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“O direito dos moradores se tornou irrelevante”

Professora e urbanista paulistana discorre sobre as consequências da transformação urbana no Brasil das últimas décadas, foco de seu livro Guerra dos lugares – A colonização da terra e da m

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2016

A professora e urbanista paulistana Raquel Rolnik

A professora e urbanista paulistana Raquel Rolnik

Foto Martin Hunter/the guardian/divulgação

[conteúdo da ed. 187 | julho de 2016]

De 2008 a 2014, a urbanista paulistana Raquel Rolnik foi relatora especial para o Direito em Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Era um posto para o qual sua trajetória profissional a conduzira com naturalidade. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, diretora de Planejamento da cidade de São Paulo entre 1989 e 1992 e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades entre 2003 e 2007, Rolnik permanece uma das vozes mais lúcidas no debate sobre a urbe, suas contradições e suas perspectivas no Brasil.

Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia na era das finanças, publicado pela Boitempo, é, ao mesmo tempo, um resgate das experiências acumuladas durante a relatoria e um “encontro de duas trajetórias”. “Consegui registrar o que vi e elaborar a partir de tudo que conheci ao olhar a questão da moradia no contexto urbano pelo mundo. Ao mesmo tempo, busquei refletir sobre minha cidade e sobre as questões urbanas em todo o Brasil. Passei anos lutando e acreditando em uma cidade para todos, participando de gestões democráticas populares”, diz a autora em entrevista por telefone, numa manhã de sábado – único instante disponível numa agenda repleta de aulas, pesquisas, viagens e reflexões. 

Raquel Rolnik se assume “absolutamente estupefata com as transformações que aconteceram na política urbana” e que tal constatação a impeliu a escrever o livro: “O rumo que isso tomou nos últimos 10 anos me fez ver que era muito importante ajudar a entender o que estava se passando aqui e, ao mesmo tempo, no resto do mundo. Falo de um processo absolutamente comum em ambos os casos, porém repleto de singularidades e especificidades”. E o que aproxima, portanto, Brasil, Cazaquistão, Reino Unido, Estados Unidos e África do Sul, alguns dos países retratados em Guerra dos lugares? A existência de milhares de “sem-lugar” e “a submissão da política urbana ao sistema imobiliário financeiro”, na visão da urbanista. Foi também sobre essas consequências em todo planeta, portanto, que ela conversou com a Continente.

CONTINENTE Guerra dos lugares fala sobre moradia em um mundo governado por um capitalismo feroz. No caso do Brasil, o que sobressai hoje? Como avalia as políticas criadas para mitigar o déficit habitacional?
RAQUEL ROLNIK Temos que entender, antes de mais nada, a própria história da política habitacional. Historicamente, o foco estava na produção de conjuntos habitacionais na periferia, desde a experiência do Banco Nacional da Habitação, o BNH. Ali havia uma política e um financiamento em larga escala, até metade da década de 1980, quando o BNH foi extinto. Desde aquela época, tomava-se, a partir da ideia de casa própria e individual, a produção de conjuntos habitacionais como modelo e única alternativa possível. Acontece que o programa Minha Casa Minha Vida é muito mais uma política econômica, com seus grandes pactos políticos, do que propriamente habitacional. É uma máquina de produção de casas, com subsídio do governo, para que as pessoas possam, finalmente, comprar o seu apartamento. Mas é um programa inspirado num modelo testado pela primeira vez no Chile de Pinochet, nos anos 1970, e ainda em vigor, sendo reproduzido, de forma semelhante, no México e em outros países emergentes no mundo. E é um programa que tem muito a ver com a ideia de um paradigma neoliberal. Dentro dessa lógica, o importante é o mercado produzir. Qualquer coisa que for produzida pelo mercado, vai ser consumida pelos mais pobres – desde que tenham acesso ao crédito, que vai ser garantido pelo Estado, através de subsídios muito altos.

CONTINENTE Em 2015, a Continente trouxe o debate sobre o papel da arquitetura e do urbanismo na concepção das cidades contemporâneas. Uma das fontes ouvidas foi Guilherme Wisnik, que fez ressalvas ao Minha Casa Minha Vida, justamente por esses conjuntos habitacionais se localizarem em periferias, afastados da infraestrutura e do resto da cidade.
RAQUEL ROLNIK A forma como o modelo é estruturado pressupõe, justamente, terrenos mal-localizados. Existe o preço máximo que o Estado paga por moradia e é ele que paga para as pessoas comprarem esse produto, que atingem um valor máximo de venda. A única forma que as construtoras têm de ter lucro é pagando muito barato pela terra. Acontece que, no nosso modelo de cidade segregada, com urbanização incompleta, terra barata é onde não tem cidade. É fora da cidade. Estruturalmente, o modelo pressupõe uma moradia extremamente mal- localizada, dentro da tradição que vem lá da experiência chilena. Para reduzir o custo da moradia de baixa renda para quem ainda não têm casa, é preciso limpar a área que hoje é ocupada por assentamentos informais de baixa renda, assentamentos autoconstruídos, por favelas e ocupações. Há grandes interesses no mercado imobiliário por usos mais rentáveis para esses lugares. Como lugar para pobre viver não é rentável, eles limpam a área. E essa limpeza tem uma ligação forte com a produção em massa de conjuntos habitacionais na periferia.

CONTINENTE O modo como as cidades vão se configurando, com extremos cada vez mais apartados, não termina construindo uma narrativa sobre os tempos atuais?
RAQUEL ROLNIK As pessoas tendem a achar que o problema da moradia é a favela e que a favela gera exclusão e violência. Aí raciocinam: vou tirar essas pessoas daqui, desmanchar esse lugar e com isso acabar o problema. Contudo, o que se percebeu na experiência chilena é que a questão é muito mais complexa. Esse modelo que está aí, que veio do Chile, continua reproduzindo a exclusão. Agora, claro que teve importância muito grande no Brasil o governo reconhecer a necessidade de investimentos do orçamento público em moradia. Foi um enorme avanço, fruto de anos de debates. É importante dizer que ter uma casa, mesmo que seja um apartamento com infraestrutura minimamente construída, é melhor do que a situação anterior. Mas moradia não é só a casa; é também o conjunto de elementos no entorno. É preciso reconhecer os avanços dessa política e, ao mesmo tempo, evidenciar seus limites, que têm a ver com a montagem e a lógica do programa.

CONTINENTE E assim as metrópoles vão expulsando os pobres do centro.
RAQUEL ROLNIK Sim, e isso tudo tem a ver com abertura de frentes de expansão para um capital imobiliário e financeirizado que, nas últimas décadas, tem ampliado sua presença e sua força política nas cidades do mundo. O Recife é exemplo muito claro disso. A remoção em massa das terras ocorre nos territórios onde depois aporta esse complexo imobiliário financeiro. Depois de 30 anos da implementação dessa política, em Santiago, por exemplo, não existem mais favelas. A totalidade da moradia popular está nas periferias metropolitanas e em condições absolutamente criticáveis do ponto de vista urbanístico e social. São guetos de pobres.

CONTINENTE Essa constituição não ajudaria a consolidar uma “arquitetura do medo”? No Recife, por exemplo, vemos cada vez mais edifícios altos com muros enormes, ruas escuras pelas quais as pessoas não circulam e os espaços públicos esvaziados. 
RAQUEL ROLNIK Uma das melhores definições que já ouvi do Recife veio do geógrafo Jan Bitoun, que trabalha na UFPE. Embora a cidade tenha desigualdade nas condições de moradia, uma de suas características é uma configuração de proximidade física entre os assentamentos e bairros mais nobres. É muito diferente de cidades como Brasília, ou mesmo São Paulo, em que essa dicotomia centro/periferia é mais clara. O Recife sempre foi diferente. Há uma quantidade enorme de assentamentos populares tradicionais, extremamente bem- localizados, misturados no tecido urbano. A estratégia é fazer cirurgia seletiva, tirando daqui para poder disponibilizar essa terra, outrora ocupada pelos territórios populares, para a frente de expansão do mercado imobiliário financeirizado. Isso se observa globalmente. E qual é a grande questão recente da política urbana do Recife? No debate sobre o projeto do Cais José Estelita, percebemos que a cidade se submeteu a essa lógica. O melhor uso para aquele lugar nunca seria o mais rentável do ponto de vista dos investimentos financeiros. A pergunta fundamental para definir o destino de um lugar é: do que uma cidade mais precisa? O que deseja quem mais necessita de apoio para existir nesse espaço? Nos anos 1980, nas regiões metropolitanas, o centro da política urbana passava por uma ideia de inversão de prioridades; era absolutamente necessário reconhecer os direitos dos moradores, da vida deles no entorno da cidade. Esses lugares eram prioridade absoluta. O pensamento foi invertido na década de 2000, quando o direito dos moradores se tornou irrelevante. Embora se saiba da hegemonia do mercado imobiliário, esse não é fenômeno novo. O que é novo nele é a força dessa financeirização do imobiliário, que hoje detém muito mais poder sobre as cidades, e a submissão total da política urbana.

CONTINENTE Sobre o Estelita: há quem defenda o projeto do Novo Recife por acreditar que aquela área estaria condenada ao abandono. No entanto, a repercussão do Ocupe Estelita possibilitou um debate maior sobre o uso dos espaços públicos, não apenas em Pernambuco, mas no país inteiro. 
RAQUEL ROLNIK O Ocupe Estelita nos fez pensar na questão da cidade como um todo, pois se tratava de uma terra pública, e do uso dessa terra pública em uma enorme oportunidade que o Estado teve para pensar em fins de interesse público e de operações não mercantis. Em uma terra privada, vale a política liberal, internacionalmente mercantilizada e financeirizada. O que vem acontecendo é que essa lógica tem sido aplicada para a terra pública. Há uma medida provisória em curso no Congresso Nacional, a MP 700/2015, que permite a desapropriação de terra e sua subsequente incorporação através de PPPs (parcerias público-privadas), concessões e planos urbanísticos. É um perigo. Numa escala maior, o projeto do Estelita tem a ver com isso – com a ideia de usar a terra pública como um ativo financeiro. Há a noção de não entender o público como comum, como uma propriedade coletiva dos cidadãos, e, sim, de compreender a terra pública como um ativo financeiro para gerar rentabilidade e recursos para o empreendedor privado. Tudo passa a se resumir à renda e grana. A primeira questão envolvida no Estelita é: para que servem as terras públicas? O segundo elemento importante é a crença na eficiência da revitalização, na reabilitação de terras abandonadas, e também a ideia de adensamento defendida no projeto. Há uma falácia enorme em torno da palavra “adensamento”.

CONTINENTE Por quê?
RAQUEL ROLNIK A primeira coisa é que se confunde adensamento construído com adensamento demográfico. Os lugares mais densos nas nossas cidades não têm um prédio; são as favelas, as ocupações. Densidade quer dizer muita gente em pouco espaço. O modelo de construções de edifícios, como a nossa história opera, nos mostra que há muita área construída para pouca gente. Apartamentos grandes, escritórios grandes, e pouca gente dentro. Historicamente, no Brasil, defendia-se a ideia de que construir prédios gerava, por si só, adensamento. Mas não gera. Há uma pegadinha aí. As pessoas dizem “a cidade precisa ser densa, vamos trazer as pessoas para morar no centro”. Certo, é maravilhoso, mas aí se propõe uma verticalidade através de construções que não vão adensar, e, sim, gerar renda. No caso específico dessa região, cujos armazéns estavam abandonados, há vários assentamentos populares, com gente morando em um cotidiano bem vivo. Como propor uma revitalização com a remoção dessas pessoas? É esquisito. A região dos armazéns estava largada, é verdade, mas a cidade precisa e merece um uso público desse lugar. Volto a dizer que a pergunta fundamental é: qual a melhor forma de ocupar esse lugar hoje para que atenda à função social da cidade e da propriedade? Me parece que, no caso do Recife, com suas demandas gigantes e várias outras descumpridas pelos governantes, torres corporativas e seus jogos de poder não seriam a melhor resposta. Há uma discussão, sim, de qual é o melhor projeto, mas se trata, sobretudo, de uma discussão sobre quem decide o futuro da cidade. Ao estar no centro do debate, o Movimento Ocupe Estelita denuncia que, independentemente das ilegalidades e legalidades do processo, já é um marco do planejamento urbano que aquilo possa ter acontecido dentro de um plano diretor. Há algo errado na regulação urbanista e, nesse caso e em muitos outros, é a sua submissão total e absoluta frente ao sistema imobiliário.

CONTINENTE Em um dos capítulos de Guerra dos lugares, você fala de unlock land values, da insegurança da posse no contexto dos grandes eventos e de como isso gerou ainda mais cidadãos “sem-lugar”. Como percebe isso neste ano de Olimpíadas no Rio de Janeiro? O Brasil sentiu isso na época da Copa?
RAQUEL ROLNIK Tanto num caso como no outro, observando os modelos que a gente viu pelo Brasil com a organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, a tentativa do que se quis implantar na Cidade da Copa, ou o que está sendo realizado na Vila Olímpica, no caso do Rio de Janeiro, o que se vê é um pretexto através do qual são erguidos os projetos complexos do sistema imobiliário financeiro. Nesses casos, com mais facilidade, pois, para se obter um suposto consenso em torno de tais projetos, ocorreram violação de direitos e o não atendimento da própria legalidade e se passou por cima dos processos democráticos de discussão e debates. Nenhum dos projetos foi elaborado com participação pública e popular. Esse é um malogro muito pior do que um 7 x 1. Mas isso não chega na mídia, chega? Essa operação midiática em torno do megaevento não ocorreu apenas no Brasil. Houve processos semelhantes na Cidade do Cabo, na África do Sul, na Índia e também na preparação de Pequim para sediar as Olimpíadas de 2008. Na maquinaria do megaevento, e para não se questionar o consenso em torno dele, a ligação do unlock land values é retirar o uso pouco rentável daquela terra por parte dos pobres em nome de um outro uso. Nesse contexto das Olimpíadas, isso vai aparecer, por exemplo, no Porto Maravilha, um projeto muito discutido e observado no Rio por servir como âncora para as operações de city marketing. A venda desse grande porto para o mercado internacional inclui fundos de investimentos internacionais em que o capital estrangeiro financia a construção de torres corporativas e hotéis. É um tipo de produto imobiliário vendável nesse modelo e nesse circuito. Assim como o modelo que estava se armando com a Cidade da Copa, é o tipo de projeto com uma nova contratualização entre o Estado e o privado, que confere mais poder ao ente privado ao conceber uma regulação pública com menos participação popular e com objetivo final de entregar tudo ao privado.

CONTINENTE Dentro desse contexto em que interesses públicos e privados se confundem, e assim se negligencia uma ideia de cidade, como pensar em formas de resistência?
RAQUEL ROLNIK Penso que tudo acaba ativando novas possibilidades de porosidades e resistência. O Ocupe Estelita é o melhor exemplo de um movimento que vem emergindo em várias capitais brasileiras – de contestação da política urbana e de luta pelo direito à cidade e por alternativas para se pensar em outras políticas para o planejamento e desenvolvimento urbanos. Isso é muito importante, mas será que vamos ter força para reverter essa história? Esses movimentos já encontraram complicações grandes, mas é essencial e imperativo, até, que se ampliem e se articulem. A cidade, hoje, é o palco dos nossos movimentos sociais brasileiros e tem enorme importância política. É nela que operam os movimentos em torno da questão do transporte, pregando a redução da tarifa, e é nela que estão as reivindicações sobre os modos de circular, em torno da questão do uso e da destinação dos espaços públicos. Disso tudo está saindo a formulação de um novo paradigma do direito à cidade. Todos esses movimentos nos dão esperança de que poderemos, sim, reconstruir a plataforma de uma reforma urbana com direito à cidade. 

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