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Camadas de história naquelas prateleiras

O impulso pessoal de buscar e adquirir obras move indivíduos, que acabam se tornando detentores de imensas bibliotecas privadas

TEXTO Priscilla Campos

01 de Novembro de 2015

José Mindlin foi um dos maiores nomes da bibliofilia brasileira

José Mindlin foi um dos maiores nomes da bibliofilia brasileira

Foto Marcelo Oliveira/Estadão Conteúdo

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 179 | nov 2015]

Manhã de setembro, quase primavera:
o vento frio movimenta as árvores da Avenida Professor Luciano Gualberto, uma das vias centrais do campus da Universidade de São Paulo (USP). Em meio à imensa propriedade da instituição, uma estrutura de arquitetura moderna, de cor acinzentada e rodeada por janelas de vidros, se faz figura imponente na paisagem. Entre os prédios desse complexo, construído em 2013, está a Biblioteca Brasiliana Guita e JoséMindlin. O ambiente reúne 32,2 mil títulos que correspondem a 60 mil volumes, todos pertencentes ao casal Guita e José Mindlin, este, um dos maiores nomes da bibliofilia brasileira.

No hall, o visitante pode estabelecer contato com toda a história do advogado paulista, desde uma linha do tempo até vídeos em que é documentada parte de sua casa, na qual o bibliófilo mantinha, em vários espaços, uma coleção de aproximadamente 120 mil publicações. “Essa biblioteca foi formada ao longo de 83 anos. O Dr. José começou sua coleção aos 13, quando comprou uma edição portuguesa de 1740 do Discurso sobre a História Universal, de Bossuet”, conta a curadora da Brasiliana Mindlin, Cristina Antunes. A pernambucana trabalhou com o bibliófilo por mais de 30 anos e hoje, acompanhada de uma pequena equipe, é responsável pelo acervo que se encontra na USP – as demais obras foram deixadas de herança para os filhos do advogado.


Hoje, o acervo de José Mindlin está reunido na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Foto: Divulgação

Em entrevista realizada numa das salas de acesso proibido ao público – onde alguns livros de arte e mapas antigos podem ser encontrados em móveis especiais de madeira, espalhados pelo ambiente –, Cristina afirma que Mindlin era movido pelo amor ao livro e pela leitura. A curadora narra um episódio que foi o recorte inicial da dinâmica vida bibliófila do paulista: “Quando ele era muito jovem, ganhou de presente de uma tia um livro de História do Brasil, do Frei Vicente Salvador. Essa obra possuía uma lista bibliográfica enorme de obras de brasiliana e ele acabou entrando em contato com livreiros do mundo inteiro por causa dessa bibliografia. Como Mindlin escrevia em francês e inglês, ninguém percebia que ele tinha 13 anos e respondia às cartas. Foi assim que iniciou um relacionamento com os livreiros europeus”, situa.

Na galeria, que possui uma climatização regulada de forma rigorosa, estão obras como a primeira edição de O Guarany (José de Alencar) e a edição brasileira, datada de 1810, de Marília de Dirceu(Tomás Antônio Gonzaga) – muito rara, de acordo com Cristina. Ambos os livros tiveram histórias curiosas até chegar, em definitivo, a Mindlin. “Só existem quatro exemplares de O Guarany no mundo. Um deles foi colocado em leilão na Europa e ele pediu para um amigo comprar. Porém, os lances estavam muito altos. Posteriormente, o livro foi colocado a leilão de novo e Mindlin, em pessoa, o arrematou. Na volta para o Brasil, ele perde o exemplar durante uma troca de aviões. Ao chegar em casa, diz: ‘Guita, eu comprei O Guarany’, ela responde, entusiasmada: ‘Que maravilha!’. Mindlin continua: ‘Mas já perdi’”, relata Cristina. Na época, uma das filhas do advogado conseguiu recuperar o livro através de um conhecido que trabalhava na companhia aérea.


Mário de Andrade possuía uma biblioteca pessoal com cerca de 17 mil títulos,
dos quais muitas publicações marginais. Foto: Reprodução

IRMANDADE
Já a edição brasileira de Marília de Dirceu era um objeto de desejo dividido entre o paulista e um de seus melhores amigos, o bibliófilo Rubens Borba de Moraes. Este sempre dizia que, caso Mindlin conseguisse o exemplar, não lhe contasse, pois isso seria motivo para um infarto. Numa ocasião, ao receber um colecionador mineiro em sua casa, ele foi questionado sobre a obra: “Não tenho e ninguém tem”. Ao passo que escutou de volta: “Eu tenho, mas o livro não está em bom estado. Caso Guita consiga restaurá-lo, é seu”.

A restauradora – Guita, a esposa de Midlin, dedicou-se à conservação de todos os volumes da biblioteca desde cedo – trabalhou seis meses no livro. De acordo com Cristina, até uma máquina foi construída para inserir fibra no papel, que estava comprometido, principalmente nas primeiras páginas, por pequenos furos feitos por bichos. Após todo o processo, Guita costurou o livro e montou uma caixa para ele, que permanece até hoje em ótimo estado.

Borba de Moraes foi o maior interlocutor de Mindlin ao longo de suas vidas entre livros. Ao falecer, o também paulista deixou em testamento sua biblioteca para o amigo. Destaque para a coleção da Impressão Régia, a primeira tipografia e editora brasileira, um tesouro no meio da coleção de Borba de Moraes. “Quando trouxemos esses volumes para a casa dos Mindlin, nós os dispomos do mesmo jeito que estavam nas estantes anteriores. Rubens gostava de deixar alguns livros com as capas voltadas para frente, como por exemplo, as belas encadernações imperiais”, explica Cristina.


O exemplar de 1810 de Marília de Dirceu, antes e depois do
restauro feito por Guita Mindlin. Foto: Reprodução

Outro paulista que possuiu uma, neste caso, “modesta” biblioteca pessoal foi o escritor Mário de Andrade. Com cerca de 17 mil títulos, as produções marginais eram predominantes em sua coleção. De acordo com pesquisa realizada pela professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), Telê Ancona Lopez, muitos manuscritos foram encontrados no arquivo e na biblioteca de Mário. Essa interação do escritor com as obras relembra os conceitos de dialogismo(Bakhtin) e de intertextualidade (Julia Kristeva), nos quais a linguagem é, também, derivação de outros. Não é à toa que ambos os termos estão relacionados, em certa instância, à noção de memória da biblioteca, expressão que engloba os diversos tipos de subversões e interferências além-texto que um autor pode fazer, a partir de outros, em sua obra.

Nessa conversa entre as múltiplas vozes da escritura, Ancona Lopez escreve: “Minhas cogitações a respeito das bibliotecas de escritores e a criação literária partem do conceito de matriz enquanto diálogo da criação, quando o artista se encontra com ele mesmo na obra de outros, ou como Mário de Andrade raciocina: ‘Muitas vezes um livro revela pra gente um lado nosso ainda desconhecido. Lado, tendência, processo de expressão, tudo. O livro não faz mais que apressar a apropriação do que é da gente’”. A perspectiva de um subjetivismo que surge na fala de Mário, associada ao propósito de conversa permanente entre o colecionador e seus livros, é onde repousa, talvez, o principal sentido da construção de uma biblioteca particular. 

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