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Espumante: O prazer das voluptuosas borbulhas

Chamada de “champanhe”, a bebida é produzida com garbo na Europa, onde ganha várias denominações. No Brasil, é símbolo do potencial vitivinífero nacional

TEXTO Eduardo Sena

01 de Dezembro de 2014

Foto Reprodução

Em uma das recomendações do seu livro Na sala com Danuza 2, Danuza Leão é cirúrgica: “Nunca esbanje dizendo que tomou um champanhe francês, é redundante. Se é de fato champanhe tem que ser produzido na França”. Fato é que a bebida das bolinhas (que, aliás, se chamam perlages) sempre foi resumida grosseiramente. Bastou fazer algum barulho na hora de abrir e ser colocada numa taçaflûte (aquela comprida e estreita) que recebe, equivocadamente, o nome de champanhe.

A bebida é um dos vários tipos de espumantes – vinhos brancos e rosés – que passam por uma segunda fermentação para ganhar sua característica principal: o gás carbônico, responsável pelas borbulhas que hipnotizam e dizem muito a respeito de sua qualidade. “Perlagefina, elegante e consistente”, é como os sommeliers costumam adjetivá-la positivamente. No tilintar das taças, todo champanhe é um espumante, mas nem todo espumante é um champanhe.

“Pronunciar a palavra champanhe significa concentrar-se em um terroir delimitado de 30 mil hectares, situado entre as cidades de Reims e Troyes, é disso que o mundo tem inveja”, alfineta o chef e escritor francês Alain Ducasse, no seu dicionário afetivo da cozinha francesa Ducasse de A a Z. A regra é clara. Desde 1927, só pode ser chamado de champanhe o vinho espumante produzido em Champagne-Ardenne, com as uvas chardonnaypinot noir e pinot meunier, por meio do método champenoise, também conhecido como tradicional.

“Nessa técnica, a segunda fermentação ocorre dentro das garrafas, que são giradas regularmente e passam, aos poucos, da posição horizontal para a vertical. Desse modo, as leveduras se acumulam no gargalo e são posteriormente eliminadas no dégorgement – quando o gargalo é congelado e a pressão expulsa os sedimentos”, explica o sommelier Helton Silva.

Outro método para obtenção do gás carbônico é o charmat, de natureza industrial, com o líquido sendo colocado em enormes tanques de aço pressurizados, chamados de autoclaves. É tecnicamente inferior e bem mais barato provocar a segunda fermentação dessa maneira. Mas é como é obtido o prosecco, espumante italiano que recentemente obteve sua Denominação de Origem Controlada (DOC), atingindo o mesmo patamar de nomenclatura que tem o champanhe.


Chardonay é uma das uvas utilizadas na produção de espumantes. Foto: Reprodução

“As DOCs são importantes para demarcar a área e o método de produção, influenciando diretamente na qualidade permanente do vinho produzido, já que estabelece regras e restrições iguais para todos os produtores”, pontua Helton Silva. No caso do prosecco, para ser chamado assim, deve atender à premissa de ser produzido no norte da Itália, na região do Vêneto, mais precisamente na sub-região de Valdobbiadene, com uma única uva, a glera, antes chamada de prosecco. A mudança do nome da cepa foi mais uma estratégia dos produtores daquelas plagas para limitar o uso do termo.

CAVA, BAIRRADA E OUTROS
A lista de espumantes que recebem nome próprio é longa e traz exemplares de diferentes uvas, origens e etapas produtivas. O cavaé outro deles. Mais conhecido (e importante) espumante da Espanha, assim como o vizinho francês, é produzido pelo método tradicional. Encorpado e dono de aromas minerais fortes, esse vinho deve ser feito com as castas viníferas macabeoxarelo eparellada da região da Catalunha, além de respeitar o tempo de nove meses de vinificação.

Na Penísula Ibérica, ainda há um outro tipo de DOC vitivinífero. “Em Portugal, as borbulhas etílicas mais famosas vêm da Bairrada, prestigiada região que tem mais de 100 mil hectares de terras planas e solos arenosos e argilosos”, afirma a enóloga gaúcha Flávia Cavalcanti, que atualmente promove pesquisas na região. Hoje, existem mais de 20 marcas que atendem aos requisitos técnicos de produção e origem obrigatórios para conquistar a denominação Bairrada.

“As uvas selecionadas podem ser maria gomessercialbicalarintochardonnay e baga, que formam vinhos de bom volume, muita intensidade aromática, além de serem muito secos, característica dos espumantes via champenoise”, pontua. Ainda na Europa, a França também produz outros espumantes famosos. Conhecidos entre enólogos e enófilos como os “primos pobres do champanhe”, osmousseuxblanquette ou crémant (mais famoso dessa série b) ainda lutam pelo DOC, mas já ganham fama pela boa qualidade e vantagem de exibirem preços bem mais baixos que “os parentes” do nordeste da França.


A vinícola Perini é uma das marcas nacionais nas serras gaúchas. Foto: Reprodução

CARA DO BRASIL
Falando em francês, até o jornal Le Monde, num artigo recente, diagnosticou a Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul, como um dos 100terroirs obrigatórios para o vinho no mundo. Para quem acha a lista extensa, Portugal, sozinho, tem quase uma centena de lugares como esse. E adivinha qual o tipo de produto vinícola brasileiro que vem ganhando projeção mundial?

“Em meu país, é raro encontrar vinho-base para espumantes dessa qualidade”, comentou o reputado sommelier chileno Hernán Amenabar, durante a Avaliação Nacional de Vinhos, no último mês de setembro, em Bento Gonçalves (RS), mostrando-se surpreso com a ausência de amargor na bebida que degustava naquele momento frente a um público de quase mil pessoas. A observação mostra o patamar em que se encontra o espumante brasileiro.

É que, para elaborar bons produtos desse segmento, a qualidade do vinho-base, como é chamada a bebida resultante da primeira fermentação, é fundamental. Caso contrário, a segunda etapa fermentativa (seja champenoise ou charmat) fica comprometida. “Poucas regiões do mundo têm características climáticas que favoreçam a produção de uvas para elaboração de espumantes, mas, na Serra Gaúcha (de onde parte 90% da produção vitivinífera nacional), assim como acontece na região de Champagne, o microclima é especial para produção de uvas com essa finalidade, como acontece com as variedades chardonnay e pinot noir”, defende Daniel Geisse, enólogo da Vinícola Geisse, instalada no município de Pinto Bandeira, dentro da privilegiada área, e que coleciona prêmios nos quatro cantos do mundo.

O profissional se refere a um perfeito nível de madurez, preservando uma boa acidez e baixa graduação de açúcar, características fundamentais para elaboração de espumantes de alta qualidade – e difíceis de serem encontradas em outras regiões produtoras. Os números respaldam esse comentário. Segundo dados do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), referentes a 2013, a cada 100 garrafas de espumantes vendidas no Brasil, 79 são nacionais.

“Todas as regiões do mundo podem produzir tudo e, muitas vezes, mais de um tipo de vinho. Espumantes, fortificados, vinho de mesa, vinho de sobremesa… Mas nenhum lugar produz mais de dois vinhos com qualidade máxima. O terroir sempre se adequa melhor a um estilo. O Brasil já achou o seu grande vinho”, diagnostica o sommelier Helton Silva. Estamos falando de produtos que já não competem com os da América do Sul, como os chilenos e argentinos, e, sim, com os espanhóis, italianos e, claro, franceses.


Dégorgement é o método tradicional para a segunda fermentação, no qual as garrafas passam aos poucos da posição horizontal para a vertical. Foto: Jane Prado/Divulgação

Diretor comercial da Vinícola Perini, localizada em Farroupilha, também na Serra Gaúcha, Franco Perini destaca que o espumante é, acima de tudo, a porta de entrada para os vinhos nacionais. “Acredito que o consumidor brasileiro seguirá as tendências mundiais de consumo moderno de vinhos, preferindo os que possuem pluralidade gastronômica, acidez natural, leveza, frescor e álcool moderado. Exatamente as qualidades dos espumantes brasileiros”, conclui. Não à toa, a sua marca apresenta um dos melhores custo x qualidade no mercado nacional, trazendo mais de nove variedades desse tipo de vinho.

DESAFIO FUTURO
Além de transformar essa percepção positiva em competitividade frente aos “primos de segundo grau” europeus, o desafio da indústria nacional é a manutenção da qualidade alcançada. Apesar de ser uma região com características especiais para elaboração de espumantes de alta qualidade, em virtude do relevo e das diferentes composições de solo, a serra não permite a produção de grandes volumes, preservando o mesmo nível de qualidade.

“Por isso, o caminho ideal para que o Brasil possa se consagrar no mundo do vinho como um excelente produtor são a restrição e a busca por agregação de valor a médio e longo prazo, tentando preservar a qualidade e se tornar uma referência em espumantes pela sua diferenciação pelo alto padrão, e não pelo volume”, diz Daniel Geisse, que, apesar da demanda, desde 2011 põe anualmente 230 mil garrafas nas prateleiras.

A procura está maior do que a oferta. Segundo Franco Perini, o consumidor brasileiro tem solicitado tanto os espumantes daqui, que a exportação desses produtos deixou de ser foco prioritário. “Espumante não é apenas uma bebida festiva, de ocasiões especiais, como antes. Pode ser o vinho do dia a dia. Nosso embate agora é equiparar o valor do nosso produto, que tem tributação muito maior que a dos importados, aos de referência de qualidade”, explica.

O que aparentemente está bem- encaminhado. O consumidor está percebendo o alto nível das borbulhas tupiniquins e a excelente relação custo-benefício frente a outros produtos. Por exemplo, ao adquirir um espumante nacional, obtido por método tradicional, na faixa dos R$ 90, terá que gastar, em um champanhe de nível de qualidade similar, algo em torno de R$ 300, sendo que este sofreu muito mais com transporte e armazenamento para chegar até o consumidor. 

EDUARDO SENA, jornalista.

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