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Casa Daros: Exposição com cubanos encerra atividades

'Cuba – Ficción y fantasía' traz ao Rio de Janeiro mais de 130 trabalhos de 17 artistas, produzidos entre 1975 e 2008, que compõem o acervo particular da instituição

TEXTO Luciana Veras

01 de Novembro de 2015

O  mar que cerca a ilha é um dos elementos da série 'Aguas baldías'

O mar que cerca a ilha é um dos elementos da série 'Aguas baldías'

Foto Manuel Piña

A ilha dos irmãos Fidel e Raúl Castro e da revolução de Che Guevara, a Havana da trilogia suja e literária de Pedro Juan Gutiérrez, o Malecón dos morangos e chocolates cinematográficos de Tomaz Gutíerrez Alea, o país que se fez morada do escritor Ernest Hemingway por mais de duas décadas… Qualquer que seja o enfoque, qualquer que seja o debate ou mesmo uma pequena reflexão propiciada pelo noticiário recente, há não apenas uma Cuba, mas várias delas. É sob essa perspectiva que se ancora Cuba – Ficción y fantasía, exposição que a Casa Daros elegeu para encerrar suas atividades no Brasil.

Trata-se de uma seleção de mais de 130 obras de 17 artistas cubanos, produzidas entre 1975 e 2008 e pertencentes à Coleção Daros Latinamerica – o maior acervo particular europeu de arte contemporânea da América Latina, criado em 2000 pela colecionista Ruth Schmidheiny em Zurique, na Suíça. Inaugurada em março de 2013, em um casarão do século 19, no Bairro de Botafogo, submetido a anos de reforma, a Casa Daros anunciou seu fechamento em maio deste ano – para muito espanto, cumpre dizer. O imóvel será vendido para o grupo Eleva Educação. A despedida da instituição dá-se em 13 de dezembro, data em que se encerra a temporada de Cuba – Ficción y fantasía e da instalação Nada absolutamente nada, da dupla suíço-brasileira Maurício Dias e Walter Riedweg.

De um lado, Dias e Riedweg, com um trabalho que resulta de oficinas realizadas com pacientes do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a partir da leitura de contos do suíço Robert Walser (1878–1956). Do outro, Juan Carlos Alom, Belkis Ayón (1967-1999), José Bedia, Tania Bruguera, os irmãos Ivan e Yoan Capote, Javier Castro, René Francisco, Los Carpinteros, Ana Mendieta (1948–1985), Marta Maria Pérez Bravo, Manuel Piña, Santiago Rodríguez Olazábal, Lázaro Saavedra e Tonel. Encarregados de entreter e intrigar os últimos visitantes da Casa Daros, os artistas formam um diagrama heterogêneo, assim como o conjunto das peças – fotografias, vídeos, desenhos, telas, instalações e objetos.


Siluetas traz no solos impressões dos contornos do corpo da artista Ana Mendieta. Foto: Zoe Tempest

Sobre o recorte cubano, pode-se dizer que não há cunho didático algum. “A seleção não é enciclopédica”, diz Hans-Michael Herzog, diretor artístico da Coleção Daros Latinamerica e curador da mostra, ao lado de Katrin Steffen. Não vigora, pois, a proposta de condensar as vertentes artísticas das três últimas décadas em Cuba, mas, sim, o intuito de reunir trabalhos que dialoguem entre si, ao pensar as contradições e as precariedades de uma sociedade peculiar. “São obras que olham para a situação de Cuba como uma ilha em que convergem futuro, ficção e utopia. A ideia de uma utopia – a utopia de Fidel, do socialismo – traz, dentro de si, um outro lado, que você nunca vai poder realizar. A impossibilidade está presente”, acrescenta Herzog.

E não poderia se ausentar ante as adversidades econômicas e políticas que atravessaram a ilha caribenha desde a década de 1950. Tome-se como exemplo El bloqueo (1989-1993), de Tonel, uma instalação de blocos de concreto dispostos no chão no formato do mapa da ilha. Herzog preferiu montá-la em uma ala inteira da Casa Daros que ainda não havia sido revelada ao público – também bloqueada, como Cuba fora desde 1982 pelos seus vizinhos norte-americanos. “É uma obra que fala do embargo econômico e político dos Estados Unidos, que seria a melhor razão para Fidel Castro explicar a falta de tudo”, comenta o curador.


Belkis Ayón compõe figuras sobrenaturais. Foto: Peter Schälchli/Divulgação

Antonio Eligio, o Tonel, participa com outras obras – “desenhos mais antigos, feitos entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980” – em que também investiga os vínculos entre as linguagens. “Minhas obras trazem relações entre a palavra escrita e a imagem. Gosto de pensar na dinâmica que a palavra assume diante da imagem e na reflexão que a imagem consegue trazer à palavra”, diz à Continente. Além de reflexões, há provocações políticas, ironia, considerações sobre a violência, manifestos feministas, sutis críticas sociais e reapropriações dos símbolos do imaginário religioso nas obras. “Liberdade, sonhos, histórias pessoais, problemas, cultura, esperança, o mundo das religiões afro-cubanas e questões relativas à insularidade se encontram nas obras”, acrescenta Hans-Michael Herzog.

O mar, signo preponderante, surge na fotografia sem título de Manuel Piña, da série Aguas baldías, (1992-1994), em que um garoto mergulha no oceano – mero deleite ou fuga do confinamento da ilha? Destierro (1998), de Tania Bruguera, oferece o registro audiovisual da performance e o assustador traje com que a artista percorreu ruas de Havana sob a égide de Nkisi-Nkonde, uma divindade africana a que se atribui o poder de julgar transações financeiras. Vodu ou tradição? As indagações se multiplicam. Lázaro Saavedra suspende facas do teto por fios de nylon e as contrapõe a pregos enfiados no assoalho de madeira. Existe escapatória de uma instalação sugestivamente intitulada El espectador y la obra (1998)?


Marta María utiliza o corpo como suporte. Foto: Zindman Fremont/Divulgação

CORPO e SANTERÍA
Em um cômodo próximo, vídeos e fotografias apresentam a performer Ana Mendieta, cujo legado, por anos, foi eclipsado pelas circunstâncias de sua morte, em setembro de 1985 – ela teria pulado da janela do 34º andar de um edifício em Manhattan ou sido jogada pelo marido, o escultor minimalista Carl Andre, que foi julgado e absolvido. A série Rape scene, de 1973, traz a artista nua sobre uma mesa, sua pele melada de sangue, suas nádegas expostas ao escrutínio do público – como, de regra, estão boa parte das vítimas do crime que ela reinventa. Suas Siluetas, impressões dos contornos do seu corpo no solo, atestam o que ela descrevia como earth-body.

O corpo feminino entra em evidência também nas imagens de Marta María Pérez Bravo, a única viva entre as três mulheres a integrar a exposição. São trabalhos construídos com delicadeza e coragem em uma transparente associação à santería, a religião cubana que em muito se assemelha ao candomblé brasileiro. No zozobra la barca de la vida (1995), na qual braços se transformam em remos, é entendida pelo curador cubano Juan Antonio Molina, no texto do catálogo, como uma representação de Yemayá, a versão caribenha de Iemanjá, a rainha do mar.


O artista Olazábal traz elementos da santería. Foto: Peter Schälchli/Divulgação

Para o poeta, escritor e crítico de arte cubano Orlando Hernández, são obras como essa que ratificam um dos principais feitos de Cuba – Ficción y fantasía: “Esse é um recorte importante de artistas que buscavam um caminho reflexivo. A exposição faz as obras circularem e leva o público brasileiro a perceber como Brasil e Cuba têm uma cultura muito mais próxima das tradições africanas do que se pode imaginar. A África que nos chegou, através de Portugal e da Espanha, está nas fotografias de Marta María, nas figuras obscuras de Belkis Ayón, e no Ifá e nos orishas de Santiago Rodríguez Olazábal, por exemplo, trabalhos de uma força alegórica importante”.

Os seres indecifráveis, sobrenaturais e cabalísticos, estampados nos quadros de Belkis Ayón e Santiago Rodríguez Olazábal parecem hipnotizar o espectador. Ayón mergulhou no universo da sociedade secreta Abakuá, fundada no século 19 em Cuba por imigrantes africanos trazidos ao Caribe como escravos. Seus quadros são desenhos divididos geometricamente em quadrados – ela coloria uma parte de cada vez, com nuances entre branco, preto e cinza –, em que as figuras, como em La familia (1991), parecem falar com os olhos, ora buracos vazios, ora expressivos aros negros.


Obra do artista Tonel fala de questões política. Foto: Mario Grisolli/Divulgação

Já Santiago Rodríguez Olazábal, um dos artistas convidados pela Casa Daros para vir ao Brasil, retoma o vínculo com a santería. “O fio condutor da minha obra é o tema da santería, que prefiro chamar de religião orisha, procedente da Nigéria. Meus trabalhos dialogam sobre a dualidade vida/morte, sobre a reencarnação e, essencialmente, sobre a presença do homem, sem distinção de gênero, no culto. La conversación fala do culto ao deus Ogum; La eficacia de la palavra, da importância do verbo, das conjurações na medicina tradicional popular”, explica à Continente.

Em setembro, quando Cuba – Ficción y fantasía foi aberta, muito se indagou sobre o impacto que a retomada de relações comercias com os Estados Unidos teria na arte cubana contemporânea. A maioria dos artistas preferiu não profetizar o futuro, tampouco demonizar o passado. Outros, como René Francisco, apreciavam a oportunidade de intercâmbio: “Me alegro muito de poder conectar meu trabalho com o contexto do Brasil e de conhecer a arte e a cultura brasileiras e a forma de pensar dos artistas nacionais. Fico contente de ter uma parte do meu trabalho nesse adeus à Casa Daros”.

Sobre o “adeus à Casa Daros”, o diretor da instituição no Brasil, o suíço Dominik Casanova, resumiu: “É uma reorientação estratégica dos donos da coleção”. Não houve entraves financeiros, não houve sanções da matriz à filial, não houve desmanche da Coleção Daros Latinamerica, garantia Casanova. A coleção, “uma joia em si”, nas palavras de Casanova, com cerca de 1,2 mil peças, seguirá a ser emprestada a museus. O Brasil, no entanto, perde uma instituição particular que parecia sólida em meio ao enfraquecimento de seus congêneres públicos. Desaparece mais um lugar expositivo. “Isso nunca é bom”, sintetizou o cubano Tonel. 

LUCIANA VERAS, repórter da revista Continente.

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