic trip. Os diretores Alex Gibney e Allison Ellwood tiveram acesso a 50 horas de imagens e 150 horas de áudio, registrados na viagem de Kesey, e daí tiraram os momentos mais importantes para oferecer uma visão crítica da empreitada.

Ao longo dos anos, foram saindo livros e relatos sobre o que significou a viagem dos pranksters. Até hoje, nos Estados Unidos, os remanescentes da contracultura comemoram o feito. Figuras como Ken Babbs e Wavy Gravy (o palhaço hippie e mestre de cerimônia de Woodstock) participam de festivais que relembram aqueles dias. O próprio Kesey e os pranksters apareceram, em 1997, em shows das bandas de rock Phish e Jane’s Addiction.

Ken Kesey usou o humor e o choque para despertar uma nova consciência e desafiar o establishment. Certa vez, escreveu: “Eu achei que devia viver minha arte, em vez de descrevê-la. O ônibus é uma metáfora compreendida instantaneamente. É como o veículo de No tempo das diligências, de John Ford, só que com o caubói Neal no comando, exatamente como John Wayne no filme”.

O respeitado Instituto Smithsoniano tentou comprar o ônibus original, para colocá-lo em exposição nos seus museus. Mas o escritor rejeitou a proposta e, depois, fiel ao espírito do grupo, tentou vender um veículo falso à instituição. Dessa vez, o trote não pegou. Kesey virou um mito da contracultura e morreu em 2001, aos 66 anos. O ônibus colorido passou 15 anos semi-abandonado em um pântano na fazenda da família, no Oregon. Desde 2006, um grupo de amigos da velha guarda, liderado pelo filho, Zane Kesey, tenta conseguir um dinheiro para restaurar o veículo e exibi-lo pelo país. Porque, como disse uma vez o próprio Ken Kesey, “o ônibus mesmo só existe um, exatamente como a nave Enterprise que também é única”. 

MARCELO ABREU, jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu - Aventura na Estrada do Oriente.

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