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Dublagem: Falado em português

Constatada em pesquisa inédita, preferência por filmes dublados se consolida no país e já é maioria entre os títulos exibidos em salas comerciais

TEXTO Marcelo Miranda

01 de Outubro de 2015

Foto Divulgação

Numa crônica publicada na edição 47 da revista Filme Cultura, em agosto de 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade lamentava a demolição ou abandono de vários cinemas de rua na cidade do Rio de Janeiro. Ao fim do texto, lançava a provocação: “O espectador deixou-se ficar em casa, vendo filmes dublados; que a princípio lhe doíam como dor no canino e hoje são deglutidos sem ninguém se dar conta da falsa voz de Ursula Andress”. Arriscando certa atualização na ideia de Drummond para 2015, o que se pode constatar é que o cinéfilo brasileiro não mais “deixou-se ficar em casa” para ver filmes dublados: ele os encontra nos multiplexes com facilidade e frequência nunca antes tão intensas. Se, no passado, era restrita a animações ou infantis em geral, a dublagem agora se espalhou por todos os gêneros e para todas as faixas etárias.

A presença maciça de filmes estrangeiros dublados em português nas salas comerciais de exibição no país e a opção da maior parte do público em assistir a eles têm sido constatadas semanalmente por qualquer frequentador assíduo de filmes, mas faltavam dados consistentes que relacionassem os dois movimentos. Em maio deste ano, a revista Filme B divulgou o resultado de uma pesquisa referente a 2014 que confirma a impressão. Dos 155 milhões de ingressos vendidos em salas de cinema no Brasil no ano passado, 59% foram para filmes dublados. O restante se dividiu entre 28% para filmes legendados e 13% para produções brasileiras. Um dado a ressaltar é que todos os 15 filmes mais vistos do ano foram ofertados em versões dubladas e legendadas, sendo Jogos vorazes – A esperança: Parte 1 o título de maior estreia (1.339 salas) e também o de maior oferta em versões dubladas (992).

O Recife teve 3,8 milhões de pessoas nos cinemas em 2014 e aparece em sétimo lugar no ranking do público de filmes dublados: 1,9 milhão de ingressos (50% do total). No dos legendados, a capital pernambucana também está em sétimo, porém com taxas menores: 1,2 milhão de ingressos (31,4%). As capitais com maior percentual para versões dubladas são Manaus (AM) e Cuiabá (MT), com índices acima dos 70%.

Os números não apenas confirmam a preferência dos frequentadores de cinema no país como apontam a sedimentação da oferta dos dublados no circuito, por maiores que sejam alguns focos de resistência de quem não aceita a predominância. A questão, porém, é muito mais prática e econômica do que às vezes aparenta: se existe demanda, continuará existindo oferta. A própria apresentação da pesquisa da Filme B aponta para alguns fatores: a ampliação do público nos últimos anos, com novos espectadores, principalmente das classes C e D; a tradição de filmes dublados na TV aberta, hoje recorrente também na TV paga; e a ascensão do 3D, formato mais difícil ao acompanhamento de legendas e mais propenso a oferecer filmes dublados, por estar, em sua maioria, dentro de um nicho comercial de superproduções.

“Em 2007, as distribuidoras começaram a fazer testes, dublando filmes que não eram necessariamente animações ou infantis. Foram feitos lançamentos de versões dubladas e legendadas em um mesmo cinema. Em várias praças, o saldo era surpreendente, com a dublada dando resultados muito superiores à legendada”, diz o jornalista e pesquisador Pedro Butcher, que vem apurando o mercado pelo portal Filme B há mais de 10 anos. Ele afirma que a digitalização dos equipamentos de projeção facilitou financeiramente a maior presença dos dublados. Se antes era necessário fabricar e transportar várias cópias em película 35 mm, encarecendo o processo, hoje basta ter dois arquivos digitais num mesmo HD para se definir como e em quais salas serão exibidas uma ou outra versão do mesmo filme.

Butcher também percebe que o aumento na oferta dos dublados teve relação direta com a criação de novos espaços de exibição. Atualmente, o parque exibidor brasileiro conta com 2.870 salas comerciais. A Ancine (Agência Nacional do Cinema) prevê que o número ultrapasse a marca de 3.000 até o fim do ano. “A consolidação dos resultados que fizemos no Filme Bconfirmou o que alguns profissionais de mercado vinham dizendo: a preferência pelo dublado veio principalmente das salas novas, construídas nas cidades do interior, periferias, ou até mesmo nas capitais onde havia poucas salas. Elas trouxeram também um público novo, acostumado a ver filmes e programas de TV em português”, aponta Butcher.

Para o jornalista e crítico de cinema Marcelo Hessel, a dublagem hoje “funciona um pouco como ferramenta de inclusão social”. Por outro lado, ele não acredita que o motivo da preferência pelos dublados se deva apenas à maior inserção das classes populares no circuito de cinemas. “Em muitas interações online com leitores, independentemente de classe ou poder aquisitivo, percebo uma incapacidade generalizada de interpretação de texto ou mesmo de paciência de se ler alguma coisa até o fim”. Pedro Butcher concorda: “Lembro que, antes mesmo dessa tendência do dublado nos cinemas, e ainda quando a TV paga era privilégio das classes A e B, o Telecine começou a exibir filmes dublados por conta da demanda dos assinantes”.

NEGÓCIO RENTÁVEL
Financeiramente, o filme dublado tem sido um bom negócio. A pesquisa do Filme B mostra que a renda dos dublados foi de 57% do total em 2014, contra 32% dos legendados e 11% dos brasileiros. Entre os exibidores, a rede Cinemark, com aproximadamente 570 salas no país, espalhadas em 77 complexos, foi a campeã no posicionamento dos dublados, totalizando 50,6% de seus espectadores para estes filmes, ante 36,8% nos legendados. “A constante melhoria dos processos de dublagem otimizou o interesse do público pelo formato”, diz Betina Boklis, diretora de marketing da Cinemark. “A rede analisa, junto da sua equipe, a demanda de cada complexo para determinar quais salas receberão a versão dublada, legendada ou ambas as versões. Avaliamos resultados de filmes similares e experimentamos.”

Até mesmo redes exibidoras de títulos menos comerciais, como é o caso da Espaço de Cinema, têm se rendido à presença do filme dublado. “Já coloquei num mesmo circuito versões dubladas e legendadas de um filme. Com um, tive público de uns 2.000 espectadores; com o outro, 300 pessoas”, compara o programador Adhemar Oliveira, um dos nomes mais conhecidos no setor. “É claro que varia de cidade para cidade e de cinema para cinema, em alguns prevalecendo o filme dublado e, em outros, o legendado. Mas é questão de aderência. O público brasileiro está aceitando a dublagem com naturalidade, e isso não pode ser olhado com preconceito.”


Países como a França naturalizam a dublagem de estrangeiros. Foto: Divulgação

Para Butcher, o grande problema do atual cenário surge a partir do momento em que o mercado pende para apenas um lado, eliminando (ou quase) os filmes legendados de suas cartelas de opções em prol da busca pelo ganho mais garantido do filme dublado. “Nas cidades do interior e nas periferias, principalmente, a oferta de legendados tende a ser mínima ou nenhuma, o que certamente é uma sacanagem com quem prefere ver filme na língua original”. Ele ainda vê como “uniformização perigosa” a padronização de determinados nichos de programação, pasteurizando o circuito a partir de desempenhos específicos e diminuindo a variedade de oferta. “Muitas vezes, ao não ofertar determinado filme ou determinada versão do filme, o exibidor está praticamente empurrando aquele que seria seu consumidor mais fiel, o amante de cinema, para a pirataria.”

O fantasma do filme pirata é, de fato, uma realidade dentro de um mercado que passa a ofertar apenas o tipo de produto que agrada à maioria, em detrimento da preferência de fatia significativa (ainda que menor) que não se vê contemplada. O resultado pode ser o afastamento de uma parcela do público de filmes comerciais nos cinemas e a transformação das salas alternativas em espécies de “templos” do filme legendado, já que, nesses espaços, o espectador habitual tende a ser mais fiel e cativo. “Pelo histórico do que acontece na Europa, onde a questão do protecionismo cultural é mais latente e a regra é dublar os filmes nas línguas locais, a tendência é que, ao ouvir seu idioma na tela, o público se habitue a isso”, analisa Marcelo Hessel. “Ao mesmo tempo, a oferta de filmes em outras mídias e a oportunidade de assistir a um filme legendado (clandestinamente ou oficialmente) em casa pode tornar a dublagem ainda mais hegemônica nos multiplexes.”

Adhemar Oliveira fez recentemente o experimento inverso, para avaliar como seu público se comporta: enquanto todas as grandes redes exibiam a animação Divertida mente em versões dubladas e em 3D, ele lançou, em pleno Espaço Unibanco da Rua Augusta, em São Paulo, uma cópia do filme legendada e em 2D. “Funcionou muito bem, porque é claro que existe a demanda”, afirma.

EUROPA E EUA
O cenário controverso do filme dublado no Brasil não encontra paralelos em países de cinematografias e circuitos mais desenvolvidos, como na Europa e nos EUA. No primeiro caso, países como França, Espanha e Itália têm a dublagem como base, sendo raridade encontrar produções estrangeiras no som original e com legendas – muitas vezes, eles estão apenas em salas alternativas, fora do circuitão. “É curioso como o mercado brasileiro cresceu e se tornou mais parecido com esses mercados chamados ‘maduros’, quer dizer, os países europeus, onde o cinema não tem mais muito como crescer e onde a dublagem é a regra pelo menos desde os anos 1960”, compara Pedro Butcher.

No caso dos EUA e da Inglaterra, a questão é diferente. Ambos os países possuem circuitos nos quais predominam os filmes falados em inglês, o que evidentemente afasta a legendagem e a dublagem. “Quando você não lê legendas, há melhor fruição das imagens e do ritmo do filme. O filme sem legenda seria sempre a melhor opção, mas, no Brasil, ninguém assiste só ao que é feito em sua própria língua, como nos EUA”, diz Adhemar Oliveira.

Historicamente, o filme estrangeiro dublado em português sempre gerou polêmica no Brasil. Em 1929, os primeiros longas-metragens sonoros começaram a ser lançados nas salas locais e, três anos depois, a legenda já tinha se tornado o padrão. “A dublagem em português também foi experimentada nesse período, mas vários motivos resultaram em seu abandono. Os custos mais altos do processo e a rejeição à substituição das vozes originais dos atores foram duas das principais razões”, escreve o pesquisador Rafael de Luna Freire, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), no artigo Dublar ou não dublar: A questão da obrigatoriedade de dublagem de filmes estrangeiros na televisão e no cinemas brasileiros, publicado na revista acadêmica Famecos no final de 2014. “As primeiras experiências de dublagem em português de cópias exibidas no Brasil foram realizadas no exterior, o que gerou críticas. Não havia então a possibilidade de realizar no país a dublagem das centenas de filmes estrangeiros importados anualmente.”

Na pesquisa, Rafael de Luna encontrou a inusitada história do senador Geraldo Lindgren, que propôs, em 1960, o Projeto de Lei nº 37/1960, cuja base era de que “os filmes editados no estrangeiro sejam gravados no Brasil, na língua portuguesa e, bem assim, determina que o fundo musical ou partes musicadas sejam também gravadas por orquestra brasileira”.

Demonstrando senso de imposição elitista e autoritária a um tipo específico de defesa nacionalista, o texto do senador registrava que, com a dublagem, “nossos patrícios de todos os rincões terão oportunidade de travar um íntimo contato com o vernáculo correto e quase sem variações prosódicas, ao mesmo tempo que será uma oportunidade para formar-se um vocabulário mais seleto para toda a população brasileira”. Em 1961, o projeto de Lindgren foi arquivado, após enfrentar forte oposição da sociedade civil e da imprensa.

Curiosamente, apenas um ano depois, em 1962, o governo editava o Decreto nº 544, que obrigava as emissoras a dublarem filmes e programas estrangeiros na TV brasileira. Conforme constata a pesquisa de Rafael de Luna, a medida não enfrentou nenhum tipo de oposição do mercado ou do público, consolidando a dublagem na televisão como algo naturalizado e propiciando a criação de diversas empresas especializadas neste tipo de serviço, como a Herbert Richers e a Álamo, entre dezenas de outras. “Enquanto o cinema já tinha alcançado estatuto definitivo de ‘sétima arte’, a televisão, como um meio ‘menor’, seria teoricamente voltada para um público menos exigente, para o qual a dublagem não causaria tanta repulsa estética”, diz Freire.

Em 1971, outro projeto de obrigatoriedade de dublagem dos filmes estrangeiros nos cinemas surgiu sob autoria do deputado federal Léo Simões, fincado mais em questões econômicas do que nacionalistas. Esta nova proposta também foi arquivada, em 1975. 

MARCELO MIRANDA, jornalista, crítico de cinema e mestrando em Comunicação na UFMG.

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