Arquivo

Prestígio do pão de fermentação natural

Entre os movimentos de “contracultura” culinária está o fabrico do alimento a partir de técnica tradicional, que eleva seu sabor, sua riqueza nutricional e seu tempo de preparo

TEXTO Eduardo Sena

01 de Setembro de 2016

No Recife, Galo Padeiro oferece uma grande variedade de pães feitos com fermentação natural

No Recife, Galo Padeiro oferece uma grande variedade de pães feitos com fermentação natural

Foto Daniela Nader

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

Categoria cultural
que é, a gastronomia, leia-se o mercado que a representa, também não se furta em emplacar os seus mainstreams. De tempos em tempos, e com espaços cada vez mais curtos, uma corrente hegemônica é ventilada, rapidamente absorvida pelos foodies, instalando uma nova configuração de marketing comestível. Após a celebrização do brigadeiro, da tapioca, das cervejas artesanais e, mais recentemente, do café, agora é o pão o alvo do curioso processo que transforma o alimento em objeto de consumo e não mais de subsistência.

Esse frisson se deve ao processo fermentativo ao qual ele vem sendo submetido, a fermentação natural, também conhecida como levain, em francês. E, aí, vale uma digressão para a trajetória do pão. A história não indica quando ele surgiu, mas é consenso que só depois de algumas conquistas humanas: o domínio do fogo, o início da agricultura (o primeiro grão semeado foi o sorgo, e, em seguida, a cevada, a aveia, o trigo e o centeio) e o desenvolvimento da cerâmica. “Em princípio, não eram fermentados. O que só veio a acontecer no Egito, entre 2000 e 1600 a.C.”, aponta a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti.

À época, o método aplicado a essas panificações era o natural, justamente o mesmo que vem sendo festejado atualmente, resultado da ação biológica de micro-organismos formados majoritariamente por fungos e bactérias. “Eles se alimentam da mistura de farinha e água, consumindo os açúcares contidos no trigo e, em troca, produzem gás carbônico, álcool e ácidos”, resume o jornalista gastronômico Luiz Américo Camargo, entusiasta do método e autor de Pão nosso – Receitas caseiras com fermento natural. Até o século XIX, o pão era fermentado assim.

Uma nova realidade só surgiu em 1857, a partir das pesquisas de Louis Pasteur, cientista francês que identificou uma das variadas leveduras, a Sccharomices cerevisiae, como uma solução que poderia agir de forma mais rápida que qualquer outro tipo. Esse fungo compõe o conhecido fermento biológico, que, devido ao aumento da demanda comercial, foi popularizado, reduzindo a adesão das padarias ao método tradicional. “A fermentação natural, que é lenta e caprichosa, em um certo momento, tornou-se inconveniente para os horários apertados do cotidiano moderno. Até que o método antigo virou mais exceção do que regra”, explica Luiz Américo.

Segundo Maria Lecticia, o Brasil só conheceu o pão depois da chegada da família real, em 1808, ainda assim, com bastante dificuldade. O alimento era restrito à corte, já que poucos tinham acesso ao trigo, que era vindo de Portugal. “É natural que um país com pouco mais de 200 anos de panificação, e onde 99% dos pães produzidos são feitos com fermento biológico, se entusiasme com essa possibilidade. É, sem dúvidas, um grande enriquecimento para a população. Mas é preciso ter cuidado para que o caminho tomado não seja o da vaidade, o do adjetivo, deixando a qualidade em segundo plano”, salienta o padeiro artesanal Márcio de Sena, especialista no métier.

Há sete anos se dedicando ao processo, o padeiro não só acredita que há uma exaltação demasiada ao método e pouco conhecimento efetivo, como desaprova o valor subjetivo que o alimento vem tomando. “Pão é o alimento básico do dia a dia. Todo dia faço pães à base de levain para vender. É um preparo que faz parte do cotidiano das pessoas. Além do quê, não estamos falando de algo inovador, mas milenar.” Por outro lado, a valorização dada à técnica parece compor algo muito maior, como o próprio zeitgeist gastronômico, hoje ancorado na valorização dos produtos artesanais e de cultura orgânica. Mas, à parte desse momento de libertação da indústria e fetiche comestível, o que torna o pão de fermentação natural tão especial?

GANHO NO SABOR
Se formos fazer uma analogia da massa fermentada com a música, a produzida com fermento biológico seria como o som de apenas um instrumento, a confeccionada com levain, uma orquestra. “Como o fermento biológico é composto por apenas uma levedura específica, ela fornecerá apenas uma característica. A que permite a produção de gás carbônico, que faz o pão crescer. Logo, ele apenas infla, mas não produz sabor”, explica Márcio de Sena. Já a versão com fermentação natural, composta por dezenas dessas bactérias agindo em conjunto (que digerem preguiçosamente o amido do trigo), geram não apenas os gases necessários para o crescimento, mas também ácido acético e lático, elementos que contribuem para o desenvolvimento de seu sabor.

O industrial, em resumo (e sem demérito, pois as propostas são diferentes), infla a massa, mas contribui menos para o aporte de sabor, embora seja muito útil em diversas receitas. Já o fermento natural atua sobre o trigo sem pressa. “Como característica visual, o pão ganha filões com crostas crocantes e espessas. A textura do miolo é densa, embora leve. Na boca, despontam sabores especiais, nos quais se revelam notas de mel, nozes e outros elementos que parecem ter se fixado ali por magia”, detalha Luiz Américo Camargo.

“A fermentação natural é mais complexa, porque o padeiro atua como um regente, um maestro de todos esses sons”, compara Márcio de Sena. Segundo ele, durante o preparo, acontecem três fermentações simultâneas no pão: a alcoólica, a mais desejada pelo panificador, que é a que libera CO² e faz o pão crescer, a acética e a láctea. “Entretanto, cada uma acontece em tempos distintos, sendo o grande desafio do padeiro buscar uniformizá-las de forma que cheguem ao estágio final do processo quase ao mesmo tempo”, explica o padeiro.

Tempo, a propósito, é um outro componente importante. É que existem dois métodos na produção dessas massas, o direto e o indireto. No primeiro, com fermento biológico, todos os ingredientes são misturados em uma máquina e, em média de cinco horas, o pão estará pronto. No segundo, também conhecido como longo, residem duas subcategorias, a com fermento biológico e a com levain. Enquanto, em uma, é produzida uma mistura de água, farinha e fermento, que serve como base de acordo com o pão que se quer fazer, no outro, é adicionado o fermento natural, feito a partir de farinha e água (para produzi-lo, levam-se 15 dias; veja receita no box), no qual o pão leva de 24 a 48 horas para ficar pronto.

O tempo recompensa. Além do sabor, entre as vantagens da fermentação longa está o auxílio no processo digestório. “Basta lembrar que durante todo esse tempo as bactérias se alimentam do amido do trigo, um dos vilões do grão. Logo, elas vão adiantar essa função digestiva para o organismo humano. E mais: ainda liberam enzimas como a fitase, contida na farinha, que facilita ainda mais na digestão”, garante a nutricionista esportiva Tamyris Farias.

MASSA E LEVAIN
Com tantos benefícios, o método levain não se restringiu à panificação. Em qualquer outra massa que necessite de fermentação, ele pode ser aplicado. “O que não é uma garantia de qualidade, vale frisar. Para se obter êxito na massa, é preciso cumprir 12 etapas. O levain é apenas uma delas”, esclarece Márcio de Sena. O padeiro artesanal está à frente das massas da Forneria 1121, pizzaria mais ou menos recente, nos Aflitos, que detém o pioneirismo no estado na produção de pizzas com fermentação natural.

“Quando foi feito o convite para a consultoria, foi solicitada uma massa de pizza de que eu gostava. Elegi a de Denominação de Origem Controlada Napolitana, que, entre as normatizações, requer fermentação longa, mas não necessariamente natural. Ou seja, requer a aplicação do método indireto. O resultado é uma pizza que o comensal consegue devorar alguns pares de fatias sem aquela sensação de empachamento gerada pelo amido do trigo. A subsistência é a cobertura das redondas. Um dos segredos é a utilização de farinhas italianas na receita. Como são mais ricas em amido, a bactéria tem do que se alimentar durante as 20 horas de fermentação”, atesta Márcio.

Na região central do Recife, em Santo Amaro, a padaria Galo Padeiro também aplica o método para além dos pães. Pioneira no formato na cidade, no endereço, em tudo o que requer fermentação, os atalhos são dispensados, e o levain entra em cena. Mas o procedimento não foi deliberado. Quando as sócias Manuela Agrelli e Luciana Lima decidiram abrir um estabelecimento de panificação na região, o motivo passava pela possibilidade de êxito enquanto negócio.

“Nossos únicos pilares eram que a padaria fosse em Santo Amaro, por ter uma demanda não atendida desse serviço, e que fosse um pão bom”, lembra Luciana. Foi quando chegaram ao nome do chef boulanger Javier Vara que, à época, daria um curso de pães no Recife. Já na oitava geração de padeiros da família, o espanhol foi contratado para prestar consultoria gastronômica na casa e instituiu a fermentação natural como diretriz. “O que era para ser bom, se tornou excelente”, brinca.

Mas entre as muitas particularidades que essa guinada promove, o fato de não poder programar a hora da fornada – uma vez que cada massa tem o seu tempo. Do croissant ao pão, nada leva adição de aceleradores ou correção, respeitando os princípios químicos naturais. Nas prateleiras, podem ser encontrados diariamente pelo menos 10 tipos de pães, entre os quais ciabatta, camponês e o brasileirinho, a versão da casa para o cotidiano “francês”.

O trigo italiano e francês também é base para o repertório de doces e salgados, como o famoso croissant (responsável por levar 50% da clientela), brioches, massas folhadas, torta de maça e pão de chocolate. “Essa escolha, talvez por um caminho mais difícil, deve soar como um manifesto em defesa ao pão de verdade. Acreditamos que existe um grande mercado para a panificação artesanal a ser explorado. O foco não é o modismo, é a qualidade do produto”, finaliza Luciana. 

 

Publicidade

veja também

“O tempo que meu avô passou no Brasil impactou emocional e intelectualmente sua vida”

O corpo, a geometria e o vento

Sobre a importância da ruína