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Teatro forte em tempos de crise

Resistência à falta de recursos une grupos teatrais para realizar, com adequações estéticas e financeiras, a 22ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos

TEXTO Ulysses Gadêlha

01 de Janeiro de 2016

Matheus Nachtergaele apresenta o monólogo 'Processo do conscerto do desejo'

Matheus Nachtergaele apresenta o monólogo 'Processo do conscerto do desejo'

Foto Roberto Filho/Divulgação

A crise econômica que atinge o país não poupou a cena teatral brasileira. Em março de 2015, por exemplo, acometeu o Festival de Teatro de Curitiba, com redução de R$ 2 milhões no orçamento e outras manobras de contenção. Neste ano, com o Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE), não foi diferente. A 22ª edição do evento teve uma perda de 40% da verba em relação ao ano passado, obrigando os realizadores a excluirem a programação no interior. Mesmo nesse cenário dificultoso, o festival desenhou uma linha curatorial com espetáculos que tematizam política e emoção. A sua rede de parceiros viabilizou sua realização, reforçando esse caráter de resistência diante das crises.

Inicialmente, o Janeiro contou com cerca de R$ 220 mil para montar a programação. O festival angariou espetáculos para adultos e crianças, vindos tanto do próprio estado, quanto de outras regiões do Brasil, além de duas peças da Espanha, oriundas da Acción Cultural Española. No palco, haverá nomes de peso como o global Gabriel Braga Nunes, que traz a segunda montagem de Inutilezas, inspirada na obra do poeta Manoel de Barros (1916 – 2014). Tem também o aclamado Matheus Nachtergaele, num espetáculo de delicada beleza, o Processo de conscerto do desejo. No meio do caminho, o BNDES aportou recurso, garantindo uma grade de música para Recife, Olinda, Caruaru e Goiana, que preza por um repertório instrumental de figuras como a pianista Elyanna Caldas e o maestro Spok.


Magiluth em O ano em que sonhamos perigosamente. Foto: Renata Pires/Divulgação

Em geral, os espetáculos são compostos por poucos integrantes, quando não são monólogos. “Não podíamos deixar de falar de poder e política, de problemas sociais, sem também deixar de mostrar a emoção, provocar a sensibilidade das pessoas. Nós reunimos peças emocionantes, como Conscerto do desejo, Inutilezas e Elke Maravilha, com suas poesias e músicas. Temos também montagens como Ahia: una casa em Así, da Espanha, que trata de política e poder. Este ano, a gente não poderia fugir disso”, afirmou uma das produtoras do evento, Paula de Renor. Ao lado dela também trabalham Carla Valença e Paulo de Castro, todos pela Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe).

Nos momentos em que o evento se viu ameaçado, o sentimento de resistência fez com que os realizadores seguissem em frente, já que diversos grupos locais se prepararam durante meses para participar do festival. “A gente teve uma convergência de energias, pensamentos e vontades. Na hora em que precisamos dos artistas, tivemos opções boas para o Janeiro”, esclarece. “Nesta edição, a homenagem vai ser para atores, bailarinos e artistas de um modo geral, que conseguiram sobreviver a este ano. Quando não havia essa crise, pra nós ela já existia. O artista faz teatro de graça, com baixo percentual, mas nunca deixa de fazer”, declarou Paula.

O ator Matheus Nachtergaele subirá ao palco italiano do Teatro de Santa Isabel para abrir o Janeiro de Grandes Espetáculos, no dia 8. “Um ator, não por acaso, filho de uma poetisa, que lê textos dela” é o resumo da peça. A mãe de Matheus, a poeta Maria Cecília Nachtergaele, se suicidou quando ele tinha três meses de vida. O ator só teve contato com sua obra poética aos 16 anos, quando o pai decidiu que era o momento de amadurecer. Trinta anos depois, o filho vai ao encontro da mãe no palco, dizendo seus poemas para o público. Na ocasião, Matheus utilizará uma réplica do vestido que Maria Cecília teria usado no dia do batismo dele.


Ator Gabriel Braga Nunes (à dir.) está no elenco de Inutilezas.
Foto: Bianca Ramoneda/Divulgação

“Eu não sou místico, mas me sinto como se estivesse com mamãe. A peça é um fazer as pazes com a natureza. Um ritual profano, de purgação das dores, de jogar luz no que era triste. Tem sido muito emocionante”, afirma o ator, que estreou a peça em julho passado, em Minas Gerais. “Eu venho do Teatro da Vertigem, da geração dos anos 1990, em São Paulo. O grupo sempre trabalhou com depoimento pessoal e essa característica contribuiu muito para o meu trabalho no cinema. Eu realmente acredito que o ator não é um mero executor de uma partitura. É a ideia de arte em que uma dor muito profunda, uma subjetividade única revela, sim, o coletivo”, aponta.

Inutilezas foi montado pela primeira vez em 2002, inspirado na obra de Manoel de Barros; o roteiro é da jornalista e atriz Bianca Ramoneda, que está no elenco junto com Gabriel Braga Nunes. Ramoneda conheceu de perto o poeta a partir do Prêmio Nestlé de Literatura, em 1997, e, daí, para a correspondência epistolar. Ela se impressionou com a capacidade dele de “tornar protagonistas as coisas ditas sem importância”. “E a mais sem importância de todas elas era, sem dúvida, o próprio trabalho dos artistas em seus ofícios de capinar com enxada cega”, revelou, em depoimento ao blog Teatro de Revista. À época da estreia, o escritor se manifestou sobre a qualidade do texto: “Li seu roteiro, gostei muito e ele me deixou em paz”, disse à Bianca.

A peça Maria que virou Jonas ou A força da imaginação, da Cia. Livre, por sua vez, traz a assinatura da diretora paulista Cibele Forjaz, conhecida pela força cênica de seus trabalhos. Entre os pernambucanos, a programação contempla a peça O ano em que sonhamos perigosamente, do Grupo Magiluth, baseada na obra do filósofo esloveno Slavoj Zizek, tocando em temas como a metateatralidade e a relação com a dramaturgia mais clássica; Cabaré Diversiones, de Henrique Celibi, trazendo de volta o clima irreverente do espaço Vivencial Diversones, de Olinda; e Salmo 91, da Cênicas Companhia de Repertório, com direção de Antônio Rodrigues, releitura do livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella. Ao todo, serão 16 espetáculos locais. Já a Espanha traz as peças Ahia: una casa em Así – um retrato pop da década que se seguiu aos atentados de 11 de setembro de 2001 – e Please continue, Hamlet – julgamento de um jovem suspeito de matar o pai de sua noiva. 

ULYSSES GADÊLHA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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