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“A preservação patrimonial é muito de imagem”

Curador da Trienal de Arquitetura de Lisboa, que acontece entre outubro e dezembro, André Tavares esteve em seminário no Recife, quando conversou com a Continente sobre práticas arquitetônicas

TEXTO Luciana Veras

01 de Setembro de 2016

O professor e curador português André Tavares

O professor e curador português André Tavares

Foto Valter Vinagre/divulgação

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

André Tavares é um arquiteto inquieto. O semblante tranquilo, a voz calma e o forte sotaque luso podem até não deixar transparecer, porém suas credenciais evidenciam: aos 40 anos, ele é um dos curadores gerais da Trienal de Arquitectura de Lisboa, que transcorre entre outubro e dezembro na capital portuguesa; é professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, na qual se formou; e é autor de vários livros, entre eles Uma anatomia do livro de arquitectura, que em abril recebeu um prêmio na Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Urbanismo. Dias depois de tal premiação, Tavares esteve no Recife, como palestrante do 11º Seminário DOCOMOMO_Br, encontro bienal voltado para preservação do Movimento Moderno. A difusão do pensamento arquitetônico também é, pois, um dos seus campos de atuação.

Foi ao fim de uma manhã ensolarada que ele conversou com a Continente sobre diversos aspectos da práxis arquitetônica e, sobretudo, sobre a relevância de pensar a arquitetura. Para ele, é crucial debater não somente o que se refere ao projeto urbano de uma cidade, mas “no sentido de produção do espaço cultural em que nos sentamos para ser capazes de aprender uns com os outros”. “Arquitetura é o reflexo daquilo que as pessoas são, daquilo que fazem e de como elas trabalham. Ser arquiteto, hoje, é ter a capacidade de escutar os anseios da população e de quem habita a cidade e não apenas de quem a explora; e reconhecer o que é arquitetura enquanto disciplina e o papel que ela representou no Renascimento, na Revolução Industrial e para a cidade moderna”, ressalta.

CONTINENTE Como sua mais recente publicação, Uma anatomia do livro de arquitectura, oferece outro olhar para a história da arquitetura?
ANDRÉ TAVARES O livro que publiquei trabalha muito com a representação e com a perspectiva de como as ideias de arquitetura viajam não apenas nos edifícios, mas também no espaço do livro, e como essas viagens são fundamentais para a forma e para construção da arquitetura das nossas cidades e nossas sociedades. Isso casa bem com o trabalho que tinha feito sobre Joaquim Cardoso, Ricardo Silveira, Lúcio Costa, enfim, sobre o movimento moderno no Brasil. Novela bufa do ufanismo em concreto – Episódios avulsos das crises conjugais da arquitectura moderna no Brasil (1914–1943) saiu em 2009 e trazia uma visão sobre a modernidade na arquitetura brasileira e que era, no fundo, uma visão crítica a partir das representações da arquitetura fora da arquitetura. Por exemplo, como Monteiro Lobato interferiu na história da arquitetura moderna e como a presença de algumas vanguardas contribuíram para construir uma história alternativa ao, digamos, discurso oficial. Quando estive no Brasil, vim trazer uma visão de fora, de quem partilha algumas afinidades culturais, a começar pela língua, mas que vem de outro universo, contexto, cultural e social.

CONTINENTE Portugal e Brasil possuem essa inegável relação de filiação, mas as grandes cidades brasileiras se desenvolveram de uma forma em que o patrimônio colonial, barroco ou moderno não foi preservado, ao contrário do que se vê em cidades como Lisboa e o Porto. Os brasileiros, ao viajar para as metrópoles portuguesas, tecem loas para a sinergia entre passado e presente, mas a arquitetura contemporânea de uma cidade como o Recife é quase uma negação desses preceitos modernistas e o patrimônio modernista aqui é pouquíssimo preservado.
ANDRÉ TAVARES Estava a olhar para uma fotografia do Recife e pensei: “olha uma fotografia de Milão agora”. Ah, não, era o Recife dos anos 1950. Não tenho dúvida, essencialmente, de que se trata de um problema de preservação e manutenção. Diria o mesmo para o Porto e para Lisboa. E acho que há um potencial imenso no Recife, muito mais do que em São Paulo até, eu diria, de uma certa cidade que ficou ao abandono. Ou seja, após passear no Recife, reconheci o postal, embora um pouco mais decadente, degradado. O que parece não haver é uma disponibilidade econômica de reconhecer esse passado, e, portanto, haver uma necessidade de o limpar. Vivi sempre no Porto. O que tenho assistido nos últimos anos é que o Porto passou por uma fase de abandono. É uma cidade pequena – os padrões europeus são menores que os brasileiros; uma cidade relevante no nível europeu, mas tem 260 mil habitantes. A região metropolitana tem 1,3 milhão e estavam a me dizer que João Pessoa, por exemplo, tem um milhão de habitantes. Mas o Porto perdeu muita população e atividades econômicas nos últimos 20 ou 30 anos, em consequência de mudanças estruturais importantes, nomeadamente o reforço de Lisboa como capital.

CONTINENTE Configurações geopolíticas que impactaram no desenho social e urbano?
ANDRÉ TAVARES Sim, com a União Europeia, a ênfase na economia de serviços, no digital, tirou as sedes das poucas empresas que existiam. Perdendo a atividade e perdendo população, a cidade ficou uma ruína, parecida, no limite, com o Recife – obviamente, não com as diferenças sociais brutais e difíceis que conhecemos do Brasil. E o turismo traz essa recuperação do patrimônio – é óbvio que reconhece esse patrimônio histórico e convencional, mas a cidade se transformou numa caricatura de si própria. É muito pra quem sempre viveu no Porto. Em Lisboa, passa-se um pouco mesmo. É constrangedor um discurso sobre reabilitação, quando verdadeiramente está a se destruir tudo, apesar de toda a gente reconhecer isso como reabilitação.

CONTINENTE É um paradoxo.
ANDRÉ TAVARES É um paradoxo estranho. A imagem da cidade parece, de fato, melhor. Há coisas sensíveis. Diria que os pavimentos de madeira são a melhor característica para explicar isso de uma maneira compreensível. Mantém-se a fachada, renova-se tudo, mas aquilo que eram pavimentos – que, quando se andava em cima, gingava-se ligeiramente – são substituídos por lajes, que tem uma sonoridade, uma acústica e qualidade física diferente, mesmo que visualmente possam ser parecidos. E porque os padrões de conforto são diferentes, muitas coisas também o são. Imagina que o pé-direito, a altura do compartimento, que antes era de 3,5m, agora passou para 2,70m para caber mais um piso. Isso muda tudo: o que era uma escada que servia grandes apartamentos, agora serve cinco miniapartamentos. A cidade verdadeiramente é outra. A preservação patrimonial é muito de imagem. Não quer dizer que não haja exceções e que a cidade não esteja melhor. Mas, genericamente, é muito agreste.

CONTINENTE Você circulou pela Europa para fazer a pesquisa que desembocou no seu último livro, passando por cidades como Roma, Paris e Londres. Reconhece esse padrão de reabilitação de fachada, por assim dizer, em outras metrópoles do continente?
ANDRÉ TAVARES Eu diria que Portugal tem uma grande diferença em relação ao resto da Europa e, inclusive, para a Espanha. É um país que passou do século XIX para o século XXI. O século XX existiu, claro, e foi importante em muitos aspectos. O correto é que a maioria dos grandes sistemas de produção que tínhamos nos anos 1970 e 1980 do século XX era um arremedo feito nos anos 1930 daquilo que já não estava a funcionar no final do século XIX. Mesmo que se diga que passou, nos anos 1940 e 1950, para a Europa. Tudo isso significa que a integração europeia foi rápida e abrupta, no sentido de desmantelar as estruturas produtivas, que estavam claramente desatualizadas e precisavam ser repensadas. Mas foram desmanteladas para Portugal passar a uma economia de serviços e circulação do capital europeu, essencialmente, e sem que tenha havido uma verdadeira construção de produção alternativa. O que aconteceu? Entre 1989 e 2010, a mancha de construção do país mudou absolutamente, como não mudou em nenhum lugar – talvez aquilo que se passou em São Paulo nos anos 1960/1970.

CONTINENTE Uma verticalização excessiva?
ANDRÉ TAVARES Não uma verticalização, mas uma horizontalização, com a cidade se espraiando. Havia uma falta de habitação tremenda, com muita gente sem casa. Hoje temos 4 milhões de casas a mais em um país de 10 milhões. O excesso de habitação é brutal, mas há gente sem casa. Se o imobiliário e a indústria da construção se expandiram muito de 1990 a 2008, em 2009 praticamente começaram a desaparecer e, em 2011, passaram a zero. Essa mudança foi rápida; uma transformação abrupta que não se passou nos países europeus, talvez no Leste. E o que se passou a partir da crise imobiliária de 2008 foi… turismo. Houve um corte radical na economia e, quando a circulação de dinheiro parou, uma grande percentagem da população ficou no desemprego. Chegou a atingir 18%, muito para o padrão europeu, sobretudo o desemprego jovem. Quando isso aconteceu, a aposta foi turismo, turismo, turismo e turismo. Portanto, a reabilitação do Porto e Lisboa faz essa conta de transformar aquilo que eram antes comerciantes de intermediários na região metropolitana do Porto em serventes de hotel, donos de café ou de lojas de suvenir. Isso traz não só uma transformação física da cidade, para a qual tenho dúvidas, como também uma transformação social violenta. Não vejo isso acontecer no resto da Europa. Podemos dizer que existe forte em Florença, Roma, Paris, mas Roma é uma cidade turística desde o século XVI. O impressionante no Porto e em Lisboa é a velocidade claramente predatória com que isso acontece. Basta um vulcão entrar em erupção na Islândia e um terrorista explodir um café em outro lugar e a cidade colapsa no dia seguinte. Mas eu devo ser das pessoas mais pessimistas em relação ao turismo em Portugal.

CONTINENTE E você se considera otimista ou pessimista em relação ao papel que a arquitetura deve ocupar nessas novas configurações urbanas do poder econômico?
ANDRÉ TAVARES Tenho uma perspectiva mais do que otimista em relação à arquitetura e uma perspectiva pessimista em relação aos arquitetos.

CONTINENTE Quem pratica não estaria à altura do propósito?
ANDRÉ TAVARES Eu diria que o conhecimento arquitetônico é uma coisa extremamente valiosa e qualificada. A prática da arquitetura, e sua presença cultural na sociedade, está cada vez mais remetida à tecnocracia. E, portanto, o projeto não é avaliado pela sua competência arquitetônica, mas pela sua viabilidade econômica. Os arquitetos são condicionados, eu diria naturalmente e diria que não é responsabilidade direta deles, para uma posição extremamente difícil nessa coisa complexa que é a produção da arquitetura, a construção. Talvez o essencial agora é que muito mais importante do que o arquiteto é o cliente; muito mais importante do que o cliente é a construtora; muito mais importante do que a construtora é a autoridade municipal e estadual que permite que a construção se faça; muito mais importante do que todos os personagens é o banco que financia a operação. O arquiteto está apenas no meio disso tudo.

CONTINENTE O arquiteto perdeu força como um agente capaz de contribuir?
ANDRÉ TAVARES
Perdeu força, mas sobretudo diria que a cultura perdeu força, o que é mais danoso. Se fosse só pela arquitetura, estávamos todos felizes… Não seria grande coisa (risos). Falando da perspectiva do Recife, uma cidade que tem enfrentado debates fortes, que chegam inclusive à Europa, percebe-se que a arquitetura pode ser catalisadora, enquanto forma de conhecimento, de uma forma de cultura. Mas o que prevalece não é ela. A sensação com que fico é de que a sua posição, dos círculos culturais, dos intelectuais enquanto pessoas que se fazem ouvir na sociedade, foi substituída na Europa pela tecnocracia e pela economia.

CONTINENTE Pode-se dizer o mesmo do Brasil, que vive um momento sociopolítico conturbado em que o mercado mostra toda sua força e suas óbvias preferências. Em 2015, a Continente publicou uma reportagem sobre arquitetura contemporânea e muitos dos entrevistados constataram que o arquiteto havia perdido força e que a arquitetura caminhava, dentro do capitalismo, para uma sustentabilidade de butique. No Recife, cidade de muitos desafios, o capitalismo termina por criar uma arquitetura do medo, ao segregar os que moram em torres de luxo e os que habitam favelas ou mesmo as ruas.
ANDRÉ TAVARES Percebo completamente e acho que o medo é um exercício poderoso nos dias que correm. Não só na arquitetura, mas em todos os aspectos da sociedade. Na Europa, tivemos isso de uma maneira como nunca tínhamos experimentado – e eu diria que o terrorismo não é novo. Mas isso se cultiva mesmo no discurso econômico: “Ah, se você não fizer isso, tudo vai desaparecer e falir, o mundo vai acabar amanhã”. Nada vai acabar, tudo vai continuar, melhor ou pior. A arquitetura é apenas um reflexo dessas circunstâncias culturais mais amplas. Por isso é que são tão importantes as ocasiões em que podemos debater, trocar ideias e construir uma distância aos discursos hegemônicos da sociedade, para perceber efetivamente como são os mecanismos que fazem as coisas funcionar e o que está em jogo em cada um desses momentos. A arquitetura é chave. Por um lado, por implicar uma forma, ter uma cultura visual extremamente forte e uma história poderosíssima, que coincide com a história da civilização, mais até do que a história econômica. Por outro, por ser um forma de conhecimento que ainda é reconhecida, como é reconhecido o arquiteto enquanto persona e pessoa que transporta o conhecimento. Este domínio existe sobretudo na nossa cabeça; o arquiteto consegue estar no limite de tornar público, através do seu trabalho, sua posição ética, moral, individual enquanto autor. Não quero com isso fazer uma apologia da arquitetura do autor, mas dizer que a dimensão da autoria, da responsabilidade corresponde também à dimensão do conhecimento que são as pessoas que o transportam.

CONTINENTE Como na Europa os intelectuais perderam preponderância e estávamos falando sobre a arquitetura de autor, para você, quem são os arquitetos que conseguem resgatar esse pensamento arquitetônico e desenvolver suas obras como elementos de discussão sobre a cidade?
ANDRÉ TAVARES Diria que esses arquitetos são os mais novos, os que agora tem 20 e poucos, 30 anos. Não é o Álvaro Siza, não é o Eduardo Souto de Moura, não é o Paulo Mendes da Rocha e definitivamente não é o Rem Koolhaas; esses já cumpriram o seu papel. Diria que esse culto do autor, construído nos anos 1990, particularmente nos anos 2000, e que teve sua utilidade, acabou por esvaziar um pouco a possibilidade de aparecerem novas vozes. Acho que o Oscar Niemeyer é o melhor exemplo de como a arquitetura do autor a certa altura passou a ser destrutiva. Um arquiteto talentosíssimo, excelente, mas cujas últimas obras são duvidáveis em muito níveis. Será que é correto e justo ignorar a contribuição que ele teve e que foi valiosíssima e incrível? Não, nunca, mas, a partir de determinada altura, se essa contribuição é para cilindrar a hipótese do novo, e de enfrentarmos os desafios que estão à nossa frente, muito obrigado, mas prefiro que não. Até porque é extremamente difícil para os arquitetos conseguirem construir hoje. É fundamental haver acesso à construção ou a possibilidade de construir e esse acesso é extremamente difícil, pelo menos na Europa. Ao fim de cinco ou 10 anos sem construir, chega-se a uma determinada idade sem ter obra para mostrar e depois já não dá, já são velhos, virão outros novos, com novas ideias. Souto de Moura, quando lhe encomendaram o metrô do Porto, tinha 44 anos de idade. Em termos de arquitetura, era um bebê. Agora, compete aos jovens arquitetos não serem cilindrados. Nem eu estou à espera, nem Souto de Moura nem Mendes da Rocha, de que os projetos caiam do céu. Portanto, os novos arquitetos cheguem à frente, lutem pelos seus espaços. Encontrem as estratégias mais corretas e tragam à praça pública as respostas que precisamente encontraram.

CONTINENTE Nessa linha, qual a importância de um evento como a Trienal de Lisboa?
ANDRÉ TAVARES A Trienal é estranha. É um evento que funciona em várias frentes. A primeira, que é paga, é o turismo, a promoção de Lisboa enquanto cidade. Ou seja, aquilo que estava há pouco a criticar permite também que outras coisas aconteçam. A Trienal consegue concentrar em Lisboa um conjunto de debates e pessoas e criar um modelo singular, extremamente intenso, em que vem gente de toda a Europa para trocar ideias e contatos sobre coisas que, em princípio, não são conhecidas aqui ou ali. É uma oportunidade singular de trazer outro conhecimento para a cidade. É diferente das bienais e trienais de arte, em que claramente há uma valorização de mercado. O artista que vai a uma bienal no ano 1 tem, depois, os preços de suas obras multiplicados, pois tanto os bancos como as galerias estão a financiar esse esquema de multiplicação. No caso da arquitetura, não funciona assim, porque o que os arquitetos procuram são encomendas e, muitas vezes, eles próprios têm que buscar projetos que pagam pouco ou, às vezes, até menos do que as despesas que eles possuem. Mas é uma oportunidade de trazer a público ideias relevantes sobre o impacto que os trabalhos deles podem ter e isso é vantajoso para a sociedade, que pode assistir e descobrir as coisas novas que estão a acontecer. É tão fundamental discutir arquitetura quanto discutir cinema ou política e tomar consciência de que os atos que praticamos são essencialmente atos culturais e, como tal, formam o mundo em que vivemos. 

 

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