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Filme rodado em versos

Com 'A luneta do tempo', o compositor Alceu Valença regressa às origens culturais que propulsionaram sua carreira – agora, como diretor, premiado no Festival de Gramado

TEXTO Marcelo Miranda

01 de Setembro de 2014

Hermila Guedes e Irandhir Santos vivem meio-irmãos cujas histórias se unem pelas lutas no Agreste

Hermila Guedes e Irandhir Santos vivem meio-irmãos cujas histórias se unem pelas lutas no Agreste

Foto Antonio Melcop/Divulgação

Duas perdas onectam a gênese de A luneta do tempo à sua primeira exibição pública. Em 1999, Alceu Valença perdeu o pai, acontecimento que o levou de volta à cidade natal, São Bento do Una, distante 215 quilômetros do Recife, para acertar questões familiares. Foi nessa viagem de regresso que o cantor teve as ideias embrionárias do que iria se tornar sua estreia como diretor de cinema, justamente no dia 13 de agosto de 2014, data marcada pela trágica morte do ex-governador pernambucano Eduardo Campos num acidente de avião, junto a seis pessoas de sua equipe de campanha à presidência da república.

Alceu era amigo de Eduardo e foi com nota de lamento que ele apresentou A luneta do tempo na competição do 42º Festival de Cinema de Gramado. A fala do músico no palco do Palácio dos Festivais, na cidade gaúcha, em meio à noite mais fria do evento, este ano, equilibrou-se entre as duas pontas. “Temos aqui, hoje, duas notícias. A primeira é trágica, pois perdemos o Eduardo, um político de verdade. A outra, a boa notícia, é que...”, disse, fazendo suspense: “... A luneta do tempo ficou pronto!”.

O clima de perplexidade pela morte de Campos que tomava os presentes na sessão teve um momento de trégua diante das imagens delirantes e libertárias proporcionadas pelo filme de Alceu Valença. Protagonizado por dois nomes já icônicos da produção contemporânea no estado – Irandhir Santos e Hermila Guedes –, o longa-metragem remete à tradição do cangaço para apresentar, entre sonho, realidade e devaneios, na fotografia deslumbrante de Luís Abramo e em ecos de Ariano Suassuna, Glauber Rocha e Luiz Gonzaga, o embate entre dois meio-irmãos, cujas histórias são unidas pelas lutas no Agreste. Ambos são filhos de um circense de origem argelina que “repovoa” as comunidades por onde passa. Um dos garotos nasce da viúva de Severo Brilhante, ex-homem de confiança do bando de Lampião; o outro é da mulher de Antero Tenente, militar ansioso por capturar o bando de cangaceiros. Crescidos, os dois mantêm a rivalidade intrínseca às suas origens, reproduzindo através do circo alguns dos acontecimentos marcantes do passado.

O filme saiu do Festival de Gramado com dois Kikitos: melhor trilha musical, para o próprio Alceu, e melhor direção de arte, para Moacyr Gramacho. Numa competição de melhor filme, vencida pelo drama de guerra A estrada 47, de Vicente Ferraz – com vários prêmios distribuídos a outros dois títulos, A despedida, de Marcelo Galvão (direção, ator – Nelson Xavier, atriz – Juliana Paes, e fotografia – Eduardo Makino), e Infância, de Domingos de Oliveira (roteiro, ator coadjuvante – Paulo Betti, e especial do júri – Fernanda Montenegro), ficou a impressão de que o longa de Alceu perturbou os jurados a ponto de eles não lhe terem concedido nenhum outro reconhecimento que merecia.


O universo tradicional do cangaço está muito presente no longa-metragem.
Foto: Antonio Melcop/Divulgação

O roteiro, assinado pelo próprio Alceu Valença, tem como principal característica a narração em versos de cordel, a maior parte deles em decassílabos. O compositor não apenas permite aos personagens falarem em rimas das mais variadas e ricas, como parece transfigurar em imagens todo o imaginário de mais de 40 anos de carreira e de 68 anos de vida. “O filme tem esse ritmo todo porque eu gravei a trilha sonora muito antes de filmar, como se fosse um esboço sonoro”, conta Alceu. “Fui pro estúdio com tudo que tinha anotado durante anos e fazia a voz de homem, de mulher, imitava pássaro, cavalo, boi, cachorro... Fazia todos os sons e ia botando dentro da trilha sonora.”

MUSICAL
Tendo essa espécie de “storyboard sonoro”, Alceu foi para o set já bastante decidido sobre como conduzir o caldo a lhe ferver os miolos e que desembocaria no filme que enfim se vê na tela. Além de todos os diálogos em cordel, ouvem-se aproximadamente 60 músicas, entre cantadas na voz de Alceu e outras, apenas incidentais. “Eu fiz um musical, mas não queria um musical italiano, nem ópera, nem Broadway. Fiz o meu próprio porque, quando faço o meu, ele é original. Claro que tem influências, mas elas não podem ser muito visíveis, senão vira cópia, e eu não gosto de cópia”, diz, peremptório.

A maneira nada ortodoxa da faceta de cineasta de Alceu Valença não teve adesão facilitada em todas as frentes. Apesar de Irandhir Santos ter compreendido de imediato as intenções e a maneira alucinada do pensamento e da postura do músico, Hermila Guedes foi resistente num primeiro momento. “Meu método era fazer todo o elenco ouvir o filme – primeiro, através das minhas gravações. Inicialmente, Hermila ficou reticente, queria seguir um jeito mais tradicional, mas todos acabaram passando pelo meu estúdio!”, revela o diretor, que contou com o auxílio do preparador de elenco Bruno Costa.


Foto: Antonio Melcop/Divulgação

As filmagens aconteceram entre 2009 e 2011, em locações no interior de Pernambuco. A demora entre os registros no set e o lançamento público se deveu aos velhos dilemas do cinema brasileiro independente: dificuldades de orçamento e finalização, maiores ainda em se tratando de uma produção autoral de R$ 4 milhões. Mesmo sendo um nome reconhecido, Alceu Valença encontrou resistências na tentativa de levar seu projeto adiante. “Eu tenho o que todo artista precisa ter: um pouco de loucura”, disse ele, na apresentação do filme, em Gramado.

Foi essa loucura e a persistência que fizeram o compositor e músico se tornar um autodidata na realização cinematográfica. Percebendo que precisaria contar apenas consigo mesmo, se quisesse levar adiante o sonho que se tornou A luneta do tempo, Alceu comprou um livro de roteiro de Doc Comparato (autor de telenovelas e séries) e tomou aulas de linguagem com a namorada de seu filho, que estudara cinema fora do Brasil. “Depois de 10 aulas, decidi que não ia mais ser um aluno bem-comportado! Quando aprendi aquele negócio de plongée, de panorâmica, fui fazer do meu jeito.” Ele ainda foi ajudado por constantes sessões de filmes no Canal Brasil, que posteriormente o apoiaria na realização do próprio longa.

No debate realizado no dia seguinte à exibição de A luneta do tempo em Gramado, Alceu Valença divertiu o público, ao dizer ter inventado o termo “plano zenital” para convencer os técnicos do filme a confiarem nele como diretor. “Ouvi um conselho de que, se os técnicos não acreditarem no cara, eles o destroem no set. Um dia, antes de filmar, vi o pessoal da técnica e falei bem alto, com um amigo, uns termos difíceis para todos ouvirem. Num momento, acabei gritando: ‘Vou pôr a câmera em zenital!’. No dia seguinte, os técnicos já estavam tecendo loas a mim de todos os jeitos.” E o que seria, afinal, esse tal “plano zenital”? “É o plano de cima para baixo, que aqui chamam de plano picado” (ou plano plongée, em que a câmera se posiciona acima do objeto que filma).

ESPANTALHO
Ainda que tenha se dedicado – bem ou malcomportado – aos estudos sobre como fazer filmes, Alceu Valença não é um neófito na área. Na verdade, ele deve ao cinema a parte mais significativa de sua carreira musical. Logo depois de ter estreado em discos numa parceria com Geraldo Azevedo, em 1972, o jovem de 26 anos foi convidado pelo músico e diretor Sérgio Ricardo para fazer o personagem-título e a trilha sonora do filme A noite do espantalho, rodado em Nova Jerusalém (interior de Pernambuco) e lançado nos cinemas em 1973.


As filmagens foram feitas entre 2009 e 2011, em cidades do interior de Pernambuco. Foto: Antonio Melcop/Divulgação

Fazendo shows no Recife, para apresentar as músicas que compusera para a trilha, Alceu foi visto por um produtor da TV Globo Nordeste e indicado à Som Livre. Estava garantido o caminho para ele gravar o primeiro trabalho solo numa grande empresa, Molhado de suor (1974). Uma curiosidade: Sérgio Ricardo tinha composto, em 1964, as músicas de Deus e o diabo na terra do sol, filme-emblema do baiano Gláuber Rocha, que reverbera em A luneta do tempo exatas cinco décadas depois. A música e o cinema, de alguma forma, já estavam em diálogo no início de trajetória de Alceu, sem ele mesmo ter clareza disso.

A experiência em A noite do espantalho serviu-lhe para plantar a semente do diretor em que ele se tornaria décadas depois. “O fotógrafo do filme era Dib Lutfi e, enquanto os atores saíam depois de fazer suas cenas, eu ficava ali perguntando a ele sobre movimentos de câmera”, relembra o cantor. As ocupações musicais lhe tomaram todo o tempo que poderia ter dedicado ao ofício de cineasta nos anos seguintes, ainda que ele tenha voltado às telas brevemente em Patriamada (1984), de Tizuka Yamasaki, e até numa inserção televisiva na extinta TV Manchete, durante a novela Mandacaru (1997) – na qual, quem diria, interpretou justamente Lampião.

Na infância, numa fazenda em São Bento do Una, então com apenas cinco mil habitantes (hoje, são mais de 50 mil), o pequeno Alceu via cinema de duas formas: através do lençol branco no qual a mãe fazia sombras para chamar atenção dos filhos ou numa das duas salas de projeção da cidade, que exibiam comédias de Charles Chaplin e superproduções da Hollywood clássica. Quando foi morar no Recife, aos 10 anos de idade, potencializou a relação com os filmes. Na juventude, durante os anos 1960, era fã da nouvelle vague e do neorrealismo italiano. Alceu gosta de contar que se parecia fisicamente com o ator francês Jean-Paul Belmondo. Ao assistir a Acossado (1960), de Jean-Luc Godard e com Belmondo no elenco, imitava o trejeito do protagonista de passar o dedo nos lábios.

Da produção brasileira atual, fora das agendas de shows e outros trabalhos, Alceu acompanha os filmes de seu querido Pernambuco. Exalta nomes como Marcelo Gomes, Lírio Ferreira, Kleber Mendonça Filho, Paulo Caldas e Cláudio Assis e cita os títulos O som ao redor (2012), Cinemas, aspirinas e urubus (2005) e Amarelo manga (2003) como alguns de seus favoritos dos últimos anos. De novo, ironicamente, o vigor cinematográfico de seu estado foi retomado em 1997 no filme Baile perfumado, no qual o cangaceiro Lampião, encarnado por Luiz Carlos Vasconcelos, também era personagem-chave. A luneta do tempo, portanto, liga-se a uma tradição recente, defendida pelo próprio Alceu Valença. 

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