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“As megafavelas são recurso mais subutilizado do mundo”

Autor de mais de 20 livros, em que analisa as contradições da sociedade, escritor norte-americano Mike Davis discute a “superurbanização” e as desigualdades e incoerências das metrópoles

TEXTO Luciana Veras

01 de Janeiro de 2015

Mike Davis

Mike Davis

Foto Tao Ruspoli/Divulgação

Ecologia do medo (Record, 2001), Holocaustos coloniais (Record, 2002), Planeta favela (Boitempo, 2006), O monstro bate à nossa porta (Record, 2006), Cidades mortas (Record, 2007) e Apologia dos bárbaros – ensaios contra o império (Boitempo, 2008) são alguns dos 20 livros que o escritor norte-americano Mike Davis lançou nas últimas duas décadas. Tal fortuna crítica é indubitável, serve-lhe de credencial para refletir sobre o mundo e as vertiginosas, contraditórias e intensas transformações ocorridas nos primeiros anos do século 21.

No entanto, ele faz uso da modéstia ao conversar com a Continente. “Essas são questões majestosas para alguém que viajou pouquíssimo como eu e que tem quase nenhum contato pessoal com acadêmicos das várias disciplinas dos estudos urbanos. Eu ensino a escrever como meio de vida, sou politicamente controverso pelos meus ataques às elites de Los Angeles e nunca recebi uma única oferta de emprego em nenhum campo remotamente conectado aos tópicos de Planeta favela. Tenha isso em mente”, escreveu de San Diego, na Califórnia, em uma tarde de dezembro, em meio ao “frenesi das festas de fim de ano, maior ainda para quem tem uma família grande”, como ressaltou.

Embora, de fato, lecione no Departamento de Escrita Criativa da Universidade da Califórnia/Riverside, Davis não é “apenas” um professor. Historiador, teórico, pesquisador sobre o ocaso da arquitetura, o fracasso de soluções econômicas ou as contradições da atual sociedade, ele se tornou uma das vozes mais originais – e incisivas – no debate que coteja e contrapõe urbanismo e capitalismo. Sua publicação mais famosa, Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles, de 1990, relançada no Brasil em 2009 pela Boitempo, foi eleita o melhor livro em política urbana pela American Political Science Association e recebeu o prêmio Isaac Deutscher da London School of Economics.


Foto: Reprodução

Nesse livro, como de regra em todos os subsequentes, Mike Davis analisa o capitalismo, as exclusões por ele causadas e as desigualdades e incoerências das metrópoles, cada vez mais inchadas em oposição ao esvaziamento do campo – temas que alinhavou com precisão nas suas respostas à entrevista. Ele ainda transcendeu as questões propostas pela Continente, para cometer o que chamou de “uma pequena digressão”, enriquecendo o debate sobre a circulação de informações na internet. “Enquanto, por um lado, o setor de tecnologia da informação ainda mantém uma aura de empreendedorismo criativo e genial, por outro, é melhor caracterizado como uma guerra contínua entre gigantes, que competem para controlar toda a informação, passada e futura, do mundo”, afirma, sugerindo um horizonte para a rede.

“A internet, especialmente a Google e seus competidores, deveriam ser uma utilidade pública regulada democraticamente. A legislação antimonopólio deveria ser aplicada à Amazon, Ebay e companhias afins. Deixemos que os empreendedores genuínos criem os novos apps e fiquem ricos, mas as plataformas e a mídia precisam ser de propriedade do povo, e administradas pelos representantes eleitos por voto direto – e não por agentes apontados pelo estado”, resumiu.

CONTINENTE O mundo atual: o que aconteceu nos últimos anos para fazer de nossas cidades lugares quase insuportáveis, até mesmo com um ar difícil de respirar?
MIKE DAVIS A crise do nosso mundo urbano é, acima de tudo, a crise globalizada do campo. Dezenas, até centenas de milhões de pessoas foram deslocadas de suas terras por corporações agrícolas de larga escala, acordos de comércio livre e reforma agrária ao contrário. O resultado, na minha opinião, tem sido a “superurbanização”, já que a população rural percebe suas únicas esperanças de emprego e educação no cassino de oportunidades da metrópole; mais vale uma chance pequena de melhora em uma favela do que nenhuma no campo. Além do mais, as cidades agrícolas e os pequenos municípios do interior foram totalmente negligenciados por urbanistas, políticos e legisladores. Sou especialmente crítico com relação às políticas públicas de investimento que mantêm a concentração de recursos culturais e educativos no centro. Por outro lado, a situação urbana, de uma forma bem generalizada, deve-se ao poder de instituições financeiras do hemisfério norte e a uma geração de desenvolvimento perdida graças à crise das dívidas dos anos 1980 e 1990. Em consequência, vemos uma urbanização sem uma proporcional criação de postos de trabalho no setor formal; uma tendência à desindustrialização em países como México, Brasil e África do Sul; uma competição superdarwiniana nos mercados de trabalho e habitação informais; tributação absolutamente regressiva na escala metropolitana; falta de controle democrático sobre a maioria das decisões acerca do uso da terra e dos investimentos públicos; um desenvolvimento excessivo e desregulado que, quando transborda, traz impacto para lençóis freáticos cruciais e reservas ecológicas; a crescente automobilização das cidades asiáticas; o retiro das classes abastadas para dentro de mundos murados, separados do tecido urbano popular; o armazenamento dos pobres, especialmente os novos migrantes, nas periferias urbanas que não são cidade nem campo; a ascendente dependência dos moradores de favelas do crime de subsistência, assim como a criminalização da polícia; e, acima de tudo, a ausência de qualquer estratégia popular para redistribuição de riqueza e poder. Os crescimentos significativos no bem-estar social na Venezuela e no Brasil se devem, em larga escala, a um aumento na partilha pública das exportações de commodities primárias e não são, portanto, sustentáveis, para atravessar futuras crises econômicas globais.


Foto: Divulgação

CONTINENTE E o que ocorreu para acarretar tal enorme fracasso do planejamento urbano? Negligência, talvez, dos governos ao redor do mundo?
MIKE DAVIS Na última geração, o Brasil tem sido o Vale do Silício do urbanismo alternativo, um laboratório para experimentos dramáticos em orçamento participativo, governanças por bairro, trânsito das massas, reciclagem metropolitana e por aí vai. Mas, ao mesmo tempo, tem sido a fronteira orwelliana para aplicações avançadas em contrainsurgência urbana, corrupção policial e remoção de favelas. Somente os brasileiros podem explicar esse paradoxo e tirar daí as lições políticas apropriadas.

CONTINENTE Como o mundo é afetado pelas megafavelas que toda grande cidade tem e tenta esconder?
MIKE DAVIS As megafavelas, com suas populações jovens e energias culturais de alta voltagem, são o maior e mais subutilizado recurso do mundo. Mas o problema-chave com a favela, eu repito, não é habitação ou infraestrutura, e, sim, emprego. Uma proporção significativa da humanidade urbana se tornou o excesso da acumulação do capital na escala global e não será integrada à economia privada formal em nenhum futuro concebível. Isso é, portanto, um desperdício de trabalho humano e de criatividade em uma escala catastrófica. Postos de trabalho devem vir da expansão do setor público sob condições democráticas e redistribucionistas mais radicais do que as que existem hoje, mesmo em países progressivos como o Brasil. Toda a genialidade, a bondade e o poder espiritual para salvar a Terra existem nas favelas e devem ser libertados.

CONTINENTE A considerar tudo que vemos hoje em metrópoles como São Paulo, Mumbai, Lagos ou mesmo o Recife, você acredita que é possível antever um futuro em que toda a população que habita as favelas vai ser, ao menos, percebida como cidadã?
MIKE DAVIS Cidadania e sua franquia não significam nada, a não ser que possibilitem à população pobre fazer mudanças estruturais nas suas situações de vida. Enquanto todo mundo estava focado nas “revoluções coloridas” do início dos anos 1990, na Europa oriental e na ex-União Soviética, uma outra revolução, mais quieta, porém de importância comparável, acontecia em cidades variadas ao redor do mundo, como Seul, Cidade do México e Londres. Depois de anos de batalha, governos municipais antes indicados pelo poder central foram democratizados e os moradores das cidades ganharam o direito (ou esse direito foi restaurado) de votar em prefeitos e conselheiros (vereadores). A cidadania municipal assumiu um significado substancioso e grandes esperanças foram criadas por reformas mais efetivas, especialmente quando a esquerda tomou o poder por algum tempo em praticamente toda cidade importante da América Latina. Mas esse registro é misturado; em alguns casos, o fracasso ou a escassez de mudança social desmobilizou as forças populares que trouxeram a democratização. Então, quando você pergunta sobre uma cidadania “autêntica” para os moradores da favela, o que de fato está questionando, eu penso, é se valem a pena o voto e o ativismo político deles. Que mudanças podem resultar de uma mobilização puramente eleitoral dos pobres urbanos? Menos mudanças do que nós desejamos uma vez. Cidadania sem direitos econômicos explícitos e organização extraeleitoral é simplesmente uma reintegração à pobreza para a maioria. Os líderes carismáticos do povo, é claro, podem ser elevados a grandes alturas pela política eleitoral; enquanto a advertência deles, quase sempre, é “confie nos seus representantes e pare de protestar”. Vitórias da esquerda têm levado, comumente, ao desmantelamento das mesmas organizações de base que colocaram esses políticos de esquerda no poder.


Foto: Divulgação

CONTINENTE É possível argumentar que um dos aspectos mais intrigantes e antropológicos da globalização, em especial nessa primeira década do século 21, é o fato de que todas as cidades se parecem. David Harvey assim o disse ao visitar o Recife e constatar que a capital pernambucana se assemelhava a Miami. À luz das suas pesquisas, não apenas para Planeta favela, mas também para seus outros livros, você concorda? Teria a pobreza a mesma expressão visual no Brasil, na Nigéria, na Índia, nos Estados Unidos e na China?
MIKE DAVIS Todo mundo olha agora para megaprojetos e conjuntos de arquitetura monumental (recorrentemente envolvendo remoção de população) para “rotular” as cidades, em vez de observar a qualidade da vida pública. Já no começo do século 20, teóricos sociais discutiam a homogeneização dos espaços em que a classe média europeia vivia, viajava e tirava férias. Mais de um século depois, podemos encontrar clones de subúrbios californianos nas redondezas de Cairo, Pequim, Jacarta ou Buenos Aires. Os ricos, bem como os mais afluentes estratos das classes médias, mudaram-se para as colônias off world de Blade runner – um assustadoramente uniforme e completamente desenraizado simulacro de estilos de vida luxuosos da América do Norte ou da Europa ocidental. Isso é particularmente impressionante na Ásia. A alma de uma cidade, bem como sua individualidade, permanece nos seus bairros populares e nas suas lutas. Enquanto os trabalhadores mantiverem um pé no tecido urbano tradicional, mesmo o mais pobre povoado urbano vai ter uma imbatível soberania cultural. Mas quando o espaço público democrático se contrai, quando as vizinhanças são “renovadas” pela gentrificação, quando os encontros inter-raciais são vistos como muito “perigosos”, quando o proletariado urbano é empurrado para fora, rumo a periferias sem forma – as cidades começam a morrer espiritualmente. Seis ou sete anos atrás, fui convidado para dar uma série de palestras a arquitetos e urbanistas, em Paris. Em um determinado momento, alguém me perguntou o que eu achava da cidade – daquela Paris agora bem limpa, “escovada” de toda a sujeira, segura para pedestres e extremamente bem policiada. Eu disse que era um belo e estéril museu, paraíso para turistas e burocratas, mas, como o retrato de Dorian Gray – sem alma e secretamente grotesco. Se ainda estivesse viva, Edith Piaf não teria cantado, mas simplesmente chorado.

CONTINENTE Há um capítulo em Planeta favela chamado A ecologia da favela, no qual você descreve o mais devastador cotidiano dos pobres, entre lixo, dejetos humanos e destroços. Na sua opinião, qual é o assunto mais urgente a ser confrontado: a degradação ambiental ou as desastrosas condições de vida urbana? É possível contornar os dois?
MIKE DAVIS Saúde pública e sustentabilidade ambiental são dois lados da mesma moeda. Os mais importantes medicamentos na Terra são água e ar limpos. Cidades não podem existir sem recursos naturais e um metabolismo urbano saudável depende da conservação do espaço aberto nas áreas de nascente e foz de rios e da proteção dos lagos e águas urbanos dos lixos humano e industrial. Até mesmo diversas cidades abastadas ainda jogam o esgoto nos rios ou no mar. Eu acho que estamos todos cientes (ou pelo menos deveríamos estar) de que a ausência de saneamento básico degrada as mulheres pobres e mata bebês através da água contaminada. E é claro que urbanização sem investimento público em saneamento básico, água encanada e infraestrutura sanitárias – especialmente no caso da África ocidental, a mais rápida região em urbanização do mundo – cria o habitat perfeito para o surgimento de novas doenças e para a disseminação de pandemias. O ebola pode ser nosso último aviso.

CONTINENTE Você acredita que o capitalismo teve atuação importante na “favelização” do planeta? Na sua opinião, estaríamos vivendo em uma Terra diferente, se o capital não tivesse feito do mundo o seu reino?
MIKE DAVIS Como a maioria das pessoas, eu me entusiasmei com o sucesso do movimento Occupy em ressaltar as crescentes desigualdades de renda e lucro que, nos Estados Unidos, são tão grandes agora como foram na década de 1920, ou talvez até mesmo nos anos 1890. Mas o maior problema em uma plutocracia não é tanto sua riqueza, e, sim, seu poder econômico. A maioria das decisões econômicas fundamentais (que, claro, são também decisões ambientais) nesse planeta são agora feitas em esferas privadas por provavelmente não mais do que 20 mil pessoas. Esse contingente inclui, claro, os cabeças dos 50 maiores bancos e 200 maiores corporações, como também seus investidores principais e seus congêneres estatais cleptocráticos. Um pequeno, mas extremamente rico, grupo de países produtores de petróleo (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Oman, Qatar e Bahrain) são pouco mais do que corporações privadas com monarcas absolutos no papel de CEOs. Então, o maior desafio é também o mais simples. Será que esses 20 mil indivíduos e grupos superpoderosos possuem tanto a motivação como a capacidade para resolver os maiores desafios da civilização na próxima geração: gerar empregos para 2,5 bilhões de pessoas, salvaguardar a humanidade contra mortes em massa em decorrência de epidemias e desastres naturais, levar adiante uma nova revolução agrícola para garantir segurança alimentar e ainda desarmar as maiores potências nucleares? Se, de fato, os senhores do universo souberem atuar racionalmente, eles continuarão a acumular riqueza e poder, enquanto amplamente ignoram o destino da humanidade. Vai haver, é claro, alguma fachada de filantropia, como a Fundação Gates, mas seu impacto será trivial. Enquanto isso, a regulação do poder econômico global por meio das instituições políticas nacionais e internacionais existentes é simplesmente uma ilusão. Nenhum parlamento ou congresso do mundo pode ainda sonhar em estabelecer parâmetros para decisões sobre macroinvestimentos ou para controle do fluxo de capital. Basta considerar o fracasso da reforma bancária na Europa e nos Estados Unidos após a crise de 2008. Somente em circunstâncias semirrevolucionárias, como na Bolívia e, possivelmente, na Venezuela, nós pudemos ver tentativas sérias de dar assento ao povo no gabinete que controla a economia. Qualquer novo modelo de uma política socialista ou populista que não mira, seriamente, a democratização de setores-chave da economia não é novidade em hipótese alguma. E, como o caso da América Latina já mostrou, a única saída real do neoliberalismo tem que ser em escala regional ou continental. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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