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Derek Jarman: Cinema de resistência

Mostra traz o espírito iconoclasta do diretor britânico, a partir da exibição de seus longas e curta-metragens e de debates sobre legado, 20 anos após sua morte

TEXTO Márcio Bastos

01 de Agosto de 2014

Filme 'Jubilee' é considerado o primeiro do punk britânico

Filme 'Jubilee' é considerado o primeiro do punk britânico

Foto Divulgação

Assumidamente homossexual, Derek Jarman foi um intenso ativista da causa LGBTT em uma época na qual o assunto ainda era tabu. Seu engajamento se intensificou com a descoberta de que era portador do vírus HIV, em 1986, fato que influenciaria sua obra dali por diante. Ao tornar pública sua condição, ele lutou para chamar a atenção para a epidemia, à época ignorada pelos governos. Atuante durante a Era Thatcher, com o estado assumindo a política neoliberalista e o consequente corte dos incentivos à cultura, ele se tornou uma referência em tempos sombrios.

Mesmo debilitado pela doença, Jarman continuou trabalhando intensamente. Segundo o biógrafo Roger Wollen, autor de Derek Jarman: a portrait, a temática queer sempre esteve presente em seus trabalhos, mas, com a descoberta do vírus, ela passou a ser um assunto central, “determinante”, da obra do britânico. “Eu tenho aids e fiz quatro longas desde que eu descobri que tinha a doença – e vou fazer mais dois em seguida. E escrevi três livros. Eu queria mostrar às pessoas que esse problema em particular pode, na verdade, ser superado. É preciso ser otimista”, afirmou o artista em uma entrevista ao Channel 4, em 1991, três anos antes de sua morte.

Seu último filme, Blue (1993), lançado nos seus últimos meses de vida, representa um marco no cinema, ao abrir mão completamente de imagens. Ao longo de seus 79 minutos, a película reflete o próprio estado de seu criador, que passou um período cego por conta de complicações provocadas pela síndrome. A tela azul se torna uma alegoria para as reflexões de Jarman sobre a vida e sua finalidade.

Em Blue, Jarman fez uma espécie de testamento fílmico. Nos instantes finais da obra, ele sentencia poeticamente: “Com o tempo, nossos nomes serão esquecidos. Ninguém se lembrará do nosso trabalho. Nossa vida passará como traços em uma nuvem e se dissipará nos raios do sol lutando com o nevoeiro. Porque nosso tempo é a passagem de uma sombra...”


Caravaggio revisita personagem sob ótica homoerótica. Foto: Divulgação

O quão surpreso não estaria Jarman em saber que, 20 anos após sua morte, sua obra continua com a pungência que impressionou crítica e público desde sua estreia com o filme Sebastiane (1976). Multiartista, com incursões prolíficas na literatura, pintura e cenografia, ele é considerado um dos fundadores do cinema independente britânico, além de ser um dos primeiros cineastas a abraçar abertamente a temática queer. O britânico é tema da mostra Derek Jarman – cinema é liberdade, que acontece entre os dias 5 e 24 de agosto, na Caixa Cultural do Recife, com exibição de seus longas e curta-metragens, além de promover e discutir o seu legado.

RESISTÊNCIA
Considerado por alguns críticos como um “tradicionalista radical”, ele incorporava em seus trabalhos uma simbiose entre o universo clássico, da “alta cultura”, e os pensamentos e estéticas marginais da sociedade da época, a exemplo dos movimentos punk e queer. Jarman era um defensor da ideia de um cinema de resistência, resultado da persistência (ou insistência) de seus criadores. Para ele, bastava cercar-se de amigos e colaboradores comprometidos com a arte para tirar uma ideia do papel, mesmo sem a base financeira para tanto (juntos, os seis primeiros filmes de Jarman custaram menos de 1 milhão de libras).

Nascido em Northwood, na Inglaterra, Jarman passou sua infância em bases militares da Força Aérea Real, da qual seu pai era membro, morando em diferentes países, como Itália e Paquistão. Quando voltou à Grã-Bretanha, foi matriculado em um colégio interno, experiência traumatizante que, segundo sua irmã, Gaye Temple, só evidenciou o caráter dissonante de Derek em relação aos meninos de sua idade. De acordo com Temple, ainda na infância, as duas grandes fascinações do irmão eram as flores e a arquitetura.

Os castelos de areia cuidadosamente elaborados, com atenção aos pequenos detalhes, serviriam como protótipo do que, no futuro, viria a ser a porta de entrada de Jarman no cinema: a cenografia. Com formação em artes plásticas, Jarman foi responsável pelos cenários do filme Os demônios, de Ken Russell, em 1971. Essa experiência seria fundamental para a carreira do artista, que posteriormente afirmou que seu trabalho como cineasta foi inspirado na maneira destemida como Russell experimentava as possibilidades fílmicas, ainda que isso prejudicasse a coerência narrativa da obra.

Com seus trabalhos, Jarman ingressou na contracorrente da tradição do cinema britânico. “O cinema britânico sempre foi muito marcado por uma predominância do cinema realista, com uma inclinação natural para o realismo social, do homem ordinário, comum. Jarman e alguns outros cineastas da sua geração, como Peter Greenaway, vinham se contrapondo um pouco a essa tradição”, explica Angela Prysthon, professora de Cinema na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


Derek Jarman também incursionou pela literatura, pintura e cenografia. Foto: Divulgação

Suas experimentações com o super-8, segundo Prysthon, e a mescla de referências clássicas com a cultura popular, colocam Jarman em uma posição singular no cinema britânico. “Ele tinha uma ligação muito forte com a cultura popular, mas não no sentido de se conformar com o mainstream. Ele se interessava pelo que acontecia no seu tempo, como a efervescência do movimento punk. Em filmes como Caravaggio (1986) e Eduardo II (1991), ele usa elementos da cultura contemporânea dentro de filmes de época. É como se ele fosse ao passado não para lamentar o presente, mas para encontrar figuras de resistência dentro do próprio passado. É uma mistura do clássico e do atual em uma perspectiva radical”, pontua.

A conexão de Jarman com o espírito do seu tempo, aproximando-se da cultura pop, também ficou impressa em suas incursões no mundo da música. Ele dirigiu videoclipes para artistas como Pet Shop Boys, The Smiths, Sex Pistols, Suede e Patti Smith, que, em diversas frentes, aproximam-se de suas propostas estéticas e ideológicas. Essa tendência de refletir o zeitgeist pode ser encontrada na maioria de suas obras e talvez mais evidentemente em Jubilee (1978), considerado o primeiro filme punk britânico. Na película, a rainha Elizabeth I é transportada para a Inglaterra dos anos 1970, uma nação marcada pela decadência numa espécie de futuro pós-apocalíptico.


Em Sebastiane, o mártir cristão São Sebastião foi interpretado sob angulação queer.
Foto: Divulgação

O universo temático de Jarman ficou explícito desde Sebastiane, quando chamou a atenção pela ousadia do projeto. Baseada na biografia de São Sebastião, mártir cristão, cuja história é revista sob o prisma queer. Comumente representado em pinturas e esculturas com o corpo musculoso desnudo e a expressão de dor e prazer provocados pelas flechas atravessadas no seu corpo, o santo se tornou uma espécie de ícone gay, sendo referenciado por vários autores, a exemplo de Tennessee Williams e Oscar Wilde, quando se trata de personagens homossexuais. No trabalho, inteiramente falado em latim, o imagético homoerótico é amplamente explorado, com filmagens de nu masculino e cenas de carinho entre homens. O artista revisita também um personagem histórico sob a ótica homoerótica em uma de suas obras mais famosas, Caravaggio, sobre a vida do pintor italiano.

A vida e obra de Derek Jarman carregam simbologias recorrentes, que remontam aos tempos de sua infância, a exemplo da jardinagem. Uma das atividades preferidas do artista, ela tornou-se também uma espécie de metáfora, um aparente contraponto (ainda que só aparente) à verve iconoclasta do diretor. Seu mais famoso jardim, hoje uma atração turística, encontra-se em Dungeness, na costa de Kent, onde conseguiu desenvolver uma obra-prima da jardinagem, a despeito da maresia e do terreno pedregoso.

“O jardim sempre foi um lugar muito importante para Derek. Ele vinha para cá mesmo quando estava muito doente no hospital, ele dizia: eu preciso ir ao jardim. E, no último ano de sua vida, quanto mais próximo ele chegava da morte, mais importante o jardim se tornava para ele”, afirmou seu companheiro Keith Collins. O jardim de Dungeness, portanto, pode ser visto como uma alegoria da própria arte de Jarman: um flanco de resistência, de beleza e ataque em meio a uma natureza inóspita, corrosiva. 

MÁRCIO BASTOS, jornalista.

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