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Superstições: gestos arraigados do nosso cotidiano

Por séculos desprezadas pela ciência, devido à “irracionalidade”, crendices atraem especialistas de várias áreas do conhecimento, por estarem na essência do homem, expressando sonhos e medos

TEXTO GILSON OLIVEIRA
ILUSTRAÇÕES JARBAS DOMINGOS

01 de Dezembro de 2014

Ilustração Jarbas Domingos

Comer lentilha, sim, pois ela tem um formato que lembra o da moeda e, consumida ao romper o Ano-novo, pode trazer fartura nos 365 dias seguintes. Para quem está a fim de correr o mundo, uma fórmula é batata: andar pela casa com uma mala de viagem. Agora, se o objetivo é afastar azar, olho-gordo e maus espíritos, o melhor é, durante a queima dos fogos, gritar ou tocar um sino.

Embora a diferença entre o dia 31 de dezembro e o 1º de janeiro seja apenas uma baita ressaca, essa transição temporal tem irresistível simbolismo e proporciona ao ser humano a perspectiva de renovação da existência, como diz a frase “Ano-novo, vida nova!”. A hora da virada é, portanto, o momento de reflexão sobre o ano que passou e, claro, de elaborar listas de metas: este ano, farei as pazes com a balança, economizarei para comprar aquele apartamento…

Difícil mesmo é colocar a coisa em prática… Então, para que os 12 meses que vêm pela frente constituam realmente um “ano da graça”, é bom, como muitos pregam, alguns cuidados adicionais na chegada dele. Exemplos: usar cueca ou calcinha nova (principalmente quem está começando um namoro); deitar e rolar na carne de porco (animal que fuça para a frente, o que significa avanço e prosperidade); e consultar numerólogos (a propósito, o ano de 2015 será regido pelo número 8, que é simbolizado pela rosa, cor que trabalha a afetividade).

réveillon é, realmente, um período em que as superstições também fazem a festa, com participação, inclusive, de muitos que dizem não crer nelas. Acreditar, não acredito, mas, por via das dúvidas… Na verdade, em maior ou menor grau, o homem sempre foi e será supersticioso, como dizem especialistas, a exemplo da psicóloga francesa Monique Augras, para quem a superstição – crença sobre relações de causa e efeito contrárias à ciência e à racionalidade – não resulta de ignorância e de falta de informação. Como exemplo disso, Augras cita o cientista Niels Bohr, Prêmio Nobel de Física em 1922, cuja casa tinha uma ferradura na porta de entrada.

ATÉ TU, SIGMUND!
O que não falta, no Brasil e no mundo, é gente que ficou famosa também por suas manias. Embora considerasse a superstição similar à neurose obsessiva (caracterizada por ideias fixas, receios injustificados e atos compulsivos), Sigmund Freud, o “pai da psicanálise”, uma vez surpreendeu Salvador Dalí ao dizer, após ter sua imagem pintada pelo espanhol: “Este retrato preconiza minha morte próxima”. Tempos depois, Dalí daria detalhes do encontro: “Quando tive a honra de conhecer Sigmund Freud, ele me explicou que as superstições possuíam um fundamento erótico e eficaz junto às forças ocultas. Desde então, mergulho cada vez mais profundamente na superstição. Carrego comigo um pedaço de madeira, que nunca me deixa”.

O que se pode deduzir de vários registros é que Freud era um cientista, mas Sigmund, um supersticioso como qualquer ser humano. Uma das obsessões era a data de sua morte, reforçada depois que conheceu, em 1894, a teoria dos números mágicos, criada pelo médico Wilhelm Fliess. A partir daí, começou a dizer que morreria em 1906, previsão revista em 1907, quando escreveu uma carta ao psicanalista Sándor Ferenczi, com nova data: 1910. Viveria mais 29 anos!

Na área da música, um caso em que as manias se tornaram tão famosas quanto o artista, é o de Roberto Carlos. Entre outras coisas, por não usar preto ou marrom, nem sentar na poltrona 13 do avião. Na Fórmula 1, uma das poles positions é Felipe Massa, que costuma usar, enquanto o tecido resistir, a mesma cueca em todas as corridas e treinos. Na área política, o ex-candidato à presidência dos EUA, John McCain, foi eleito grande supersticioso, quando o jornal Psychological Science revelou que, na campanha de 2008, ele carregava sempre 31 centavos (13 ao contrário) no bolso. O que não evitou que o eleito para presidente fosse Barack Obama.

PENSAMENTO MÁGICO
A afirmativa de Monique Augras de que as superstições nada têm a ver com o subdesenvolvimento ganhou apoio científico em uma pesquisa realizada na Inglaterra – país detentor de um dos maiores IDH do mundo –, a qual demonstra que a ascensão social e cultural do ser humano não diminui o chamado “pensamento mágico”.

Segundo o estudo, que consultou duas mil pessoas, a maioria afirmou ter algum tipo de ação para atrair a sorte e afastar o azar. Duas das mais comuns, encontráveis em quase todo o mundo, são: bater na madeira para afastar a má sorte (as árvores são a morada dos deuses, de acordo com a cultura celta) e nunca passar debaixo de uma escada (ela é a imagem da subida, da ascensão social, e passar por baixo é renunciar a isso).

No Brasil, um dos intelectuais que mais se interessaram pelo tema foi Kurt Kloetzel, autor do livro O que é superstição, no qual diz: “Embora a superstição possa nos fazer mal, ela é muitíssimo necessária, porque responde à nossa necessidade de segurança. Não é por coincidência que justamente o campo da saúde e da doença, onde nosso desamparo se torna mais evidente, esteja minado por toda sorte de crendices. A superstição nos oferece abrigo seguro. Pois em nós não reside somente o barro, como também o escultor, como bem reconheceu o filósofo Nietzsche”.

É a consciência de sua pequenez diante das forças e mistérios da vida que faz o homem criar, desde a mitologia mais antiga até o presente, grande arsenal de heróis e fórmulas mágicas, caso da lâmpada de Aladim, da poção maravilhosa de Astérix e do espinafre do marinheiro Popeye.

O que a ciência diz hoje é que superstição e magia compõem as duas faces da mesma moeda e têm muito a ver com a ideia que a criança possui de si mesma e do mundo. O que isso quer dizer? Uma dica inicial está numa frase de Freud: “A investigação dos povos primitivos mostra a humanidade inicialmente aprisionada pela crença infantil em sua própria onipotência”.

Essa concepção, comum a vários outros pensadores, como o psicólogo Jean Piaget, nasceu quando a ciência começou, conforme Kurt Kloetzel, a mapear seriamente a mente humana, visando conhecer “a evolução das ideias, dos primeiros passos da magia à religião, da religião à ciência. E não tardou para que descobrissem um extraordinário paralelismo entre a mente primitiva e o pensamento infantil”. Isso porque, segundo Piaget, a criança, nos seus primeiros meses, vive um profundo egocentrismo, achando que o universo gravita em torno dela.

“O pensamento mágico manifesta-se a partir do berço. O poder do desejo é soberano: é só querer e deixar o resto por conta da mágica. Se perguntarmos a uma criança sobre as nuvens, saberemos que elas se movem porque a criança assim o quer”, diz Kloetzel, acrescentando: “Por seu componente mágico, o pensamento infantil, assim como aquele das culturas primitivas, serve de protótipo para todas as superstições, sejam as individuais, sejam as coletivas”.

O interesse da ciência por esse tema começou em 1868, quando foi descoberta a Caverna de Altamira, na Espanha, em cujo interior existe um tão rico e bem-preservado conjunto de pinturas do homem pré-histórico, que ela foi chamada de “Capela Sistina da arte rupestre”. Com cerca de 35.600 anos, as pinturas provocaram muitas indagações nos cientistas, como: são uma forma de expressão artística? Mas, se o motivo fosse esse, por que escolher um lugar tão distante dos olhares? E qual a razão da repetição dos temas: cenas de caças, figuras de veados, renas e bisões?

Ao perceberem que os animais retratados eram os mesmos usados como alimento, os cientistas concluíram que as pinturas eram alegorias, através das quais o homem buscava dominar a realidade e pedir ajuda aos poderes sobrenaturais para alcançar êxito na caça. Eram os primeiros passos da magia, a crença no poder do desejo. “A magia é o instrumento usado pela criança, o homem primitivo e o supersticioso para dominar a natureza e livrar-se de perigos”, ressalta Kloetzel.

SANTO PARA TUDO
As adversidades cotidianas fizeram a força do desejo e a ideia de onipotência caírem por terra e, para se proteger e entender o mundo, o homem construiu um universo mitológico, do qual surgiu a religião, embora esta se considere porta-voz da verdade. Sobre isso, diz Kloetzel: “Seria utópico esperar uma ruptura radical com as formas anteriores de pensamento. Logo, não surpreende reconhecermos na religião resquícios de magia – incluindo oferenda aos deuses, rituais de sacrifício –, bem como uma abundância de mitos, milagres e revelações proféticas”.

A presença da magia e do mito na religião – portanto, da superstição – ainda é muito forte nos dias de hoje, como mostra o imenso número de santos e santas existentes, aptos a resolver qualquer problema, como Santo Expedito, que, no seu dia, 19 de abril, enche as igrejas de endividados; Santo Ambrósio, contra o adultério; São Elmo, desordem intestinal; São Fiacre, hemorroidas; e Santa Bibiana, ressaca.

Para tentar antever o que lhe reserva o futuro – esse temível desconhecido –, o homem recorreu a outro tipo de divindade, a “Santa Astrologia”, que ainda hoje continua brilhando tanto quanto os próprios astros que observa e interpreta à luz dos mitos. Na Roma antiga, os astrólogos chegaram a ser tão acreditados, que até os reis os consultavam antes de tomar alguma importante decisão de Estado.

Ao que tudo indica, nem a crescente cientifização e tecnologização do mundo vai conseguir pôr fim ao pensamento supersticioso, porque – recorrendo mais uma vez a Kloetzel – “a necessidade dos homens de acreditar sempre se mostrou mais poderosa que o apetite pela verdade e é preciso ser muito ingênuo para pensar que a superstição possa um dia ser erradicada da face da terra”.

Talvez por isso, Francis Bacon, o fundador da ciência moderna, afirmou que “evitar superstições é outra superstição”. O poeta Fernando Pessoa foi além: “Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizada a auge, marcam o homem superior”. 

GILSON OLIVEIRA, jornalista.
JARBAS DOMINGOS, ilustrador, chargista e quadrinista, trabalha no Diario de Pernambuco.

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