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Cannes: uma edição histórica

Lançado há 70 anos para ser uma celebração do cinema que unisse todas as nações, festival mantém-se como o mais respeitado e influente evento cinematográfico

TEXTO Luiz Joaquim

01 de Maio de 2016

Pôster daquela que seria a primeira edição do festival, idealizado pelo jornalista Philippe Erlanger

Pôster daquela que seria a primeira edição do festival, idealizado pelo jornalista Philippe Erlanger

Imagem Reprodução

Num ensolarado dia de 1944, numa riviera ao sul da França, ocupada pela Alemanha nazista, o crítico de arte, jornalista, escritor e diplomata francês Philippe Erlanger (1903–1987) sentiu uma palpitação de alegria ao saber que, em junho daquele ano, cerca de 100 mil soldados da Aliança da Segunda Guerra Mundial haviam desembarcado na costa da Normandia. Com a ação, eles abririam uma nova frente de ataque contra o poderio militar de Adolf Hitler.

Além da excitação pela possibilidade de ser iniciado um armistício em seu país, e de sua difícil vida clandestina em Cannes – em função de sua origem judaica – ser finalmente relaxada, os olhos do parisiense Erlanger também ganharam um brilho particular, por um outro motivo.

Ele agora enxergava um horizonte no qual poderia pôr de pé um projeto pessoal que assumira seis anos atrás, quando então ocupava o cargo de diretor da Associação Francesa de Ação Artística (AFAA). A ideia era criar um festival internacional de cinema que respeitasse a democracia e unisse todas as nações.

Em 20 de setembro 1946, na mesma cidade que o acolheu na clandestinidade, Erlanger testemunhou a concretização de seu sonho inicialmente desenhado em 1938. Ele abriria a primeira edição daquele que viria a ser, pelas sete décadas seguintes, o mais influente festival de sua categoria.

Com a 69ª edição programada para acontecer entre os dias 11 e 22, neste mês de maio, o Festival Internacional de Cinema de Cannes, do início até hoje, deixou de ser realizado apenas em 1948 e 1950 – por falta de recursos. Foram anos em que a Europa ainda se restaurava da devastação deixada pelo conflito bélico.

Aquele contexto tornou a edição de 1946 ainda mais impressionante, uma vez que parte do próprio balneário na Côte d’Azur havia sido arrasado pelos alemães em agosto de 1944.

Em julho de 1945, quando Erlanger agregou novos integrantes e reuniu-se com a sua mesma equipe de 1938 (dissolvida pela Guerra) para retomar a realização do festival, o ambiente era muito inóspito. Os hotéis em Cannes ainda acolhiam soldados norte-americanos feridos da batalha, e muitos prédios da cidade haviam sido bombardeados, incluindo o cassino municipal – local então definido como o auditório para a celebração do evento.

Mesmo com um aporte doado pelo Ministério de Relações Estrangeiras da França para restaurar a cidade, o montante não era suficiente. Foi quando, a partir de uma convocação do município para arrecadar fundos, nasceu um mutirão local em torno da criação do evento. Envolveram-se construtoras, agências imobiliárias, mercearias, padarias e até motoristas de táxi.


Obra-prima de David Lean, Desencanto foi um dos filmes exibidos na estreia do Festival de Cannes. Foto: Reprodução

Resolvida a questão dos recursos, o 1ª Festival de Cannes recebeu uma delegação de 19 países convidados, com 45 longas e 68 curtas-metragens indicados, cada um, pelo próprio país de origem – a seleção competitiva só passou a ser escolhida pelo festival em 1972.

A festa de abertura aconteceu nos jardins do Grand Hotel, com uma explosão de fogos de artifício, um jantar e um baile. Na Croisette, pombos sendo soltos, enquanto a infantaria desfilava, e iniciava uma competição de flores e um concurso de beleza. Nas águas do litoral, um hidroavião pousava trazendo modelos parisienses. Julgando as beldades, o diretor Jean Cocteau, a cantora Edith Piaf e a atriz Michèle Morgan, entre outros.

Esta última, que receberia ali o prêmio de melhor atriz por A sinfonia pastoral, de Jean Delannoy, causou furor com seu maiô; enquanto Rita Hayworth chamava a atenção ao lançar a moda do biquíni de duas peças.

Cannes dava partida, assim, já no seu princípio, à sua vocação para atrair a mídia não apenas para a revelação de talentos cinematográficos do mundo inteiro, mas também para o espetáculo do glamour relacionado ao cinema.

Entretanto, nem tudo foram flores em seu debut. Com problemas próprios de um festival gigante montado sob forte pressão, a primeira edição cometeu gafes que seriam imperdoáveis nos dias de hoje. Nas festividades, um oficial americano quase caiu do primeiro andar, o prefeito da cidade teve seu chapéu roubado, enquanto no auditório era comum ver “penetras” entrando na sala, por trás das cortinas, durante a sessão. Muita confusão também surgiu porque o público simplesmente não respeitava os assentos reservados.

Nas projeções, a sessão do longa russo Veliky Perelom, de Fridrikh Ermler, foi exibida com rolos trocados. Já o seu conterrâneo, o curta Berlin, de Yuli Raizman, teve a sessão interrompida por falta de energia elétrica, o que quase criou um conflito diplomático, com a delegação soviética ameaçando desistir da competição, alegando boicote da organização.

A mesma ameaça foi feita pela delegação norte-americana, quando se deu conta de que Interlúdio, de Alfred Hitchcock, foi projetado faltando um dos rolos, tornando seu enredo incompreensível. Já o curta Jeux d’enfants, de Jean Painlevé, foi exibido com o enquadramento vazando da tela, o que fez o público urrar na plateia.

Mesmo sob esse cenário quase cômico, a edição de 1946 foi considerada um sucesso pela seleção que apresentou, revelando ao mundo novas obras de realizadores já importantes e/ou ascendentes como David Lean (Desencanto); Emilio Fernández (Maria Candelaria); Roberto Rosselini (Roma, cidade aberta); Billy Wilder (Farrapo humano); René Clément (A batalha dos trilhos); George Cukor (À meia luz); Charle Vidor (Gilda); Jean Cocteau (A Bela e a Fera).

PRESTÍGIO
Hoje, com 70 anos de história, construídos a partir daqueles episódios que a Costa Azul viu acontecer em 1946, o Festival de Cannes manteve o rigor tanto na capacidade de atrair as máximas estrelas do cinema – tais como Kirk Douglas, Sophia Loren, Grace Kelly, Brigitte Bardot, Cary Grant, Romy Schneider e Gina Lollobrigida, entre outras dezenas – como em compor sua seleção competitiva de filmes, fazendo dessas duas referências o elemento que o tornou reconhecido como o mais influente dos festivais.

“Posso ter visto filmes fracos em Cannes, mas nunca fui a uma edição ruim do festival”, diz o cineasta Kleber Mendonça Filho, que acompanha o evento desde 1999, quando fazia cobertura jornalística, tendo participado também como realizador em 2005, com seu curta Vinil verde na paralela mostra Quinzena dos Realizadores. Outro realizador pernambucano, Tião, não apenas participou da Quinzena por duas vezes, como foi premiado em ambas, por Muro (2008) e Sem coração (2014, codirigido com Nara Normande).


Comitêr formado por nomes como Jean-Luc Godard, François Truffaut e Roman Polanski decide não participar da edição de maio de 1968 em apoio aos protestos em Paris.
Foto: Divulgação

Sobre Cannes ser o mais influente dos festivais, Tião é enfático. “Isso é um fato, não uma opinião. Goste ou não do que se encontra lá, Cannes dita regras, principalmente no que diz respeito ao filme de autor. Há, inclusive, quem faça filmes pensando num perfil ajustado ao do festival francês, seja para a mostra oficial, ou outra, como a Quinzena”, explica.

A edição número um da Quinzena aconteceu em 1969, mas foi germinada pela Sociedade de Realizadores de Filmes no atribulado Maio de 1968. O objetivo era apresentar filmes sem o espírito competitivo da seleção tradicional, para dar um exemplo à indústria do cinema no mundo inteiro.

A ideia foi um desdobramento da ação de François Truffaut, Jean-Luc Godard e Claude Lelouch naquele mesmo ano, quando, no dia 13 de maio, eles interromperam a 21ª edição de Cannes invocando a categoria a aderir ao espírito das reivindicações dos estudantes e trabalhadores naquele momento em Paris, e a brigar pelo retorno de Henri-Langlois à direção da Cinemateca Francesa, que havia sido demitido pelo então ministro da Cultura, André Malraux.

Não demorou muito e Roman Polanski, Louis Malle e Monica Vitti, todos no júri, aderiram ao protesto. Dois dias depois, Milos Forman, Carlos Saura e Alain Resnais, com filmes na competição oficial, retiraram suas obras da disputa. O festival decidiu, então, encerrar suas atividades em 19 de maio, cinco dias antes do planejado.

MEMÓRIAS DE PRESENÇA
O jornalista paulista Thiago Stivalleti, que já residiu em Paris e vem cobrindo o festival desde 2008, destaca que talvez esse tenha sido o momento mais politizado de Cannes desde sua criação. “É algo que não seria repetido hoje. O mundo pode estar caindo aos pedaços, mas o evento não será interrompido”, acredita.

Kleber Mendonça gostaria de ter testemunhado as turbulências em 1968, mas também pensa como teria sido participar de entrevistas com gente como Billy Wilder, Hitchcock, Jean Renoir. “Ainda assim, tive lembranças pessoais ricas de entrevistas com Manoel de Oliveira, Godard, Gregory Peck, essa figura alada do cinema. Tive ainda o prazer de estar na sessão da cópia restaurada de O Leopardo (de Luchino Visconti), com Claudia Cardinali e Alain Delon sentados nas poltronas atrás da minha”, recorda.

Para Kleber, um marcante momento contemporâneo, de importância certamente histórica, se deu no ano 2000. “Havia lá uma espécie de garoto-propaganda de um projetor digital, muito superior a tudo que existia na época, e houve um debate tenso mediado por Roger Ebert (crítico norte-americano falecido em 2013). Spike Lee estava indignado na plateia, dizendo que os 24 quadros por segundo batendo na projeção provocavam um efeito no cérebro, e querendo saber se alguém já estudava o efeito do digital. Aconteceu que, sete anos depois, a indústria definiu o padrão digital 2K para projeção no cinema e isso tornou-se o modelo standard do mercado”, contextualiza.

“Um dos exemplos recentes de como qualquer coisa numa coletiva em Cannes resvala no resto do mundo”, diz Stivalleti, “aconteceu com Lars von Trier (em 2011 por ocasião do filme Melancolia). Eu já havia participado de mesas redondas com ele, que é muito inteligente, mas inseguro. É uma figura complexa, com um humor negro incrível. Mas ele estava nervoso na entrevista coletiva. Daí, soltou uma piada envolvendo o nazismo e, no dia seguinte, foi banido do festival. Cannes provou do próprio veneno. O festival precisou se posicionar para o mundo. Foi uma reação política, postura que perdeu a prática enquanto o Festival de Berlim a tomou para si muito bem”.

O jornalista destaca ainda que o prestígio de Cannes também passa pelos seus recursos. Está relacionado ao fato de a França ser o país que mais promove filmes de autor. “Seu Conselho Nacional de Cinema investe não só na produção local, mas em produções da América Latina, África e Ásia”, diz.

PESQUISAS E CRÍTICAS
“A cultura francesa do amor pelo cinema vem desenvolvendo pesquisas e críticas. Isso é também um impulsionador”, pontua Stivalleti. E Tião assina embaixo: “Depois de exibidos os nossos filmes por lá, recebíamos de todos, não apenas do público, mas também da própria produção do festival, muitos agradecimentos pela oportunidade de eles terem conhecido algo novo. A forma como os franceses historicamente sempre olharam para o cinema é particular. Construíram muito conhecimento crítico”.

De fato, outro momento de inflexão na história de Cannes remete a 1962, quando nasceu a independente mostra Semana da Crítica. Reivindicada pela Associação Francesa de Críticos de Cinema, a Semana passou a dar espaço às obras que não eram populares, nem para o mercado, nem para os festivais.

Em 1978, surgiu o troféu Câmera de Ouro, para o melhor diretor no comando de seu primeiro longa-metragem; e deu-se início à mostra Un Certain Regard, novo seguimento em Cannes, criado por seu então recém-empossado delegado-geral Gilles Jacob (depois presidente do festival, até 2014). O espaço seria dedicado a realizadores menos conhecidos.

Foi por ali que Cannes apresentou pela primeira vez talentos emergentes como o tailandês Apichatpong Weerasethakul, o romeno Cristi Puiu, o sulcoreano Hong Sang-soo e Kim Ki Duk, além do mexicano Michel Franco, entre outros que agora fazem parte de uma elite cujo clube, podemos dizer tranquilamente, seduz qualquer realizador deste mundo. 

LUIZ JOAQUIM, jornalista, mestre em Comunicação e coordenador do Cinema da Fundaj.

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