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"Há duas coisas infinitas e eternas: Deus e o clichê”

Escritora porto-alegrense Cíntia Moscovich fala sobre processos produtivos, a influência da matriz judaica nos seus enfoques, e de como o humor a ajudou a enfrentar um câncer nas amídalas

TEXTO Lucas Colombo

01 de Novembro de 2015

Cíntia Moscovich

Cíntia Moscovich

Foto Cleber Passus/Divulgação

Cíntia Moscovich recebeu a Continente em sua simpática casa azul de floreiras sob as janelas, no Bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, num dia nublado de inverno. Nuvens cinzentas também pairaram sobre a vida da escritora, pouco tempo atrás. Em 2008, concluídos 30% de um livro de contos, ela recebeu diagnóstico de câncer nas amídalas, contra o qual passou por tratamento severo até 2012. Curada, terminou e lançou o trabalho que a doença interrompera: Essa coisa brilhante que é a chuva, ganhador do Prêmio Portugal Telecom de 2013 e bem-recebido por crítica e público.

No livro, Cíntia oferece contos que, embora convencionais na forma, prendem o leitor pela universalidade das suas tramas familiares e urbanas, envoltas por uma atmosfera que mistura melancolia e esperança. A temática judaica, uma das suas preferidas (ela é descendente de imigrantes judeus), aparece em algumas das histórias, bem como nas de outra reunião premiada de contos seus, Arquitetura do arco-íris (2004).

Sua lista de obras contém ainda os romances Duas iguais (1998) e Por que sou gorda, mamãe?(2006). São também romances os dois próximos livros nos quais trabalha. Um já está pronto. Baleia-assassina é uma narrativa infantojuvenil que, inicialmente criada para uma série sobre sustentabilidade da editora DSOP, será lançada em 2016. O outro, adulto, ainda não finalizado, é inspirado na convivência da autora com o câncer.

Porto-alegrense nascida em 1958, Cíntia comanda, na capital gaúcha, uma oficina anticlichês de escrita e mantém uma coluna no jornal Zero Hora, na qual, por vezes, dispara corajosa contra a tropa do politicamente correto. Nesta entrevista, fala dessas atividades, dos novos projetos, questões polêmicas do mundo literário e como o humor a ajudou a enfrentar a doença séria. Também não se furta a comentar outro período nebuloso, este ainda sem dia de sol à frente: o que o Brasil atravessa.

CONTINENTE Como foi escrever para adolescentes? O americano John Green, do best-seller A culpa é das estrelas, disse que escreve da perspectiva de adulto, não tenta “se passar” por adolescente, para não soar caricato.
CÍNTIA MOSCOVICH Já tive uma experiência anterior, com um livro de encomenda chamadoMais ou menos normal. Mas sempre tive uma narrativa mais de inação, reflexiva, paradona mesmo. Me ocorreu fazer “escaleta”, como num roteiro: a decupagem das ações que vão acontecer. Então, assumi a narrativa sem me preocupar se ia narrar do ponto de vista adulto ou adolescente. Não gostaria de fazer essa discriminação. Mas sabia que tinha de ter cuidado com a linguagem. Afinal, a linguagem que se usa para um adulto não é a que se usa para outro público. Isso não significa que é bom ou ruim, mas que é preciso agilizar a leitura. O approach para escrever tem que ser menos rebuscado em termos de linguagem e mais ativo em termos de ação.

CONTINENTE Ao criar uma história com sustentabilidade como tema de fundo, procurou evitar certo romantismo “verde”?
CÍNTIA MOSCOVICH (risos). Justamente. O medo que eu tinha, quando aceitei escrever o livro, foi de virar “ecochata”. Aí criei a história de um guri que tem uma mãe assim, dessas que recolhem lixo… E ele tem ojeriza à história da mãe. O pai é engenheiro, constrói prédios, derruba árvores. Eles têm uma discussão à mesa, o pai diz: “Mas tem que derrubar, paciência. Eu tive que derrubar um ipê para construir nossa sala de jantar”. A civilização é uma sinuca de bico, né? Pus no livro essas discussões que me tiram do enfoque mais radical, panfletário, porque tenho horror a isso. Mas também, como a série era sobre sustentabilidade, e eu tinha que dar uma força para o pessoal “verde”, não pude desprezar a questão.

CONTINENTE Já terminou o romance sobre a convivência com o câncer?
CÍNTIA MOSCOVICH Não encontrei o tom ainda, mas estou produzindo, penso nele o tempo todo. O problema é que, assim como evitei o panfleto no Baleia-assassina, quero evitar nesse. Quando se fala de doença e morte, a tendência é se lastimar, e deprimir o leitor. Mas não quero que seja sofrido para ler – porque será sofrido para escrever. Quero humor. Durante o tratamento, houve episódios ridículos, e talvez tenha sido esse lado ridículo que me fez vencê-lo.

CONTINENTE O humor judaico, esse mais irônico, autodepreciativo, ajudou você a enfrentar o câncer como historicamente ajudou o povo judeu a enfrentar adversidades?
CÍNTIA MOSCOVICH Sempre tive esse lado autodepreciativo, sem saber que era o tal humor judaico (risos). Fui criada nesse ambiente. Mas, quando fiquei doente, pensei: não vou rir dessa merda. Câncer de amídalas é muito singular, geralmente dá em homens que fumam e bebem. Mas meu tratamento começou com cena de comédia-pastelão. No consultório, o médico foi retirar um pedaço da minha amídala para examinar. Aparecia na tela. Então ouvi passinhos, barulhinho de porta abrindo, um baque e mulheres gritando. Meu marido desmaiou! E ele é cardiopata. Saímos eu e o médico, com minha amídala numa pinça, e o vimos no chão. O médico disse que era só um susto. Mas meu marido quebrou a patela ao cair, teve que passar dias imobilizado. O médico depois me falou: “Não traz mais ele aqui. Tu precisas de uma pessoa forte ao teu lado”. “Mas, doutor, é meu marido!” (risos). “Não, é melhor que não venha.” Houve episódios dramáticos, claro, mas esse é sensacional. Jamais inventaria uma história tão maluca. E é esse lado que quero abordar no livro.

CONTINENTE Em Essa coisa brilhante que é a chuva, você pôs citações de Woody Allen e Moacyr Scliar. A leitura de autores judeus é constante?
CÍNTIA MOSCOVICH Citei o Scliar porque ele tinha falecido recentemente, e fiquei muito sentida. A frase do Woody eu acho maravilhosa. Como o livro foi publicado depois do meu câncer, não existia frase que definisse mais o momento que eu vivia (“A vida não imita a arte, imita programas de TV ruins”).

CONTINENTE O conto Bonita como a Lua, de Arquitetura do Arco-Íris, é a história da sua infância?
CÍNTIA MOSCOVICH Em grande medida, é parecida com a minha. Histórias com personagens infantis são cheias de autorreferência. Cheias. A minha infância não foi tão perfeitinha quanto. Os pais dela são superqueridos, os meus eram mais “de verdade”, com um pouco mais de crueldade, mas isso é normal.

CONTINENTE Você nunca escreveu poesia?
CÍNTIA MOSCOVICH Comecei escrevendo. Muito pequena, já lia Pessoa, Bandeira, Vinicius, Drummond. Era boa leitora de poesia e sempre quis escrever. Mas tinha a ideia e, quando ia por no papel, parecia que se esfacelava. Escrevia porcaria. Tinha noção de que o que eu lia era bom e o que escrevia, não.


Woodely Allen. Foto: Divulgação

CONTINENTE Pretende retomar, um dia?
CÍNTIA MOSCOVICH Não! Só retomei uma vez para ganhar dinheiro. Uma fábrica pediu para imprimir poemas em papel comestível. Até fiz. Mas sei que aquilo tem que ir para a privada, mesmo… Só quando fui para a prosa, com 35 anos, consegui fazer algo que, mais ou menos, me agradasse. Sou neurótica. Não tenho condescendência comigo mesma.

CONTINENTE E com os outros? Com clichês, por exemplo, contra os quais você ministra oficina?
CÍNTIA MOSCOVICH Há duas coisas infinitas e eternas: Deus e o clichê. Tem pessoas que falam por clichê. É algo inescapável, pois é usado para facilitar a comunicação diária. São fórmulas prontas que ajudam. Propaganda usa clichê, narração de futebol usa, texto de novela usa. Mas literatura é outra coisa. O primeiro exercício da oficina é de “desobsessão” – peguei o título emprestado do espiritismo, aquilo de fazer com que o espírito “te deixe”. Eles escrevem um texto com todos os clichês possíveis, e a partir disso nunca mais vão usar.

CONTINENTE Por que a ficção brasileira, hoje, raramente entra na lista de mais vendidos?
CÍNTIA MOSCOVICH Vou usar um clichê: “Santo de casa não faz milagre” (risos). Ninguém aqui faz o que o John Green faz, por exemplo. Lidar com um tema como o câncer com simplicidade, sem pretensão. Nós, e me incluo nisso com tranquilidade, ainda somos pretensiosos. E literatura mais elaborada é vista pelas pessoas como algo rançoso. Só leitores vocacionados se aventuram em livro de autor brasileiro.

CONTINENTE Você tem explicação para o fenômeno Cinquenta tons de cinza? Leu?
CÍNTIA MOSCOVICH Cheguei a ler. Achei jardim de infância… Foi sucesso porque tudo que diz respeito a sexo cola bem. Mas é difícil descrever sexo. Dificilmente se foge do “membro túrgido”, “botão do prazer”… e naquela porcaria tem tudo isso. Nenhuma cena bonita, erótica… Só aquela coisa sadomasoquista. A Tiazinha era mais encantadora.

CONTINENTE E os livros de colorir, que tal?
CÍNTIA MOSCOVICH Eu gosto, tenho um. Acho legal, nada contra. Por que ser contra diversão? As pessoas podem ler Machado e colorir livro. Não vejo antagonismo. Não é por ter livro de colorir que as pessoas vão parar de ler.

CONTINENTE Quando você escreve sobre outros escritores, é em tom positivo. Por que você, como a maioria dos autores brasileiros, não costuma criticar obras de colegas conterrâneos?
CÍNTIA MOSCOVICH Porque obras ruins o tempo consome. Não preciso colaborar para que desapareçam. Se um livro não presta, não preciso demoli-lo. Naturalmente, o tempo vai fazer comque ele se perca.

CONTINENTE Mas concorda que há espírito de patota no meio literário brasileiro?
CÍNTIA MOSCOVICH Concordo. Não sei quem é a patota, mas concordo. E não é diferente do meio dos advogados, médicos, jornalistas. As pessoas procuram seus iguais porque têm inquietações semelhantes. Nem tudo é patota, “galera”. Vejo virtudes no meu colega e falo delas. Quero que as pessoas também leiam. Não estou fazendo favor a ninguém. Me recuso a bater numa obra e também me recuso a elogiar porcaria, pois isso depõe contra mim. Se um amigo publica um livro ruim, prefiro não tocar no assunto.

CONTINENTE Arnaldo Jabor declarou que adorou virar cronista, nos anos 1990, pois passou a se “sentir útil”: influenciava debates mais do que quando era só cineasta. Colunas suas já geraram controvérsia. O conteúdo das reações dos leitores, tão rápidas nestes tempos de internet, já lhe fez se sentir útil ou inútil?
CÍNTIA MOSCOVICH Na maior parte das vezes, muito útil. No jornal, quando posso incomodar, ah, incomodo. No sentido de querer fazer pensar. Pois estou nos achando muito “manada”. As pessoas não têm opinião própria. Não sabem o que estão falando.

CONTINENTE Em 2014, você escreveu que o conflito Israel-Gaza estava servindo como desculpa para antissemitismo. Neste ano, criticou a atitude da parte da militância negra que quer conquistar direitos no grito. Já se sentiu discriminada no meio literário brasileiro, majoritariamente crítico às ações de Israel e pró-cotas raciais?
CÍNTIA MOSCOVICH Nunca. Uma vez, no entanto, num Portugal Telecom, presenciei algo não diretamente contra mim. Não vou dizer os nomes porque são pessoas conhecidas no meio. O livro em questão era um de poemas do Nelson Ascher, grande poeta, grande pensador, e judeu. Eu era a única judia do grupo. Mas o pessoal da Unicamp, da USP… meu amigo, é troço de maluco. Muito inflexíveis. Pomos em votação se o livro entraria na categoria poesia. E a senhora da USP disse: “Não posso votar nele porque ele é contra os palestinos”. E a da Unicamp: “Ah, não posso votar, o cara tem uma posição muito antagônica ao povo palestino”. E eu: “Peraí: estamos avaliando obras, o cara tem a posição que quiser, não se pode usar isso como parâmetro literário, não pertence à discussão”. Aí acabou. Ninguém mais falou sobre isso. Não sei se evitam falar perto de mim, porque eu vou pra cima, ou se realmente respeitam.

CONTINENTE A poeta Adélia Prado disse que os artistas/escritores estavam omissos diante da situação política brasileira, deveriam criticar mais a corrupção. Estão?
CÍNTIA MOSCOVICH Não creio. O escritor tem compromisso com o tempo dele, mas as pessoas confundem: acham que ele tem que entender de tudo, até de política. Não creio que escritores tenham de sair dando palpite, defender ou atacar Dilma. Todos, como cidadãos, têm um papel no tecido social, inclusive como formadores de opinião. Estamos omissos não como escritores, mas como povo, como nação.

CONTINENTE Os adolescentes que lerem seu livro novo serão a primeira geração em 20 anos a viver uma crise?
CÍNTIA MOSCOVICH Não tinha me dado conta disso! A crise que minha geração viveu, no fim da ditadura, foi mais punk que a de agora, mas resultou em coisa boa: todo mundo parava e refletia acerca da realidade. Quem sabe essa crise não sirva para um amadurecimento da democracia, uma valorização real do conhecimento, da cultura. Tomara. 

LUCAS COLOMBO, jornalista gaúcho, editor do site Mínimo Múltiplo.

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