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Zé de Vina: O homem que vira boneco

Histórias de viagem do mamulengueiro que aprendeu o brinquedo aos 12 anos e que é o mestre-referência das novas gerações

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Julho de 2014

Zé de Vina

Zé de Vina

Foto Annaline Curado/Divulgação

Entre a poesia concreta daquelas esquinas, próximo ao famoso cruzamento imortalizado por Caetano Veloso em Sampa, no calçadão da Avenida São João, numa daquelas semanas do outono frio da cidade cosmopolita, o mestre de cerimônias Valdeck de Garanhuns anunciou: “Só tem um cabra mais boneco do que eu: Mestre Zé de Vina”. Começava, então, o 5o Encontro de Mamulengos em São Paulo, produzido com pouca verba e muito amor pelos artistas Natália Siufi e Danilo Cavalcanti, como uma forma de resistência da cultura popular ao sistema coercivo da selva de pedras.

Chegado de avião na noite anterior com filho, neto, barraca e cerca de 40 bonecos na bagagem, Zé de Vina amanheceu com a diabete e a pressão fora da normalidade. “Já estou cansado, enfadado, com vontade de abandonar. A demora é vender os bonecos. Já vendi seis. Eu já estou velho, cansado, não aguento mais estar no mundo atrás do mamulengo.”

Enquanto o mestre contava que a vontade de abandonar era maior que a vontade de continuar, Rosinha do Bole-Bole, bochecha dura e perninha mole, procurava o seu Benedito. E Mestre Saúba dançava um forró pra lá de animado com a boneca Lindinalva: “A ema gemeu... No tronco do juremá. A ema gemeu... No tronco do juremá”.

Tal como Rosinha do Bole-Bole e Benedito, Mestre Saúba e a Boneca Lindinalva, Zé de Vina arranjou todas as suas namoradas nas brincadeiras. Ele se aproximava delas antes de começar a apresentação, sentava do lado e as conquistava. “Nessas noites o mamulengo não prestava, mas eu entrava mesmo assim. Às vezes, elas entravam dentro da torda (casinha do teatro de mamulengo): aí eu esquentava! Quando elas não entravam, o brinquedo era mansinho, devagarinho... O meu tempo era só pra elas, minha vontade era estar do lado de fora com elas.” Quando o dia amanhecia, o pessoal desarmava o mamulengo e ele ia ficar com elas. Seus quatro casamentos, que lhe renderam 17 filhos homens e três filhas mulheres, foram fruto das brincadeiras.

Hoje em dia, o brinquedo não é tão itinerante, mambembe, quanto era antigamente, há 30, 40 anos. Naquele tempo, Zé de Vina botava as malas no jumento, no cavalo, ou ia a pé. No máximo, pegava um pau de arara ou uma marinete, aquela perua antiga de madeira. Como era muito itinerante, os brincantes iam pelas fazendas, sítios, por todo lugar, arranjando uma mulher em cada canto.


No 5º Encontro de Mamulengos, em São Paulo, houve todo tipo de reação do público às encenações do brinquedo. Foto: Annaline Curado/Divulgação

INTERVENÇÕES
De volta ao festival paulistano, a Cobra Anaconda acabava de devorar Rosinha do Bole-Bole, quando um transeunte “ébrio” do centro de São Paulo começou a “interagir” com a brincadeira, zombando, tripudiando, curtindo sua viagem. A plateia se manifestou: “Sai, capeta! Fora, assombração”. Capeta, revoltado, ameaçou o senhor pernambucano que o havia expulsado, fingindo tirar uma arma imaginária da cintura: “Vou mandar bala!”. Outro rapaz, sem medo da Assombração do Crack, revidou: “Senta, Mutuca! Mutuca do Cão!”. Capeta, sem saber o que fazer, voltou para a frente da barraca de Mestre Valdeck e começou a dançar forró, quando um tocador de zabumba o abraçou, explicou com carinho e ternura que era inadequado o que ele estava fazendo. Então, o Capeta, alucinado, desabou a chorar no colo do músico. Fez as pazes com os integrantes da plateia, brigaram de novo e, finalmente, terminaram sentando juntos, lado a lado.

Intervenções de transeuntes e da plateia são muito comuns no teatro popular. Mestre Valdeck, pernambucano radicado em São Paulo há muitos anos, conta que uma vez foi se apresentar num bairro da zona sul da capital paulista e houve um incidente, quando acabavam de armar a barraca. Havia crentes – evangélicos – pregando. O pastor pregava eufórico. Quando o trio de forró começou a tocar, Valdeck pegou o microfone e deu o anúncio: “Daqui a pouco, senhoras e senhores, vamos apresentar o Teatro de Mamulengos diretamente de Garanhuns, Pernambuco, para a Praça Floriano, lugar de nordestino, terra muito boa. Pode se aproximar homem, mulher, menino, velho... Vai aparecer aqui Dolores, Simão, Cabo 70, Satanás, a Besta Fera, a Gota Serena, daqui a pouco, não percam!”.

O crente deu um pulo de um metro de altura com a Bíblia debaixo do braço, irado de raiva, e disse: “Vai botar boneco no inferno, cambada de pederasta”. Ele começou a organizar um movimento para derrubar a barraca: “Vamos acabar com isso, isso é coisa de Satanás, de Belzebu, isso vem do inferno, é coisa de pederasta”. Ele falou, falou, mas, como não conseguiu, parou. Mestre Valdeck deu outro anúncio, do mesmo jeito, e o crente foi pregar do outro lado da praça. Quando começou a brincadeira, eles pararam de pregar e foram assistir ao mamulengo.

Enquanto isso, na Avenida São João, a banda tocava: “Disse: levanta povo, cativeiro já acabou”, e Zé de Vina insistia em que sua vontade de deixar de brincar está guardada há tempos. “A vontade do povo é que eu venha, mas estou aqui em São Paulo de dor de cabeça.”

O COMEÇO
Zé de Vina foi criado por mãe, não por pai. Sebastião Cândido, mestre de mamulengo e seu irmão de criação, passava na frente do sítio onde o então menino morava – no município de Feira Nova – todos os sábados antes de ir brincar. “Eu sempre pedia pra ele me levar. Ele foi, falou com mãe, ela deu consentimento e eu andei atrás dele um bocado de tempo.” Os dois iam de carroça para os sítios da redondeza, Zé de Vina ajudava a carregar os bonecos, pendurá-los, fazer a torda, cortar pau e emendar para montar o mamulengo. Naquele tempo, década de 1940, os mamulengueiros não andavam com o boneco pronto.

No dia 10 de outubro de 1952, foram brincar na casa de Casemiro, amigo de Sebastião Cândido. Lá, o dono da casa entregou o apito a Zé de Vina: “Agora, você é quem vai brincar”. E o menino de 12 anos, envergonhado, disse que não dava, não levava jeito para aquilo. “Eu tomei conta do apito e entrei na história do mamulengo. Brinquei no sábado, de meia-noite até de manhã, brinquei no domingo em Serra da Passira, e não parei mais.”


Foto: Annaline Curado/Divulgação

Outros mestres que lhe ensinaram o ofício e o deixaram pronto foram José Grande, Pedro Rosa, Pai Velho, Severino Massur... uns 15 a 20 mamulengueiros. “Quando eles iam brincar e eu não ia, assistia o mamulengo deles para aprender a fazer as palhaçadas.” Em 1957, ele comprou sua torda, que persiste até hoje. Zé de Vina é o último remanescente dos mestres mamulengueiros de primeira geração, inspiração de todos os mestres atuais.

VIDA DURA
De volta ao presente, o Diabo tentava, em conluio com o Coronel, tomar o circo de Marieta e Simão. Marieta propôs que eles disputassem o circo através de uma competição de dança. Por sorte, Belzebu não sabia dançar...

A situação atual de Zé de Vina não é muito boa. Em casa, ele e a esposa são aposentados, mas a pensão dá apenas para comprar remédios, pagar a venda e as outras contas. “Eu recebo o dinheiro, saio pagando tudo e fico no horror de novo. Só quando eu dou uns brinquedos de mamulengo é que arrumo uma coisinha. Eu vou cumprindo com os meus deveres e sigo trabalhando.”

Zé de Vina era conhecido também como Zé do Rojão. Um belo dia, soltou um foguete que pegou na mão, queimou e ficou toda atrofiada. Teve de parar de brincar por um tempo, fez fisioterapia, depois voltou.

Ele nunca teve uma situação confortável. “Trabalhava bem cedo, comia só de noite. Morava alugado, tirava a conta, trabalhava em roça, mexia farinha, moía mandioca, caçava, pescava. Era pesado e muito. Chegava na casa de farinha às 4 da madrugada e, às vezes, saía meia-noite. No sábado, brincava de mamulengo pra inteirar alguma coisa.” Os seus melhores momentos foram nas brincadeiras: “Eu era moço, novo, tinha prazer de me apresentar no terreiro. Muita gente ia assistir à brincadeira; quanto mais eu brincava, mais eu tinha o que brincar”. Naquela época, não havia entretenimento melhor do que esse.

Simão e Marieta faziam as últimas acrobacias antes do fim do espetáculo circense.

GRAN FINALE
Enquanto isso, o Barbeiro Nozin afiava sua máquina de cortar cabelo para fazer mais uma vítima: o Cabra que queria ser. “Isso é uma agressão, não é um corte de cabelo, não!” O Barbeiro tremelicava todo e dizia ser portador de “Mal de Park”. “É Mal de Parkinson!”, retrucou o Cabra. “Num é não... Quando era criança, caí da roda-gigante.” E a orelha do Cabra voa na plateia.

No universo do mamulengo, há uma criatividade que surge do fazer, do acontecer, uma energia que envolve a criação das múltiplas facetas do ser humano, de vários personagens. O espírito vai se construindo na montagem das barracas, nos mínimos detalhes. O lado criança dos artistas e dos espectadores aflora durante as brincadeiras.

Finalmente, chega a hora de Zé de Vina entrar na torda, no último número do festival. Ele sabe o seu brinquedo todo decorado. “Tenho 184 peças de mamulengos guardadas no meu juízo. Quando eu entro na barraca, me lembro de tudo: a passagem de Joaquim Bosó, Boi na Queda, Boi na Faca...”.

De repente, Prexédio entra em cena com sua mulher, Ritinha, num casamento meio atrapalhado. Prexédio sai para trabalhar e, quando volta, encontra Ritinha com outro, menino novo, bonitão. Zé de Vina pergunta e Amaro, seu filho, seu Mateus, responde. Seu neto, Rogaciano, brinca com o avô dentro da barraca. “É o morto trabalhando para o vivo sobreviver.” E o nosso mamulengueiro segue com sua vida mambembe, dura, sofrida, de homem que vira boneco e de boneco que vira homem, um lutando pelo outro, enfrentando as agruras dos dois mundos, um pelo outro. 

GUILHERME NOVELLI, jornalista e pesquisador. Trabalha como colaborador em revistas culturais e científicas.

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