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Ganjarts

Desregramento dos sentidos

TEXTO Marina Suassuna

01 de Abril de 2016

O desenho faz o artista se descolar da realidade e encontrar o terreno dos sonhos

O desenho faz o artista se descolar da realidade e encontrar o terreno dos sonhos

Imagem Ganjarts

Os gibis que o garoto Milton Leal Pessoa costumava ganhar semanalmente do tio foram o pontapé para criar uma afinidade com os desenhos. Durante a adolescência, a identificação com os quadrinhos da contracultura norte-americana dos anos 1960 foi determinante para a identidade visual que o futuro artista, hoje conhecido como Ganjarts, viria a adotar. Entre os seus gurus, estão o quadrinista Robert Crumb, de quem ele absorveu a “questão hermética, as introspecções e o medo de humanidade”.

A iconografia de Ganjarts – cuja maioria das obras se concentra na produção de desenhos e, em segundo lugar, de esculturas em resina e argila – é permeada por cenários e personagens que parecem ter vindo de um universo paralelo, como se o artista se desligasse da realidade em busca do sonho, do devaneio e do imprevisível. “A minha cabeça funciona como se fosse a do meu filho de seis anos. Eu tento imaginar o mundo da forma que ele imagina. Guardo resquícios da minha criancice também, que é essencial para quem trabalha com arte”, acredita o recifense.


Da experiência com enteógenos, surgem outras percepções imagéticas.
Imagem: Divulgação

Também incidem diretamente no seu trabalho imagens que costuma visualizar em sonhos, geralmente disformes, e na experiência com enteógenos (termo utilizado para substâncias psicoativas num contexto espiritual e ritualístico) que, segundo ele, lhe proporcionam outras percepções da realidade e novos estados de consciência. Para Ganjarts, dialogar com universos paralelos é uma necessidade de sobrevivência para quem mora nas grandes cidades. “Gosto de trazer pra arte essa realidade sonhadora, lúdica e psicodélica que a gente não está acostumado a ver, mas que são concretas. A gente deita, dorme, sonha e vai pra mundos diferentes todos os dias. Mas não trazemos isso pra nossa realidade, porque ela é muito crua e dura.”

Por isso há, nos seus trabalhos, traços e símbolos característicos da psicodelia, que, segundo ele, dialogam diretamente com a ideia de “desregramento dos sentidos” proposto pelo poeta Arthur Rimbaud. “É em cima desse desregramento que eu produzo minha arte. Todas as ideias e insights que passo pro papel, desconstruo, desmembro. Estou sempre distorcendo o que me vem à cabeça”, conta o artista.


Capa do disco Imorrível, de Di Melo, recebeu a arte do pernambucano. Imagem: Reprodução

Ganjarts também identifica, em seus trabalhos, pequenas doses de angústia. “É um reflexo do que a humanidade vem me passando.” Embora já tenha participado de mostras coletivas no Recife, ele não costuma se inserir em grandes eventos e circuitos expositivos. A circulação de sua arte, que é produzida diariamente, se dá através da internet, sobretudo na sua página no Facebook, através da qual costuma receber encomendas. “A arte é tão livre e tão orgiástica, que a gente não pode estar se prendendo ao rótulo que uma casa de arte propõe e direcionar seu trabalho para isto, para estar dentro de determinado nicho de artistas. Não deveria existir nicho”, acredita.

Recentemente, Ganjarts recebeu do cantor Di Melo a missão de elaborar a arte de seu segundo disco, o recém-lançado Imorrível. A afinidade com a música também lhe rende convites para produzir cartazes de shows e festivais. “A música permeia tudo que eu faço. Todos os dias, toda hora, todo momento”, declara o artista, que cresceu numa família de músicos, entre eles o tio Silvério Pessoa.


Traços feitos com nanquim aludem à estética psicodélica dos anos 1970.
Imagem: Divulgação

Embora se utilize do meio virtual como principal ferramenta de divulgação artística, Ganjarts não recorre a ferramentas digitais para sua criação. Todo o processo é manual, geralmente com nanquim, bico de pena, abrindo espaço para pinceladas de aquarela e qualquer material que lhe for conveniente. As superfícies também variam de acordo com a proposta, da madeira encontrada na rua à tela tradicional, passando por papel de pão, A4 e papel reciclado. Fascinado pelo universo da tatuagem, Ganjarts passou a explorar essa prática há pouco mais de um ano. “Algumas coisas eu já preparo anatomicamente. Vejo a pele como mais uma superfície de criação”, diz o artista. “Considerar que a pessoa escolheu um traço meu para carregar eternamente é estimulante.” 

MARINA SUASSUNA, jornalista com especialização em Estudos Cinematográficos.

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