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Ao estilo Broadway

Gênero que une música popular, dança e drama se popularizou no Brasil, tanto em adaptações de textos estrangeiros como em produção nacional

TEXTO Clarissa Macau

01 de Julho de 2016

Austrália criou o musical King Kong, que já foi vendido para Londres e Estados Unidos

Austrália criou o musical King Kong, que já foi vendido para Londres e Estados Unidos

Foto gettyimages

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 187 | julho de 2016]

Os brasileiros são os maiores frequentadores estrangeiros dos shows da Broadway, atrás apenas dos ingleses, de acordo com pesquisas da organização oficial de marketing e turismo da cidade de Nova York, a NYC & Company. Entre 2005 e 2015, o público de brasileiros aumentou em mais de 80%. Renato Rufino é diretor internacional de vendas de espetáculos pelo site Broadway.com. Nascido no Brasil, o paulista mora há 25 anos nos Estados Unidos. Quando vem ao país, vê que os compatriotas já conhecem o seu produto de estilo anglo-americano inspirado em personagens da Disney e em best-sellers, que mistura música popular, dança e drama. 

“Faço feiras na Europa, Ásia e América do Sul. Antigamente, quando falávamos dos musicais americanos, tínhamos de explicar detalhadamente do que se tratava. Agora, quando vou a São Paulo, sabem o que estamos fazendo. Porque as produtoras locais apresentam há algum tempo suas versões baseadas nas peças da Broadway”, relata ele, que em 2013 preparou um coquetel para empresários no Teatro Renault de São Paulo, no qual foi apresentada a primeira versão brasileira da peça da Disney, O Rei Leão.

Renato Rufino também é funcionário da produtora Broadway Across America. Viaja ao redor do mundo prospectando quais musicais estrangeiros podem ser interessantes para o público norte-americano. “Na Austrália, foi criado o espetáculo King Kong, que foi vendido para a West End de Londres e com previsão de estreia para este ano na Broadway. Em Nova York, o espetáculo terá que ser mais sofisticado através de composições e roteiros adaptados. Para isso, cerca de U$200 milhões serão investidos. Tudo para agradar aos críticos da cidade, que podem tornar os espetáculos um sucesso, ou derrubá-los. Há dois anos, por exemplo, o show do Homem-Aranha precisava vender um milhão em dinheiro por dia, mas rendia metade disso. Foi obrigado a encerrar”, explica.

O dinheiro que custeia as apresentações dos EUA vem de fundações de caridade e multinacionais, que doam em troca da isenção de taxas públicas. Os empresários norte-americanos, com o desejo de expansão econômica, montaram empresas como a Disney Theatrical Productions, que criam catálogos de franquias de peças, figurinos, roteiro e licença para serem vendidos internacionalmente. Sobre o negócio, o dramaturgo inglês Dan Rebellato critica: “Shows como Cats e Mamma mia são produções engenhosas apresentadas no mundo inteiro, mas se inserem num objetivo de lucro. A peça O Rei Leão é uma ‘enorme’ propaganda para a venda dos seus suvenires”. De forma similar aos norte-americanos, o Brasil aderiu ao financiamento através do mecenato, pela Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, em 1991. Os montantes vertidos para megaproduções dos musicais brasileiros são altos. Segundo matéria publicada pelo jornal O Globo (“Concentração de verbas públicas para musicais divide a classe musical”, publicada em janeiro de 2013), por exemplo, “a empresa Aventura e Entretenimento levantou R$10,6 milhões às temporadas carioca e paulista de Rock in Rio, o musical”. 

Enquanto isso, cada edital público, como o Myrian Muniz, da Funarte, e os Fundos de Cultura oferecem cerca de R$ 300 mil por estado, valor que deve ser dividido entre uma dezena de companhias não comerciais. 

A professora da Unirio e pesquisadora de histórias globais de teatro, Maria Helena Werneck, aponta, em entrevista à Continente, os limites do mecenato brasileiro, “O Estado brasileiro nunca tomou para si a tarefa de produzir teatro. Esses teatros servem para conservar a tradição e incentivar artisticamente, como faz a França. O governo subsidia o teatro nacional da Commedie Française, encenando peças tradicionais ou contemporâneas”.

ARMA DE PROTESTO
Desde o Renascimento, o teatro é um negócio. No século XX, após a Segunda Guerra Mundial, reivindicações em favor dos direitos humanos e contra a barbárie se somaram às tendências socialistas de proteção da arte pelo Estado, difundidas pela União Soviética. Na conferência A arte secreta do teatro, proferida em 8 de dezembro de 2012, em São Paulo, o encenador italiano Eugênio Barba, criador do Teatro Antropológico, apontou a transformação dessa arte em algo para além do mercado. “Os jovens fizeram oposição aos governos tiranos. A total ruptura da hierarquia na universidade, a chegada do rock e do feminismo indicavam que muitos não queriam mais fazer teatro para ganhar dinheiro, mas para usá-lo como arma de protesto.”

Hoje, as ações artísticas são prejudicadas pela crise econômica mundial, que assola o Ocidente desde 2008. Ao realizar cortes nas despesas governamentais destinadas à arte, as nações tentam se equilibrar economicamente, ameaçando a existência de seus teatros nacionais e pequenos grupos engajados.

A Alemanha, nação conhecida por incentivar a cultura, hoje lida com o problema, assim como outros países europeus. Os alemães estão em meio a uma polêmica na qual se perguntam: “É responsabilidade do Estado alemão cuidar da cultura?”. Segundo o artigo Patronage and crisis: German theatre and cultural politics (2012), de Jonas L. Tinius, “Relatórios governamentais de 2010 convocaram museus, teatros e festivais (alemães) a ‘estruturar-se como empresas modernas’. Sem isso, cada parte da instituição cultural fechará até 2020. Os pesquisadores, ao compararem estatísticas da Alemanha, Suíça e Áustria, defendem que um patrocínio cultural desorganizado criou ‘muito do mesmo em todos os lugares’. A concepção da solicitação governamental é: ‘(…) pedimos mais espírito empresarial, mais envolvimento com as necessidades da audiência. E o conhecimento de que arte não vai mudar os problemas do mundo’”. Por mais suspeito que pareça, esse é o veredito da maioria dos governantes do mundo. 

VERSÃO BRASILEIRA
No final dos anos 1990, o Brasil estava pronto para tornar realidade o sonho de artistas e empresários em construir uma espécie de Broadway brasileira. Para o crítico musical Ubiratan Brasil, o formato das peças americanas se insere facilmente em nosso público, como é o caso de Hair spray ou A gaiola das loucas, dirigidas por Miguel Fallabella. “Desde pequenos, somos habituados a viver com a cultura americana, desenhos da Disney, filmes dramáticos e de aventura. Parte de nosso imaginário é construído a partir de conceitos americanos. Assistir a um musical típico da Broadway não nos é estranho”, constata.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, há uma notável fidelização de audiência aos musicais. A produtora Aventura Entretenimento é uma marca importante na indústria músico-teatral brasileira. “Começamos fazendo musicais internacionais, como o Mágico de Oz. Absorvi a técnica, o jeito, modos de escrever. Até que o público e o elenco amadureceram”, afirma Aniela Jordan, uma das donas da empresa, criada em 2008 e que hoje investe em biografias brasileiras, tendo em seu portfólio sucessos de audiência como Elis – A musical, que versa sobre a vida da cantora Elis Regina, e Chacrinha, sobre o rei dos auditórios. As peças dialogam com as estéticas televisiva e cinematográfica. 

“A tendência é fugir de padrões. Trazemos parcerias de fora do musical. Quando convidei o (diretor de novelas) Dennis Carvalho para fazer Elis, ele, que nunca tinha dirigido uma peça, apavorou-se. Mas olha o resultado: 250 mil espectadores e um Prêmio Shell de melhor atriz para Laila Garin, uma das atrizes que interpretam Elis. A ideia é trazer um olhar de outro segmento para quebrar a influência de musical americano”, conta a empreendedora.

O ator Léo Bahia, 24 anos, encenou peças elogiadas como a montagem universitária de The book of mórmon, e interagiu com 420 profissionais na megaprodução Chacrinha, interpretando também Lúcia, na versão de João Falcão para a Ópera do malandro. “No musical, apesar de ser um processo compacto, existe pesquisa. O ator tem um lucro maior, por conta do grande interesse do público e patrocínio”, diz Bahia. 

Há quem qualifique de engessado o gênero musical. O coordenador do Prêmio Bibi Ferreira, que é específico para musicais paulistas, Marllos Silva, diz que o musical é diferenciado no país. “Há apenas uma produtora no Brasil, a T4F, que produz musicais no formato de franquia baseado na Broadway. As outras adquirem os direitos do texto e das músicas, mas suas encenações são originais. Há liberdade de criação, com menor espaço para improvisos e erros.”

A versão nacional do musical alemão Cabaré – lançado primeiramente nos palcos de Nova York, em 1966, e depois na versão cinematográfica, protagonizada por Liza Minnelli – é um exemplo. A peça brasileira é considerada mais densa que a original da Broadway. Crítico teatral, Miguel Arcanjo Prado diz que o musical é capaz de oferecer mensagens profundas para um público amplo. “A versão com Claudia Raia ressaltou o horror ao nazismo e o lugar da mulher artista. Já o musical Priscilla, a rainha do deserto falou de respeito ao homossexual.”

Contrariando a ideia dos musicais caros, com ingressos que variam entre R$ 20 e R$ 300, o ator Cleto Baccic juntou-se à produtora Atelier de Cultura para disponibilizar gratuitamente ao público de São Paulo musicais de alto padrão de qualidade. A madrinha embriagada e O homem de La Mancha, ambos dirigidos por Miguel Falabella foram apresentados no Teatro Sesi da Avenida Paulista. “O público é o mais variado possível e pode vivenciar um espetáculo antes restrito às classes abastadas. Pessoas são atraídas pelo gênero e começam a procurar no teatro musical uma vertente da cultura”, diz Cleto.

Misturando as linguagens do musical com o protesto, e seguindo exemplo das peças da década de 1960, Rei da vela e Roda-viva, dirigidas por Zé Celso Martinez, o carioca Felipe Vidal e seu grupo de pesquisa Complexo Duplo montou o espetáculo Contra o vento – Um musicaos. “A temática nostálgica fala sobre o Solar da Fossa, uma pensão pela qual vários artistas tropicalistas, como Gilberto Gil e Gal Costa passaram. Trocando nomes de personagens e inserindo composições originais, conseguimos atingir perfil mais ‘dionisíaco’, longe do teatro disciplinado euroamericano e retornando às raízes de um protesto político alegre e brasileiro”, diferencia.

O antropólogo Bernardo Fonseca Machado está escrevendo o estudo Empreededorismo na “Broadway brasileira” (leia artigo dele ao lado). Fonseca observa que é nesse gênero que muitos brasileiros têm seu primeiro contato com o teatro: “O musical atrai mais facilmente. Além do apoio da grande mídia, tem convenções próximas das ensinadas no cinema e na novela. Enquanto uma pesquisa experimental tem um público muito mais demorado de se fazer, o teatro linear chama a família”.

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