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Paixão

TEXTO José Cláudio

01 de Setembro de 2016

Em flagrante: Fernando Pessoa bebendo vinho na firma Pereira da Fonseca à frente e um barril de clarete

Em flagrante: Fernando Pessoa bebendo vinho na firma Pereira da Fonseca à frente e um barril de clarete

Foto reprodução

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

Não me sinto
à altura. Não estou preparado. Se eu fosse o leitor, pararia aqui. Se não está preparado, se não se sente à altura seja lá para o que, por que então prossegue? Vos direi no entanto que quem recebe um benefício tem obrigação de dizer: “Muito obrigado”. Sinto-me pois na obrigação de exarar este termo de agradecimento pelo Fernando Pessoa/uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho, livro muitos furos acima da minha capacidade de avaliação.

Só tinha lido uma vez a biografia de um poeta, há milhões de anos, ainda menino, na Ipojuca do ancestral Engenho Penderama de José Paulo. Tanto azucrinei os ouvidos de meu pai que ele me permitiu a compra da biografia de Olavo Bilac. Quando o livro chegou, achei uma espécie de milagre, um livro ter vindo pela minha ordem do longínquo Rio de Janeiro, quase uma ficção, existente apenas nos livros de geografia. Acho que só mandei buscar o livro para ver se esse milagre acontecia. Como se tivesse vindo direto do céu. Era um livro grosso, na minha ideia de menino, provavelmente ginasiano, interno no Colégio Marista, de férias em Ipojuca. Tinha na capa marrom o perfil do poeta de pincenê, bigodes de pontas levantadas, e de todo o livro me ficaram duas informações: primeiro, que tinha um dos lados do rosto deformado e por isso só tirava retrato de perfil, para esconder o outro lado; segundo, seu nome completo formava um verso alexandrino, “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”, como no seu poema O Caçador de Esmeraldas: “Fernão Dias Paes Leme agoniza. Um lamento/Chora longo, a rolar na longa voz do vento” (na página 228 do livro de José Paulo tem “Monteiro” em vez de Martins, quebrando a musicalidade do verso, logo notei, e “de” em vez de dos, mas o nome aparece certo em nota mais para o fim do volume).

O livro nos seduz e induz à mesma paixão pelo poeta, doença contagiosa que levou José Paulo a essa pesquisa infinita que não mede esforços, sempre alerta ao mais insignificante acaso que o próprio Pessoa teria deixado de lado, chegando a intimidades que a minha mãe diria, como disse certa vez a respeito de um livrinho meu quando exigi que ela lesse, Bem dentro, pensar que coisa assim só existia em livro de medicina.

O livro de Zé Paulinho chega a esse ponto, como saber do tamanho do pênis do poeta e da impossibilidade de completar o ato, o que, da minha parte, diga-se de passagem, considero da maior importância e responde pelo rumo da sua poesia, não somente tendo enorme repercussão em toda a obra mas sendo mesmo uma espécie de geratriz, fonte perene, dínamo que converte todos os acontecimentos, até os mais aparentemente banais para outros, em poesia quando passados por essa máquina espantosa que é o gênio. Buffon disse: “O estilo é o homem”. É comovente acompanhar o namoro do poeta com sua Ophelia, que até começa a preparar o enxoval, e mesmo sem concretizar o casamento nunca desistiu de amar esse noivo indeciso. E assim outros romances involuntariamente platônicos que José Paulo segue qual detetive particular ansioso por dar o flagra.

Outra dificuldade enfrentada pelo meu despreparo é a vastidão e o alto nível da obra de Fernando Pessoa ao lado do horror de dados deste inventário sem fim feito por José Paulo. O próprio José Paulo destaca dos principais heterônimos uma obra mas se você continuar a ler, na mesma página e nas outras depois de encerrados os poemas, no caso da Obra Poética da Aguilar, por exemplo, verá que constituiria tudo um poema inteiriço, a emoção, a capacidade verbal não se esgotam, como se uma Ode Marítima, O Guardador de Rebanhos, Tabacaria, fossem outras tantas odes ou a mesma e não terminassem ali, se multiplicassem, não arrefecessem. E de fato não se pode parar nunca, a não ser por nossa própria exaustão. A veia do poeta, esta não se exaure.

“Tudo vale a pena”. Até um bilhete, e é por isso que José Paulo vai atrás, invade prédio, se dependura numa janela para ver se avista dali uma casa, um bar que Pessoa frequentava, como se com isso trouxesse sua própria presença material, viver, durante nem que fosse por uma fração de segundo, o poeta reencarnado, sentindo-o na pele, ou sentindo-se na pele dele: “Transforma-se o amador na cousa amada,/Por virtude do muito imaginar”, como disse Camões. Ou quem sabe como aparecia o poeta a seu heterônimo Ricardo Reis no livro O ano da morte de Ricardo Reis de Saramago. Aliás foi somente depois de ler o romance de Saramago que tive impulso de entrar para valer no Fernando Pessoa/uma quase autobiografia como o intitulou com muita propriedade o autor.

Ele mesmo cita Saramago, dizendo não ser necessário nada disso, que a obra do poeta já é o suficiente para o conhecermos. Mas o apaixonado não se conforma, sempre quer mais e mais, a ponto de adquirir os óculos e outros objetos que pertenceram ao poeta, se fosse possível seus cabelos e outras relíquias, creio eu, além de suas publicações desde o primeiro folheto em inglês, indo até à exumação do seu corpo no depoimento do presidente Mário Soares.

Também pesam outras condições, desde as intelectuais às materiais, o bom conhecimento da língua inglesa, segunda língua de Pessoa, e outros conhecimentos que transparecem a cada linha, a cada notinha de pé de página, a cada citação latina, a boa assessoria, a possibilidade de ir aos locais, de passar temporadas em Portugal, tendo-se transformado até em produtor de vinho, batizado este de Lecticia, nome de sua mulher. 

  

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