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“Nunca se teve tanta repulsa e vontade de conhecer o outro”

TEXTO Clarissa Macau

01 de Julho de 2016

O professor, ensaísta e crítico Jacó Guinsburg

O professor, ensaísta e crítico Jacó Guinsburg

Foto editora perspectiva/divulgação

[entrevista vinculada ao especial da ed. 187| julho de 2016]

“Críticos vivem falando que o teatro está em crise e continuam escrevendo sobre ele. Seu poder de comunicação diminuiu, mas a arte está em plena atividade”, ressalta o pensador da Moldávia, radicado ainda criança no Brasil, Jacó Guinsburg. Com 95 anos e voz firme, ele acredita que o teatro, a cada dia, toma mais consciência do que é o ser humano. Há cerca 50 anos, o professor, ensaísta e crítico cuida de uma das mais importantes editoras de livros do Brasil, a Perspectiva, que tem mais de 200 títulos de autores nacionais e internacionais, entre os quais vários que colaboram na ampliação do conhecimento sobre as artes cênicas. Entre obras de sua autoria estão o Dicionário do teatro brasileiro e Aventuras de uma língua errante, na qual discorre sobre a circulação de teatro ídiche e judeu pelo mundo. Nesta entrevista, Guinsburg comenta sobre a circulação mundial do teatro, com suas impressões sobre as mudanças dessa arte no último século, a influência judaica no teatro internacional e o desejo do artista em conhecer culturas estrangeiras.

CONTINENTE Como o senhor, em quase 100 anos de vivência, observa os processos de mudança do teatro?
JACÓ GUINSBURG A mudança decorre da tomada de consciência do teatro e de suas próprias possibilidades diante do seu local de origem. As conceituações vieram limitadas por determinadas culturas. À medida que essas foram tomando consciência de si, por análise da ordem sociológica, antropológica e estética, a sua ampliação tornou-se natural, de modo que os conceitos que serviam de base para o teatro convencional passaram a sofrer uma transformação. Às vezes, quando se falava em dramaturgia, só se pensava no texto. Hoje, já se verificou que a dramaturgia não nasce só do desejo de quem escreve a peça. Mas de colocações que existem na cultura humana. O teatro é um produto da vivência humana e, assim, o que é dramaturgia tem uma abrangência muito maior do que aquela que estava limitada por determinados conceitos socialmente aceitos.

CONTINENTE O teatro ídiche e judeu foi uma grande influência para a Broadway. Como os judeus se inseriram no teatro norte-americano? 
JACÓ GUINSBURG Os judeus influenciaram como tantos outros. Por exemplo: a ópera italiana teve muita influência na ópera americana. Você encontra muitos nomes de atores e de diretores ítalos. É a mesma coisa, acontece que o Novo Mundo estava em pleno desenvolvimento e havia uma grande recepção de ideias. Já o teatro judeu começou a se desenvolver na Europa oriental, principalmente no império saarista, depois foi proibido na língua de origem ídiche por milênios. Assim, muitos atores imigraram para os EUA e tiveram um enorme impacto no teatro americano. A partir desse interesse contínuo pelo teatro das gerações vindas dos imigrantes que saíram do Leste Europeu para lá, no século XIX, até hoje se pode ligar os judeus à Broadway, Hollywood ou ao Actors Studio. Alguns atores judeus tiveram teatros próprios que eram frequentados também por imigrantes e famílias teatrais. Como a constituída por Stella Adler, filha de um dos maiores atores da língua ídiche, Jacob Adler, que era um judeu russo. Além disso, o teatro judeu havia começado com uma proposta estética mais definida por buscas políticas e sociais, que influenciaram os esquerdistas. Outros levaram aos EUA ensinamentos de Stanislavski e Meyerhold. A grande concentração judaica se integrou ao próprio movimento de cultura nova-iorquina, um dos focos mais importantes da cultura americana moderna. 

CONTINENTE Existe um teatro autenticamente brasileiro? 
JACÓ GUINSBURG As culturas são produtos nos quais os cruzamentos de ideias são fundamentais. A mistura do branco, índio e negro resultou numa cultura que se colocou para o outro. De modo que, quando um brasileiro interpreta Shakespeare, é teatro brasileiro. Mas, se ele vai interpretar uma peça, candomblé, ou ritual indígena, dizer que isso está no gene já é contestável. As individualidades culturais são causas de processos, não causas determinantes. As características cruzam com numerosas outras. Ninguém vive sem sua cultura, mas isso é transformado através da sua maneira de ver as coisas.

CONTINENTE Qual o motivo do teatro eurocêntrico ainda ser o mais conhecido no mundo?
JACÓ GUINSBURG A partir do Renascimento, o mundo europeu cresceu em termos de desenvolvimento técnico e político, que o colocou como dominante no mundo. O seu poder de invenção se universalizou de tal modo, que ele englobou muita coisa de outras culturas. Isso não quer dizer que o teatro oriental não tivesse tido repercussão no seu contexto. Se fosse feito um levantamento de espectadores nos seus continentes, talvez fosse até maior que o teatro ocidental. No processo de imposição, o Ocidente foi aceitando as heranças teatrais dos outros povos como dados na sua própria formulação de teatro. Pensadores como Eugênio Barba e Jerzy Grotowski, vencidas as restrições de época e mentalidade, acabaram introjetando todos os elementos possíveis. Houve o predomínio europeu que começa a se dissolver a partir do século XX em função da globalização dessa cultura. A linguagem inicial da tecnologia, que hoje é universal, foi a ocidental. Mas muita coisa que o Ocidente desenvolveu, na verdade, não nasceu no Ocidente. Vide a pólvora, a bússola, de certa forma parte do teatro também.

CONTINENTE Existem dramaturgos que tiveram contato direto com outras culturas. Como Eugênio Barba, que ambicionava abraçar tradições cênicas de outros continentes. De onde parte esse desejo pela busca do outro e sua cultura, e como isso transforma o pensamento artístico? 
JACÓ GUINSBURG O “outro” é inerente ao ser humano. O problema da cultura é o infinito que sempre está abrindo as fronteiras para o desconhecido. Temos as vanguardas apocalípticas que querem acabar com tudo, refazer, e com o tempo se tornam integradas com as ideologias do seu tempo, mesmo querendo destruir tudo no início. Todas as formas políticas, filosóficas surgem da inovação por vezes negando o que estava ao seu lado. Os horizontes se modificaram. Não se pensa a Austrália como há 100 anos. Quando eu era adolescente, era distante, hoje é ali. Porém, essa consciência não quer dizer que estamos integrados. A própria globalização gera o movimento contrário. Então, você nunca teve tantas reivindicações localistas como hoje, a globalização trouxe a consciência e o meio de comunicar a consciência. O outro se tornou maior que essa relação. Isso tudo gerou uma consciência de diversas culturas e, ao mesmo tempo, diria, uma distinção maior do outro. Veja, o catalão quer ser só catalão, não quer mais ser espanhol. Essas coisas já existiam. Era de ordem tribal, depois passou à ordem regional e à ordem nacional. Foram ordens que se sobrepuseram, mas não se eliminaram. Essas noções de parentesco ainda existem. Essa consciência do próximo gera tanto as barbaridades quanto os movimentos de simpatia e de compreensão. Nunca se teve tanta repulsa e vontade de se conhecer o outro. 

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