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Processos criativos: Os caminhos que levam ao insight

Inerente à trajetória humana, a criatividade não é exclusiva do ambiente artístico, embora nele reconheçamos sua evidência. Há como sabermos onde exatamente ela se desencadeia no nosso corpo?

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2014

Imagem Mauricio Planel

O escritor Milton Hatoum sempre começa seus livros pelo fim. A estilista Adriana Barra registra as sensações que lhe aparecem em viagens. O pintor Bruno Vilela coleciona cadernos em que rabisca impressões e desenhos. A cantora e compositora Bárbara Eugênia usa sua vida como combustível para versos e melodias. O cineasta Beto Brant parte de uma matriz literária para iniciar uma viagem de corpo a corpo com o olhar. A fotógrafa e videasta Virgínia de Medeiros trabalha sozinha, sem equipe, e se envolve muito com seus personagens. O escritor Rodrigo Fresán não tem um sistema, horário ou disciplina. A atriz Marieta Severo se apossa de imagens e referências para lhe servir de munição.

Eles são artistas. Destacam-se e ganham a vida com as obras a que se dedicam, alguns há mais tempo, outros de umas temporadas para cá, todos com afinco. São indivíduos que iluminam as acepções do verbo criar, cuja primeira aparição nos léxicos remonta ao ano de 1001, segundo o Dicionário Houaiss. A criatividade, decerto traduzida com mais nitidez na trajetória dos que imergem na carreira artística, acompanha a humanidade desde sempre. E a ciência tem procurado, continuamente, delinear como se dão os processos criativos no cérebro humano.

Os estudos vêm se intensificando graças ao aprimoramento das tecnologias de mapeamento imagético do corpo humano. Neurocientistas, psicólogos e médicos tentam elucidar qual o caminho das ideias e das articulações criativas na rede de sinapses formada pelos neurônios, as células do cérebro. “Tipos diferentes de criatividade utilizam partes diferentes do cérebro. Nos meus estudos, comprovamos que cada um de nós precisa do trabalho conjunto dos dois hemisférios para um resultado criativo”, explica à Continente a neurocientista Lisa Aziz-Zadeh, doutora em Psicologia e professora-assistente do Brain and Creativity Institute (literalmente, Instituto do Cérebro e da Criatividade, coordenado pelo neurocientista português Antonio Damasio) e do departamento de Ciência Ocupacional da Universidade da Southern California, em Los Angeles.


Para criar, a estilista Adriana Barra toma nota de sensações que tem em viagens.
Foto: Romulo Fialdini/Divulgação

Ao hemisfério direito, por exemplo, cabem as funções de reconhecimento de rostos, melodias, notas musicais, sons ambientais, formas e padrões geométricos; o pensamento concreto; o senso de direção; a memória não verbal; e as emoções relacionadas à sensação de evitar algo, como o medo. À metade esquerda, por sua vez, estão reservadas a linguagem (letras, palavras, memória verbal, falar, ler, escrever), o ato de fazer contas, as resoluções lógicas, processuais e sistemáticas de problemas, análise, pensamento abstrato e as emoções ligadas à aceitação, como afeto. “É complicado generalizar no que se refere ao cérebro, mas, se formos ter uma vaga ideia de quais regiões são comumente associadas aos processos criativos, geralmente teremos atividade no córtex pré-frontal, na ínsula, nas regiões motores e nas redes recompensatórias, que respondem por aquela sensação boa que você tem quando passa por um momento ‘aha!’”, acrescenta dra. Aziz-Zadeh.

Em seu estudo mais recente, Aha! The neural correlates of verbal insight solutions (Aha! Os correlatos neurais de soluções verbais de insight), 12 participantes com idades entre 20 e 40 anos, seis homens e seis mulheres, todos destros, completaram 48 testes contendo anagramas, aplicados dentro de uma máquina de fMRI (ressonância funcional magnética). Ao solucionar o anagrama, eles tinham que apertar um botão para indicar se haviam chegado à solução como algo que simplesmente irrompeu na mente (“aha!”) ou se haviam procurado a resposta a partir de memórias e conhecimento prévios. Os resultados apontam a proeminência do córtex pré-frontal direito, área já associada à criatividade, e a utilização dos dois hemisférios em simultaneidade para atender demandas específicas, o que pode ser um componente importante para o insight.

“Pode ser” é uma locução repetida ad nauseam nesse estudo e em artigos afins. O fato é que, no campo da criatividade e no seu percurso cerebral, para cada certeza há um sem-número de mistérios. “O cérebro sempre me fascinou, desde a minha primeira aula de anatomia como estudante da graduação. Tudo ao nosso redor – dos edifícios onde vivemos aos carros e aviões que nos levam, das roupas que vestimos aos nossos smartphones e às músicas que ouvimos dentro deles – nasceu como apenas uma visão dentro de um cérebro humano. Meu objetivo, então, foi tentar entender os achados contraditórios da neurociência da criatividade, indo além da discordância em quais aspectos do cérebro eram mais importantes para os processos criativos”, diz Shelley Carson, psicóloga e professora da Universidade de Harvard, a respeito do seu livro Your creative brain – seven steps to maximize imagination, productivity and innovation in your life (O cérebro criativo – aprenda a aumentar a imaginação, melhorar a produtividade e inovar em sua vida, na tradução da edição nacional publicada pela Best Seller, atualmente esgotada).

Tanto ela como a dra. Lisa Aziz-Zadeh citam o exemplo do matemático grego Arquimedes e o fenômeno da “Eureca!”, palavra que o grego teria gritado ao correr nu pelas ruas de Siracusa após constatar, enquanto tomava banho, como poderia saber se a coroa de ouro do rei Hierão havia sido adulterada ou não (e vem daí a lei do empuxo que todos estudam na física). O mito da inspiração instantânea persiste, assim como a compreensão de que o processo criativo pode ser incrementado, se dividido, como prega e elabora Shelley Carson no seu livro, em quatro fases: preparação, incubação, iluminação – eureca! – e verificação. Contudo, a criação também possui seus enigmas. Nunca estanque, assume outros contornos a depender de quem com ela se confunde.


Anotações em cadernos e horário regular são parte da rotina de Bruno Vilela. 
Foto: Divulgação

MODUS OPERANDI
Para Rodrigo Fresán, escritor argentino radicado em Barcelona, autor de O fundo do céu (2009), trata-se de uma experiência da qual ele prefere pouco ou nada apreender. “Não tenho muita certeza sobre algumas coisas, tampouco me interessa tê-las como claras. Há dois tipos de atitude na vida e uso como exemplo um espetáculo de mágica: tem gente muito preocupada em saber como é o truque, enquanto outros apenas se deixam maravilhar pelo que o mágico faz. A mim, o terreno da criação e da escrita é o da surpresa. Não quero perder a perspectiva do leitor enquanto escrevo, até porque sou sempre o meu primeiro leitor. Não me interessa perder a capacidade de surpresa. Por isso, cada livro me impõe um tempo próprio e gera um método particular. Sem disciplina alguma”, compartilha com a Continente.

É uma perspectiva distinta, por exemplo, da do escritor manauara Milton Hatoum, de Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), entre outros. No início, quando ainda era professor universitário, ele não era muito rígido consigo mesmo por causa da escassez de horários. O tempo alterou sua metodologia. “Quando meu primeiro filho nasceu, em 2004, aluguei uma edícula para trabalhar. Não tenho fetiche algum de viver a reclusão do escritor, mas preciso estar sozinho e de silêncio para escrever”, conta. A prática de transformar em redações ficcionais “a memória, as inquietações, as mais íntimas dúvidas que trazemos dentro de nós e componentes autobiográficos” deslinda outros cacoetes. “Escrevo sempre à mão, depois passo a limpo e vou corrigindo. Não sei escrever direto no computador. Também faço um plano como o arquiteto que nunca fui: comecei todos os meus romances pelo fim, para depois chegar ao caos. Se não souber onde vai terminar tudo, não tenho como descobrir o que virá antes”, revela.

Curioso perceber que dois profissionais no mesmo âmbito de atuação possuem modus operandi bem-apartados. A criação, porém, respeita a subjetividade de cada ser e obedece a sentimentos e repertórios afetivos acumulados em toda existência. “Com menos ou mais intensidade, o ato de criar está totalmente imbricado com o de viver. Seja de forma mais sutil e simples, nos telhados de uma casa composta por garrafas pet cheias d’água para substituir a iluminação artificial, por exemplo, ou de forma mais espetacular e exposta em teorias ou exposições de arte, se o homem não cria, ele não vive. E essa sua criatividade é completamente entrelaçada com suas frustrações e problemas que povoam sua realidade. Criador e criatura são inseparáveis. Em outras palavras, a realidade objetiva, a realidade subjetiva, o eu objetivo e o eu subjetivo formam uma unidade dialética indissociável na hora de criar”, afirma Hermes Azevedo, presidente do Conselho Regional de Psicologia/Pernambuco.


Obra de Bruno Vilela. Foto: Divulgação

O “fenômeno da criatividade”, como o psicólogo coloca, unifica os homens: “Existe em alguém com pouco ou nenhum acesso ao conhecimento formal e também no cientista. É de tal forma democrático e onipresente, que, não raro, o homem mais simples – e menos comprometido com os métodos formais – consegue resolver problemas de forma mais criativa e original do que os de mente complexa. Contudo, ambos partilham da mesma capacidade de, frustrados, não se resignar e assim transpor os limites impostos pelo mundo objetivo e/ou suas interpretações da realidade”. A criatividade, então, age ora como uma ferramenta de catarse, ora como um catalisador do que o artista sente, sofre e anseia. Foram essas questões, inerentes ao que ele chama de “cosmogonia do pintor recifense Bruno Vilela”, que orientaram o diretor paulista Beto Brant quando veio ao Recife dirigir um dos documentários da série Se cria assim, com concepção e direção-geral do cineasta pernambucano Cláudio Assis.

SE CRIA ASSIM
A série é composta por quatro filmes de 26 minutos de duração, a serem exibidos em canais fechados neste segundo semestre de 2014, cujo propósito é radiografar o decurso inventivo dos artistas visuais Rodrigo Braga, Marcelo Silveira, Paulo Bruscky e Bruno Vilela. Assis dirigiu os documentários sobre Braga e Silveira, o diretor de fotografia e cineasta Walter Carvalho acompanhou Bruscky e coube a Brant, de O invasor (2001) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011), entre outros, a tarefa de enquadrar Vilela. “Ele é um artista que se alimenta do afeto e cria a mitologia dele ao mesmo tempo em que vai buscar fontes no mistério, no candomblé, na astronomia. Além disso, é extremamente técnico, fez quatro anos de estudo avançado de anatomia, mas não se deixa enclausurar pela habilidade. Nada é realista na tela dele. Essa liberdade que tem no olhar me encanta”, discorre Brant.

Talvez o alumbramento tenha se dado justamente porque, para Beto Brant, o cinema tem uma marcha peculiar: “Às vezes, você passa anos para viabilizar um filme. Um longa é uma obra construída, pensada; você precisa contratar 40 pessoas, depois tem que lidar com o incentivo fiscal, com a prestação de contas. Isso dá um excesso de pressão que o acanha. Mas aí faço uma videoarte, uma videodança, e é uma delícia, porque não tem o menor compromisso com o mercado.” A singularidade de sua jornada como autor é que ela se constitui, exclusivamente, de adaptação de obras literárias. “Gosto de ler, parto da literatura, meu principal parceiro, Marçal Aquino, é um escritor. Mesmo os meus filmes que não são dele, como Crime delicado (2005), que é de Sérgio Sant’anna, ou Cão sem dono (2007), do livro de Daniel Galera, partem do meu contato com a literatura. Mas o que faço com os livros é uma leitura, nunca uma adaptação. Minha viagem é recortar, é olhar em 3D aquele material e dali construir uma imagem”, exemplifica.


Matriz criativa do cineasta Beto Brant é a literatura. Foto: Divulgação

No seu episódio de Se cria assim, Bruno Vilela narra o dia a dia de quem decidiu, desde cedo, enveredar pelas searas da arte. Cursou Artes Plásticas na Universidade Federal de Pernambuco, mas não terminou, foi discípulo do desenhista japonês Sunichi Yamada e, há cinco anos, abandonou tudo para ser artista. Isso não implica o desapego à própria ordem interior. Enquanto guarda cadernetas que arruma, com zelo, em um dos móveis do seu ateliê (“São para descarregar a ansiedade, para guardar ideias, para começar desenhos”), ele conserva uma rotina espartana: “Trabalho diariamente, das 10h às 19h. Dois dias da semana, chego às 11h porque levo meu filho para nadar. Pela manhã, respondo a meus e-mails, vejo mais as coisas administrativas, e à tarde fico pintando e produzindo. Sou artista, abracei o desapego para viver do que der, mas sempre com profissionalismo”. Grafites, tintas a óleo em centenas de tonalidades, pincéis e ferramentas o ladeiam, assim como telas das séries Voodoo drama, Animattack ou Mindscapes, cujas gêneses remontam ao que ele, concordando com Beto Brant, classifica como sua “visão de mundo”.

Para atingir esse estado, o processo em si é tão essencial quanto a bagagem ou a pulsão que o desencadeia. “Em tese, o processo criativo não passa pela consciência, pela determinação de um efeito, de um resultado que possa ser previamente qualificado ou determinado como causado por uma intenção específica”, pontua Luiz Camillo Osório, crítico de arte, professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ e curador do Museu de Arte Moderna carioca. “De certa maneira, na ideia de criação de arte, o processo vai sendo constituído e gerado na realização da própria obra. O artista não existe antes da obra; ele é constituído por ela. É o poema que constitui o poeta”, defende.

VIVÊNCIA
A baiana Virgínia de Medeiros se permite pensar, agir e criar por esse matiz. A artista visual estará presente na 31ª Bienal de São Paulo com o vídeo Sérgio e Simone (2009/2014), em que acompanha a transformação de um travesti negro, autointitulado “guardião” de uma fonte em uma degradada vizinhança do centro de Salvador, em um pastor evangélico – que por sua vez usa o registro feito por ela para corroborar sua conversão. Para abordar o universo dos travestis em Studio Butterfly (2003/2005), a oralidade sertaneja em Fala dos confins (2010) ou o ethos sadomasoquista em Jardim das torturas (2013), ela se imiscuiu na realização de tal modo, que a fundiu em um “processo de vivência”.


A artista Virginia de Medeiros diz que trabalha com a intimidade, com o tempo dado pelos acaso e pelo acontecimento. Foto: Divulgação

“Trabalho muito com a intimidade, com o tempo dado pelo acaso, pelo acontecimento. Nessa vivência, somos eu, a câmera e o outro, uma relação que se estabelece e na qual me envolvo por completo. Antes, me via muito como mediadora, mas hoje entendo que também entro num estado performativo para fazer esse trabalho de arte, que fica num ponto de intersecção, na borda da prática e da reflexão. Enquanto faço, vou pensando, desenhando, formalizando a experiência, até porque, no começo, quando você tem apenas o projeto, aquilo é uma ficção, um abismo. Como tal, está aberto a sofrer todo tipo de transformação, a todo tipo de desvio, até chegar à instauração da obra. Meu processo criativo não é ponto de chegada, é ponto de partida para algo”, observa.

É a força desse processo que a impele a escolher, por exemplo, o suporte a ser usado. “Sou obsessiva no afã de dar forma a tudo aquilo, de construir uma linguagem que dê conta de tudo que vivi, da complexidade daquele personagem. Por isso, gosto de trabalhar com a videoinstalação, que borra as fronteiras entre literatura, vídeo e fotografia e me dá liberdade e diferentes formas de contar uma história por completo”, ressalta.

A noção de “fronteiras” nunca existiu para a estilista paranaense Adriana Barra – tanto aquelas pontilhadas que demarcam territórios de países adjacentes como as que podem ser transpostas com o desanuvio da mente. “Países, tribos, lugares, animais, plantas, cheiros, cores… tudo pode me servir. O processo de criação é livre, sem amarras”, sintetiza. Ao longo do tempo, ela diz ter aprendido a não se deixar intimidar pela “opressão da criatividade”.

“Antes, eu acordava no meio da noite, ia escrever as ideias que tinham surgido e não conseguia mais dormir. Trabalhava 20h por dia. A partir da experiência, soube que delegar, no meu caso, é tão importante quanto criar, e hoje não fico muito procurando a criação. A inspiração chega”, comenta Adriana, cujo trabalho se notabiliza por um apurado design de coloridas e chamativas estampas. Ela, que nunca desenhou, comanda uma equipe de nove pessoas e as orienta para concretizar em tecidos as imagens que a encantam. “Mas aprendi também que nem toda ideia pode ser aproveitada, que várias inspirações não são representáveis e assim não vão virar uma estampa. O que fica é o que o cérebro registrou. Se houve alguma ideia anterior e eu não lembrei, já não me preocupo”, admite.


Foto: Divulgação

Indagada sobre se o tipo de trabalho que é feito – uma ideia para uma estampa, uma performance, uma pintura ou um livro – determina as regiões do cérebro afetadas por esta função, a neurocientista Lisa Aziz-Zadeh ensina que o que se faz nas tentativas e nos ensaios, por exemplo, repercute imediatamente. “Os músicos possuem áreas mais amplas no cérebro que são dedicadas aos dedos que eles usam para tocar seus instrumentos, por exemplo. Os compositores e instrumentistas também processam a música de forma diferente de como um não músico recebe as informações musicais em seu cérebro”, elucida.

Sons e palavras, portanto, são processados de jeitos particulares por uma compositora e uma atriz. Afinal, dedilhar um violão é hábito para Bárbara Eugênia; já para Marieta Severo, seria um passo no approach de um personagem. Cariocas, as duas possuem em comum uma certa solitude inicial na hora de evocar suas musas. Compositora e cantora, autora de Journal de Bad (2010) e É o que temos (2013), Bárbara escreve à mão, com lápis, em “um monte de caderninhos” que carrega na bolsa: “Anoto tudo e depois organizo as ideias num só, já pensando no nome das músicas e do disco. Assimilo muito melhor quando escrevo à mão. Esse processo tem uma textura que deixa a letra impressa na minha cabeça”. Para ela, a vida tem o mesmo peso de um filme, um álbum, uma fotografia. “No meu processo criativo, não adianta forçar a barra. Falo muito sobre as coisas que me acontecem, é tudo bastante pessoal. Tem as licenças poéticas, a inspiração de fora, mas é a minha vida e a das outras pessoas ao meu redor que caem no meu trabalho”, situa.

Na atriz Marieta Severo, existe um permanente “estado de criação”. Nele, coabitam dona Nenê, que encarna há mais de 14 anos no seriado televisivo A grande família, e Nawal, a protagonista do espetáculo teatral Incêndios, em cartaz no Rio de Janeiro, ou qualquer personagem que vier a ocupá-la. “As palavras que me dão foram criadas por outra pessoa, mas isso não implica uma carga menor de criatividade”, avisa. “Por ser uma intérprete, primeiro preciso entender o que o criador fala. O processo se inicia assim: recebo o texto, passo a cavucar as ideias do autor, a me apropriar disso e fazer minha própria criação. O começo é solitário. Começo a me apossar de imagens para compor aquele personagem, a pensar em um olhar diferente e só fico focada nisso. Tudo, aliás, na minha vida se volta para isso. É avassalador.”


A compositora e cantora Bárbara Eugênia diz que tudo entra na criação, de sua rotina ao conteúdo de uma foto, um filme. Foto: Divulgação

Os estágios seguintes ampliam o escopo das relações – nos ensaios, Marieta interage com os companheiros de elenco e aí coletiviza a criação até então restrita –, mas mantêm a atriz em uma vigilância perene. “Todos os personagens me consomem muito. Viver um personagem é o que mais gosto de fazer na minha vida. Na verdade, gosto mais da ficção, prefiro entrar em um cenário a entrar em uma casa. Durante o processo criativo, a realidade fica desfocada e todo o resto se volta para a ficção. Até porque eu preciso criar um alguém em que as pessoas não enxerguem Marieta, ao me verem em cena, e, sim, a dona Nenê, por exemplo. E quanto mais diferentes eles forem, mais elasticidade me derem, melhor para mim”, afirma a atriz de cinema (Carlota Joaquina, 1994), teatro (A dona da história, de 2000, entre outros) e TV (Catarina, de Vereda tropical, de 1984).

EVOLUÇÃO
Novos personagens, canções, livros, instalações, pinturas, filmes, estampas... Uma miríade de possibilidades pode irromper com o que se engendra nos cérebros daqueles que se devotam à criação artística. E também nos circuitos criativos das mentes das pessoas comuns.

“A criatividade foi um recurso fundamental na evolução da espécie humana. Nossa engenharia biológica é delicada; talvez sejamos uma das mais frágeis espécies do ponto de vista biomecânico. Tivemos que ser criativos para sobreviver. Ao nos depararmos com obstáculos, rompemos com as limitações. Graças à faculdade de criar soluções, fruto do inconformismo que mais nos tipifica, fomos capazes de vencer as fragilidades e desenvolver a criatividade de forma inusitada e singular. Assim criamos a ciência, que é o patrimônio intelectual da sociedade humana”, teoriza o psicólogo Hermes Azevedo. “Viver é solucionar uma série de problemas a cada instante. Quanto mais criativos formos ao fazer isso, mais contribuiremos para nossos irmãos e para nosso futuro”, defende a neurocientista norte-americana Lisa Aziz-Zadeh.

MODOS: IDIOSSINCRASIAS DO MOMENTO DA CRIAÇÃO


Imagem: Mauricio Planel/Divulgação

Cada artista tem o seu jeito de criar. É como DNA: pessoal e intransferível. Os processos criativos podem ser lapidados com a prática diária; ser lineares, no caso de escritores, que, em geral, iniciam a primeira frase e seguem a ordem cronológica até o final do livro; ou se assemelhar a uma epifania. Mas há milhões de nuances entre esses extremos da atividade.

WOLFGANG AMADEUS MOZART
Em The creative process: reflections on the invention in the arts and sciences (O processo criativo: reflexões sobre a invenção nas artes e nas ciências, em tradução livre), coleção de textos assinada por Brewster Ghiselin, aparece uma carta atribuída ao compositor austríaco, na qual se diz: “Quando estou complemente sozinho, em um bom humor – digamos, viajando em uma carruagem, ou passeando após um lauto almoço, ou durante uma noite em que não consigo dormir: é nessas ocasiões em que minhas ideias fluem mais e com melhor abundância. De onde e como elas surgem, eu não sei; nem posso forçá-las”.

PAUL AUSTER
Para o escritor nova-iorquino, todos os livros começam com “um zumbido na cabeça”. “É um tipo de música ou de ritmo, um tom. A maior parte do esforço de escrever um romance para mim é tentar me manter fiel a esse zumbido, a esse ritmo. É um negócio altamente intuitivo”, conta. O autor de A trilogia de Nova York (1987), Leviatã (1992), A noite do oráculo (2004) e Sunset Park (2010), entre outros, começa a trabalhar às 9h, no escritório, e escreve à mão com uma Aurora, caneta tinteiro italiana, em um caderninho. “O parágrafo é a minha unidade natural de composição. O verso é a unidade do poema, o parágrafo, para mim, cumpre essa mesma função na prosa. Elaboro e reelaboro o parágrafo até que eu esteja razoavelmente satisfeito com ele, escrevendo e reescrevendo até que tenha a forma ideal, o balanço ideal, a música certa. Uma vez que pareça terminado, eu bato à máquina. Então, cada livro tem um manuscrito cursivo e um outro datilografado, ao lado”.

JOHN CASSAVETES
Falecido aos 59 anos em 1989, o cineasta e ator é até hoje considerado o pai do cinema independente norte-americano. A partir de Sombras (1959), foi apurando um estilo que, embora emergisse de um roteiro amarrado, incentivava a improvisação dos atores no set. Há quem diga que a maestria apresentada em Faces (1968), Uma mulher sob influência (1974) e Noite de estreia (1977), entre outros, deu-se, também, porque seu gênio era abastecido por doses torrenciais de álcool – consumia a tal ponto que morreu de cirrose. No cérebro, o álcool induz a um estado de desinibição cognitiva que, apontam estudos, pode levar a uma recorrência de insights ou a níveis maiores de criatividade.

CLAUDE MONET
Um dos criadores do Impressionismo na pintura, Monet (1840-1926) se dizia “freneticamente levado pela necessidade de reportar o que eu vivencio”. Principalmente na última fase do seu trabalho, quando retratou os lírios d’água dos jardins de sua casa, em Giverny, sua insatisfação consigo mesmo e suas constantes alterações de humor contrastavam com o método lento e perfeccionista de observar a luz, as cores e as formas. “Trabalhando tão devagar eu me sinto desesperado, mas quanto mais longe eu vou, mais eu vejo que é preciso trabalhar muito para suceder em representar aquilo que procuro”, escreveu. Suas pinturas mais famosas, como a série das ninfeias ou os lírios d’água, feitas ao cabo de dias e meses de observação diária de uma mesma paisagem, ficaram prontas quando ele já estava acometido de catarata nos dois olhos e, portanto, praticamente cego. Ele queria captar o transcendental: “A paisagem, o objeto, é insignificante para mim: o que quero representar é o que está entre mim e o objeto."

OPINIÕES

MILTON HATOUM, escritor brasileiro


Foto: Adriana Vichi/Divulgação

A imaginação e a inspiração são o que há de mais poderoso na escrita literária. A literatura é um trabalho solitário que começa, na verdade, com a leitura. Não seria o escritor que sou hoje se não houvesse lido os romancistas que li. Não se domina a técnica de um romance sem uma leitura estudada, reflexiva, de Flaubert, por exemplo. Nunca conheci nenhum escritor que não tivesse sido um rato de biblioteca. E as obras pelas quais você tem empatia não estão separadas da vida; elas são a sua vida, elas te ajudam a construir personagens, te inspiram personagens. Mas a escrita não depende exclusivamente da leitura: nela entra tudo aquilo que nos constitui, como a memória, que é um outro nome da imaginação. O nosso cérebro é muito complexo. Às vezes, faço um gesto diferente ao acordar e isso desencadeia um sonho, uma lembrança, que desperta uma ideia. O processo de escrever, que para Manuel Bandeira era o “alumbramento”, um estado de espírito propício à poesia, carrega em si um pequeno milagre e alguns mistérios.

RODRIGO FRESÁN, escritor argentino


Foto: Divulgação

Desde que tenho memória, sempre quis ser escritor. Nunca pensei em ser advogado ou dentista. Os escritores me interessavam como tema e espécie animal. Deles, gosto de ler biografias, cartas, diários... tenho uma atitude bastante fetichista. Os que mais aprecio são Proust, Cheever, Vonnegut, Nabokov e Philip K. Dick, que escrevem livros sobre livros ou que transcorrem dentro da cabeça de escritores. Em todos os meus livros há personagens escritores. O mais recente, La parte inventada, investiga como funciona a cabeça de um escritor enquanto ele está criando. Como se inventa uma história? Por que lugares ela passa? Como ocorrem as ideias? Para mim, o ofício de escrever passa pelo “durante”, não pelo “depois”. Sempre penso em vários livros ao mesmo tempo. Gosto de estar corrigindo e agregando coisas. Quando chego ao final (e só entrego nas últimas, para desespero dos meus editores), há uma sensação difícil de descrever: é o momento em que sinto que o livro já não é meu, que tem que ir. Então que se vá.

MARIETA SEVERO, atriz brasileira


Foto: Divulgação

Como atriz, não crio isoladamente. Sempre que recebo um personagem novo, começo uma vivência muito particular, num processo de criação abrangente. Mas nada é independente dos outros, do que o diretor quer, dos que meus companheiros de elenco estão fazendo. Sento com eles, observo seus passos durante os ensaios, vejo como eles fazem e sigo criando dentro desse todo. A melhor brincadeira para mim é estar vivendo um personagem. Não é que não goste de quem eu sou, nada disso; é que meu gosto por tudo aquilo que é inventado, pelo ficcional, é enorme. E os personagens exigem diferentes tipos de exercício. Dona Nenê, por exemplo, já está criada. São 14 anos de convivência. Já não caminho com ela diariamente, mas a busca é achar uma sutileza, um novo olhar, algo diferente, para emprestar a ela. É uma recriação constante e necessária, porque senão mecaniza tudo. Por isso, adoro dizer que vivo em um estado de criação. Às vezes, são dois, três, quatro personagens ao mesmo tempo. Mas é só o corpo que fica cansado; o resto está inteiro.

LISA AZIZ-ZADEH, neurocientista norte-americana


Foto: Divulgação

Embora a criatividade seja talvez a mais importante ferramenta humana, sua base neural ainda é difícil de compreender. Mas a ciência e as tecnologias utilizadas para escanear o cérebro têm avançado e apontado para a constatação de que os dois hemisférios cerebrais são acionados nos processos ligados à criatividade. Completei dois estudos específicos sobre criatividade: um sobre o instante do insight, e outro sobre as correlações neurais da criatividade visual, que é um componente crucial para a fotografia, a pintura, a arquitetura e a escultura. Nos dois, quando induzimos uma situação para que surgisse uma ideia na pessoa dentro da máquina de ressonância magnética, foi possível capturar esse instante no cérebro. Encontramos padrões de atividade cerebral que são relacionados ao insight ou à criatividade visual. Os resultados desses estudos apontam que, mesmo em uma tarefa especializada de um hemisfério específico (por exemplo, o processamento de informações visuais e espaciais no hemisfério direito), uma robusta atividade paralela no hemisfério esquerdo auxilia o processo criativo. 

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