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Cinco vezes, o poeta

"Soma: poesia" reúne cinco livros do artista plástico, poeta e crítico pernambucano Montez Magno que estavam fora de circulação, oferecendo um panorama vasto de seu legado textual

TEXTO Marina Moura

01 de Setembro de 2016

O crítico, artista plástico e poeta pernambucano Montez Magno

O crítico, artista plástico e poeta pernambucano Montez Magno

Foto Breno Laprovitera

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

Antes de ser
um objeto cheio de utilidade intelectual, o livro é, primordialmente, um objeto de memória. Por meio dele, podemos nos “projetar no futuro ou no passado”, para citar Montez Magno em seu ensaio A inutilidade da arte. No prefácio de Não contem com o fim do livro, o jornalista francês Jean-Philippe de Tonnac observa que as bibliotecas, os livros, revelam de modo muito preciso o que resta quando tudo foi esquecido. O que representa um livro? É uma obra que o tempo não fez ou não pôde fazer desaparecer, é um objeto de resistência, a resistência contra a morte e o esquecimento.

Ao longo dos seus de 60 anos de carreira, o poeta, artista plástico, crítico e tradutor Montez Magno escreveu mais de 10 livros de poesia. O alcance desta parte de sua obra, porém, sempre foi um tanto limitado, já que todas as edições foram concebidas artesanalmente e com reduzidas tiragens. Além do mais, nos dizem os versos de Montez, “bons poetas/ sofrem de amnésia”. É, portanto, de muita relevância que agora tenhamos acesso à memória poética de parte de sua obra graças a Soma: poesia, iniciativa do pesquisador Itamar Morgado com apoio do Funcultura, que reúne cinco livros do autor – Estações visionárias, Dentro da caixa, cinza, Narkosis, Câmara escura e Enquanto respiro.

Em Estações visionárias, com poemas escritos entre 1961 e 1989, temos um poeta em trânsito: Madri, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Olinda são os painéis geográficos que compõem e marcam seu discurso poético. No início na década de 1960, Montez recebe uma bolsa de estudos do Instituto de Cultura Hispânica de Madri e, lá na Espanha, realiza três exposições individuais. O fato marca a temática de sua obra literária de então e aflora a faceta de viajante do autor. Percorrendo e criando territórios físicos e sentimentais, a produção deste período já contém em si o caráter existencial cuja tônica perpassa a melancolia presente na maior parte de seus versos. Aqui, o poeta questiona-se acerca dos movimentos de partida e chegada inerentes a todos os indivíduos, afinal, “quem já não foi marinheiro um dia?”. Ele está às voltas, deste modo, com “círculos, etapas, órbitas, cansaços,/metas, pontos, bússolas e mapas”, pois, afirma o eu lírico, “a inexatidão da vida faz-me percorrer/ demandados caminhos tão frequentes”. São percursos que parecem servir a uma resolução que em nada pretende esclarecer ou apaziguar sentimentos conflitantes de permanecer ou partir: “Viajantes que somos precisamos de ausências:/ por conseguinte não viajemos”.

É a partir de Dentro da caixa, cinza que temas caros ao autor — como o ceticismo, pessimismo e a reflexão acerca da finitude da vida — vão sendo mais precisamente delineados. “Este não é um tempo de coisas bonitas, por isso a/ impossibilidade/ de se empregar o azul”. A que tempo refere-se Montez? O poeta nos dá algumas pistas em seu discurso de descontentamento, “porque não vejo nada que me baste,/ tudo cheira a cansaço e violência”. E, embora haja o som, o silêncio e a palavra para tentarmos apreender o real e dotá-lo de sentido, “ninguém haverá de suprimir o antigo medo/ e a solidão biológica do homem no infinito/ espaço”. É o mal-estar, “este inferno constante e movediço”, que talvez flutue em sua produção, por vezes com forte carga dramática. Porém, existe uma preocupação de Montez em manter-se sóbrio na escrita e não fazer dos versos um trampolim para possíveis lamúrias que soem pessoais – para ele, o poema “tampouco é o depósito de lixo da alma atormentada/ onde o poeta deva jogar seus sentimentos/ travestidos de trapos”.

A temática da morte é trabalhada sob dois pontos de vista, um mais adepto à filosofia oriental, isto é, “com total desprendimento”; e outro que inscreve a tristeza a partir da inevitabilidade do fim, uma vez que “não poderias jamais recuperar/ o tempo que passou e é perdido,/ os jovens momentos da vida dissipados”. Os poemas mais recentes de Montez, reunidos em Enquanto respiro, tratam sobretudo da consciência da velhice e dos seus desdobramentos, ou, mais precisamente, escreve ele, da “corrupção do corpo”. Já não é exatamente a morte o assunto central dos versos produzidos ao longo da década de 2000, mas a trajetória degradante do corpo até o momento derradeiro, a incômoda “fronteira entre a dor e o fim”. A sensação de descontentamento com o processo de ver-se falecendo é bastante evidente no seguinte trecho do poema Miniode funerária: “O que incomoda/ não é tanto o cimento/ à volta do corpo/ nem o caixão de pinho/ que os cupins roerão em cinco meses/ e sim a corrupção da carne/ o seu apodrecimento/ paulatino, lento”.

POETA-PINTOR
No prefácio a Soma, Anco Márcio Tenório Vieira, crítico e professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aponta que o Montez artista plástico – com suas pinturas, desenhos, colagens, monotipias, esculturas e objetos – “mantém um diálogo com as vanguardas do século 20, a exemplo do neoplasticismo mondriano, do expressionismo abstrato, dos ready-mades de Marcel Duchamp, da arte conceitual e de determinadas manifestações pictóricas da cultura popular do Nordeste”. Já o seu conjunto de poesias, prossegue Anco, “é quase predominantemente discursivo”. O crítico observa que a obra literária de Montez possui “forte sentido filosófico e existencial, em que a condição trágica do homem, a sua consciência da morte, a necessidade de redimensionar a vida por meio da arte (pois ‘a vida sabe que ela só não basta’) revelam-se mais importantes para o poeta do que as experimentações verbo-voco-visuais da linguagem”.

Há, contudo, do ponto de vista conteudístico, alguns poemas da reedição que indicam o repertório visual de parte de sua produção poética, especialmente no que diz respeito à intimidade de Montez com aspectos cromáticos. “Eu não vivo dos sons,/ vivo das cores”, declara em poema de 1961. A relação dele com elementos próprios da pintura, ressignificando as escalas de cor, ajuda a construir o desencantamento de versos como “a minha solidão tem matizes diferentes/ em dias nos quais as cores são presentes:/ rosa, quando o sonho afaga; verde é a solidão que me esmaga”.      Ademais, presta tributo a uma de suas referências das artes visuais, o pintor abstracionista Jackson Pollock (1912-1956). O intitulado Poema para Jackson Pollock, de 1963, dá ao leitor uma bela imagem mental da técnica desenvolvida pelo norte-americano, a chamada action paiting (pintura em ação), na qual subverte a tradicional prática no cavalete e arremessa as tintas diretamente na tela: “Ou dos gestos acrobáticos dos pés/ nasçam novos sinais coreográficos/ imantados no tempo e nos painéis”. Escreve ainda Montez no mesmo poema: “Deixemos nossos olhos desiguais/ navegar pelos traços setembrinos/ de redondas filigranas pranteadas/ por escuros abissais”, aludindo à experiência de contemplar os grandes quadros de Pollock.

O próprio Montez, inclusive, chegou a traçar paralelos entre as duas modalidades artísticas em texto crítico de 1990, A poesia muda e a pintura que fala. Nele, o autor apresenta um apanhado histórico de personalidades que exerceram tais ofícios simultaneamente, como Leonardo da Vinci (1452-1519), o qual, em seu Tratado de pintura, afirmou que “a pintura é poesia muda, e a poesia é pintura cega”. Montez concorda com o italiano e relembra a etimologia do termo poesia, que vem do grego poeisis e significa “passagem do ser para o não ser”.

Ele entende que a definição é “aplicável a todas as artes”, demonstrando, mais uma vez, sua verve de poeta-pintor ou pintor-poeta, sem se preocupar em deixar sobressalente qualquer uma de suas atividades, uma vez que, para ele, o que conta é a validade dos processos criativos e a sua capacidade de mostrar-se incansável enquanto artista multifacetado. Soma representa, deste modo, um monumento à grandeza do poeta Montez Magno. Ao ler seus poemas, somos convidados a “entrar no interior das coisas (…) no interior do ser, no seu altar sagrado,/ está um motor que é a máquina do mundo,/ que sabe sem saber e mesmo sem ciência/ percebe que é luz, que é fogo intenso”. 

 

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