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Do disfarce à glória

Criado para salgar e temperar a comida, e esconder o odor de alimentos deteriorados, o molho é hoje um fundamental enaltecedor de sabores

TEXTO Eduardo Sena

01 de Agosto de 2016

O chef Joca Pontes, do Ponte Nova, explica que “o molho precisa do prato. Não funciona sozinho, como suco ou sopa”

O chef Joca Pontes, do Ponte Nova, explica que “o molho precisa do prato. Não funciona sozinho, como suco ou sopa”

Foto Rafael Medeiros

[conteúdo da ed. 188 | agosto de 2016]

“Nem disfarce, muito menos complemento. Molho é sacerdócio.” Não lembro qual o dono das aspas, mas foi um desses chefes apresentadores de reality shows gastronômicos, que adoram emplacar um aforismo para dar uma lição em algum participante desastrado. Entretanto, a sentença ajuda a compreender a mudança de status dos molhos, desde que a gastronomia se tornou um valor cultural dentro da sociedade, passando a ser tão analisados quanto o ponto correto de uma carne, exigindo dedicação especial do cozinheiro em sua confecção.

“É tanta responsabilidade, que, em grandes brigadas de cozinha, existe um chef de partida especialista nesta preparação, o saucier. Em equipes menores, os cozinheiros têm várias funções. Mas, normalmente, o responsável pelo molho é sempre o mesmo”, explica Taciana Teti, professora do curso de Gastronomia da Faculdade Boa Viagem. Mas nem sempre foi assim. Apesar de terem origem incerta, os molhos nasceram em meados do século 17 como fruto da necessidade de salgar e temperar por igual um alimento. “Também eram fortemente utilizados para esconder o odor dos ingredientes que se encontravam em estado de deterioração. Feitos em princípio à base de vinagre e sal, aos poucos, foram sendo incrementados com azeite, cebola e outros tipos de temperos”, explica a pesquisadora Maria Lucia Gomensoro, no livro Pequeno dicionário de gastronomia.

A partir daí, foram os franceses que aprimoraram o recurso, desenvolvendo uma ampla cartela de desdobramentos dessas combinações molhadas, buscando otimizar as receitas. Nas cocções contemporâneas, não existe um consenso entre os profissionais de cozinha para uma definição da função de um molho. Mas, em comum, a certeza do seu caráter de composição e de união de sabores em pratos de todo o mundo. “Atualmente, o grande objetivo dele é, de fato, ‘molhar’ o alimento, deixando-o mais saboroso e brilhante. Porém, também é utilizado como forma de acentuar o sabor de alguns alimentos”, afirma Taciana Teti.

Já seu par de profissão, o chef Rogério Costa, à frente do francófilo Mingus, acredita que estamos falando de um enaltecedor de sabor. “Quando você pega um molho bem-feito em cima de uma carne, é possível extrair outras propriedades dessa proteína”, defende. “Ele amparará o ingrediente principal de um prato, seja ele uma carne, um peixe ou uma massa, servindo como elemento de ligação aromática para a valorização do todo”, opina Luciana Sultanum, professora do curso de Gastronomia da Faculdade Senac, e cujo trabalho bebe na fonte da escola clássica francesa.

A propósito, essa diretriz da cozinha de Carême segmenta os molhos em quatro grupos que, em uma analogia com o corpo humano, são tecidos que geram diversas células. “Temos os de base escura, que nascem a partir do demi glace. Os de base clara, cuja base é o bechamel, também conhecido como molho branco. Há, ainda, as emulsões frias, em que a maionese é o pilar, e, por fim, as emulsões quentes, sustentadas pelo molho holandês”, lista Teti. “É por meio da base escura, por exemplo, que se obtém o famoso molho madeira. Já o bechamel rende molhos de queijo; a maionese, o molho tártaro, o aioli; e o holandês, o clássico béarnaise”, completa Rogério Costa. Mas não podem ser esquecidos os molhos contemporâneos e os clássicos de cada país, como os italianos pesto e de tomate; o guacamole mexicano; o teriaki japonês, o rubro agridoce chinês, os currys tailandeses, só para citar alguns.

MOLHO/CALDO
Apesar desse amplo repertório de combinações, é preciso pontuar que nem tudo que é molhado é molho. Há uma linha tênue que o distingue de outros estados líquidos da gastronomia. Profissional dos que mais prezam pelo rigor técnico na confecção desses preparos, o chef  Hugo Prouvot destaca que ele deve ter a força de sabor que deve enjoar, se tomar de colheradas, como uma sopa, por exemplo. “Há um tempo, foi popularizado o termo redução, não como técnica espessante de concentração de sabores, mas como um produto final, o que é escorregadio. Uma redução de fruta é um coulis, uma calda. Há reduções que são molhos, e reduções que não são”, dissocia. “O molho precisa do prato. Não funciona sozinho, como um suco ou uma sopa”, resume o chef Joca Pontes, do Ponte Nova.

Discurso harmônico mesmo entre os profissionais do setor passa pela importância de um bom caldo para a excelência do resultado final do molho, sobretudo na cozinha clássica, na qual ele resulta da longa cocção de ossos, aparas de carnes, legumes e aromáticos. “A execução de molhos não é simples e exige uma boa noção prática do profissional, uma vez que se utiliza de técnicas para transformar ingredientes básicos em um produto final com cor, aroma, textura e sabor que marcam bastante o prato final do qual ele fará parte”, acredita a professora Luciana Sultanum. De sua parte, Taciana Teti garante que a base correta de caldo do osso promoverá aos bons molhos escuros uma trama espessante para adquirir a textura de napar, ou seja, uma leve camada aveludada em cima da carne.

Outro acordo entre os cozinheiros passa pelas características que o molho deve reunir para obter um resultado feliz: sabor, cor, textura e brilho. Para a obtenção desses elementos, refinamento técnico. “No caso do clássico molho de carne, é preciso estar reduzido ao ponto certo, não ter espessantes (farinha de trigo), ser ‘montado’ na manteiga (monter au beurre) e, por fim, o crucial, que seria estar com sal e pimenta bem-dosados”, lista Joca Pontes.

E tanta dedicação em torno de um aparente papel coadjuvante vem sendo reconhecida de outra forma. É que se nota que os clientes estão mais próximos de boas experiências gastronômicas ao reconhecer a qualidade de uma emulsão bem-feita, de um molho bem-reduzido. “A exigência aumentou. É como se, antes, você pudesse errar no molho, hoje, não”, acredita Rogério Costa, que produz mais de 10 tipos de molhos para o cardápio do Mingus.

Essa mudança também abriu horizontes para diferente cenário. O da maior liberdade de criação para o cozinheiro, que passou a realizar intervenções nesse receituário, utilizando ingredientes antes considerados inusitados. “Buscam-se novas texturas, temperaturas diferentes, porém, sempre com o objetivo de acentuar o sabor da preparação, ou talvez, ‘brincar’ com as sensações no paladar do comensal”, avalia Teti. Por outro lado, mesmo diante dessa nova prática, é importante frisar que a metodologia clássica serve como principal base nos restaurantes que, em grande parte, têm referência nos princípios gastronômicos franceses. “São, certamente, os itens que tomam mais tempo e trabalho nas cozinhas profissionais, já que representam um grande diferencial no resultado final dos pratos. Mesmo para a intervenção, a base é muito importante”, acredita Luciana Sultanum.

UM DESAFIO À QUÍMICA
É esse alicerce técnico que garante, por exemplo, o êxito de um béarnaise, considerado o rei dos molhos, e um dos mais difíceis e clássicos de todos eles. “Se não souber fazer um béarnaise, não pode ser considerado um chef. Aliás, ele não é nem um cozinheiro”, sentencia o restaurateur Nicola Sultanum. Feito à base de gema, estragão, cebola picada, redução de vinho branco, umas gotinhas de limão, sal, pimenta-do-reino, (muita) manteiga e (muito) cuidado, a emulsão é considerada uma improbabilidade química por unir elementos que não se juntam. Ou, pelo menos, foi ensinado que não: água e gordura.

Fino acompanhamento para os grelhados, o molho amarelado que, junto ao corte de entrecôte e fritas sequinhas, forma um dos ménages mais celebrados na cozinha mundial, é a receita mais fácil de dar errado no mundo. Está a um piscar de olhos de se tornar um punhado de ovos untuosamente mexidos ou uma maionese equivocada. “Ele nem sempre vai ficar igual e isso é sua mágica. Tê-lo no cardápio do restaurante é um grande desafio, é o tipo de preparo que para a cozinha”, depõe Nicola. Para o chef Rogério, que executa a receita na casa, o béarnaise tem que ter sabor, a cor e, acima de tudo, a textura.

Para conseguir o intento, alguns testes de laboratório comprovam que a temperatura ideal de cocção deve ser igual a 65º C. Mais que isso, coagula. No Mingus, um dos poucos endereços que oferecem a iguaria na cidade, o molho é preparado sob a técnica de banho-maria para o controle ideal da temperatura. O mérito não é só do chef. “Às vezes, sem que se dê conta, ele foi ajudado pela interação correta entre partículas de gordura, graças à qual elas se mantêm em suspensão. Essa interação, que envolve forças de atração e de repulsão, é que assegura estabilidade e consistência a um béarnaise”, explica a química Renata Cruz. Qualquer alteração nos ingredientes – na quantidade ou na qualidade – ou no modo de prepará-los pode romper o sutil equilíbrio que determina a intensidade daquelas forças, levando o molho ao lixo. Então, podemos chamar um molho de complemento? 

 

 

 

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