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Tons da imagem e do som

Aproximação entre artes visuais e música se dá em projetos gráficos de discos, espetáculos, videoclipes e no trabalho de músicos que investem nas próprias criações visuais

TEXTO Débora Nascimento

01 de Outubro de 2016

Yoko e Lennon no protesto-performance 'Bed-in' contra a Guerra do Vietnã

Yoko e Lennon no protesto-performance 'Bed-in' contra a Guerra do Vietnã

Foto reprodução

[conteúdo da ed. 190 | outubro de 2016]

No mês passado, foi lançada uma nova teoria sobre a verdadeira identidade do grafiteiro mais famoso do mundo. Ao analisar o perfil geográfico das intervenções urbanas de Banksy, o jornalista britânico Craig Williams percebeu que algumas delas surgiram em diferentes cidades, antes ou depois dos shows do Massive Attack. O repórter presumiu, então, que o autor poderia ser Robert Del Naja, o 3D, um dos integrantes do grupo de música eletrônica. Segundo Williams, o músico, também grafiteiro, seria o líder de um coletivo que assinaria sob o pseudônimo. Reforçou ainda o fato de 3D ter aparecido no documentário Exit through the gift shop, concorrente ao Oscar de 2010 que ajudou a aumentar a fama do artista de rua. No filme, o enigmático artista, com voz alterada por vocoder, revela que aprendeu a grafitar com o amigo do Massive Attack.

No dia 3 de setembro deste ano, durante um concerto em Bristol, cidade onde a banda surgiu, Del Naja, que já foi preso três vezes por causa de grafitagem, evocou uma célebre frase de Mark Twain ao falar à plateia: “Os rumores sobre minha identidade secreta são claramente exagerados”. Evidente que, manter esse segredo faz parte do fascínio em torno de Banksy e é também uma forma de evitar o incômodo de um possível processo judicial, que viria rápido, assim que o nome fosse revelado. Sendo ou não o incógnito, Robert Del Naja é um dos exemplos da recorrente ligação de músicos com as artes plásticas.

A existência de uma relação entre as duas formas de arte era defendida, no início do século passado, por Paul Klee. Ele próprio desenhista, pintor, teórico, mestre da Bauhaus e representante dessa conexão: educado numa família de músicos, foi também violinista da Orquestra Municipal de Berna, na Suíça. “Cada vez mais estou convencido acerca dos paralelismos entre a música e a arte. (…) Sem dúvida, ambas são temporais, o que é fácil de demonstrar. Quando o ponto se torna movimento e linha, isso implica tempo.” Os estudos de Klee resultaram na Teoria da Forma, que trouxe para as artes visuais as noções de modulação, ritmo, psicodinâmica das cores, polifonia, compasso e harmonia.

Essa ligação entre as duas artes costuma acontecer de diversas formas, seja nos projetos gráficos de discos, nos espetáculos musicais, nos videoclipes ou, de maneira mais aproximada, no interesse de muitos cantores, compositores e instrumentistas em investirem nos seus próprios trabalhos visuais, como é o caso de Joni Mitchell, responsável pela maior parte das ilustrações de sua discografia. “Eu sou uma pintora, em primeiro lugar, e uma musicista, em segundo. Sempre me vejo como uma pintora que descarrilhou pelas circunstâncias. Quando estou ficando frustrada com a escrita de um poema, posso pegar os pincéis e começar a pintar. Se a pintura parece não estar indo a lugar algum, pego o violão”, afirmou, em 2000, a violonista canadense, uma das duas mulheres presentes no ranking da Rolling Stone dos 100 maiores guitarristas de todos os tempos (ela em 75º, Bonnie Raitt, em 89º lugar).

Naquele ano, Joni lançou Both sides now, aclamado álbum, cuja belíssima capa remeteu ao estilo realista de Edward Hopper. Se, na música, a compositora se situa entre o folk, o pop e o jazz, nas artes plásticas, também busca uma variedade de estilos. Em Turbulent Indigo (1994), por exemplo, emulou as fortes pinceladas de Van Gogh. A propósito, ela citou o gênio holandês, quando comparou os dois universos, o das artes plásticas e o da música – que recebe forte pressão de gravadoras, críticos e fãs. “Um pintor faz uma pintura. Ele tem a alegria de criá-la, põe sua arte em uma parede, e alguém vai comprá-la, e talvez outra, ou ninguém vai comprá-la. Ele senta-se em um loft em algum lugar até que morra. Mas ninguém nunca disse a Van Gogh, ‘Pinte Uma noite estrelada de novo, homem!’”

Fora as capas dos discos, Joni também costuma pintar paisagens e retratos. Os mais famosos são os de Graham Nash (músico e ex-namorado) e Bob Dylan, feitos em 1969. Naquele ano, ela e Dylan participaram da estreia do programa de Johnny Cash e estreitaram a amizade, que teria suas oscilações. Vez ou outra, a cantora chamaria o colega de plagiador. Para ela, uma das provas é Blood on the tracks (1975), que seria uma imitação de seu clássico Blue (1971). Aliás, o mergulho do autor de Tangled up in blue nas artes plásticas teria a ver com alguma influência de Joni?

DYLAN PINTOR
Talvez ela não tenha gostado do fato de que, dos músicos que pintam, Bob Dylan, por ser Bob Dylan, seja o mais badalado deles. Suas exposições são concorridas, divulgadas, comentadas, e, sim, também julgadas. O que alguns críticos questionam é que, se essas telas – vendidas a preços que variam entre US$ 2,5 mil e US$ 400 mil – fossem pintadas por artistas que não tivessem o peso de seu nome, receberiam a mesma atenção, despertariam algum interesse.

Duas mostras do artista – uma inspirada nas suas viagens ao Brasil, a outra à Ásia – causaram polêmica. Descritas como “diário de suas viagens”, “representações em primeira mão de pessoas, cenas de rua, arquitetura e paisagem”, foram pintadas a partir de fotografias tiradas por outras pessoas.

O crítico Michael H. Miller, no artigo The Joker to the thief: Gagosian goes electric with a show of paintings by Bob Dylan, publicado no New York Observer, apontou que uma das telas da série da Ásia, Opium, em que aparece uma mulher deitada no piso de um quarto, baseou-se numa imagem de 1915 do fotógrafo francês Léon Busy. Para ele, essa pintura, sem essa informação crucial, leva a crer que foi o próprio Dylan quem pintou a moça em uma de “suas viagens”.             

“Perversidade e uma possível falta de autenticidade de lado, Opium não é uma pintura ruim, mas se quer saber quanto do seu interesse recai sobre a pessoa que faz isso e não na qualidade do próprio trabalho. Não é apenas uma representação de uma jovem mulher drogada, é uma representação de uma jovem mulher drogada feita pelo homem que escreveu Like a rolling stone”, destaca Miller, em referência à canção de Dylan, cuja letra narra a derrocada de uma mulher que está largada à própria sorte.

O crítico AD Coleman, em seu site, foi mais longe: “Conhecendo as fotografias que serviram de suas fontes (tanto na série sobre o Brasil, quanto sobre a Ásia), eu diria que não há nenhuma possibilidade de Dylan simplesmente ter olhado as fotos e, em seguida, esboçado à mão livre nas telas. A replicação dos padrões é muito exata para isso. Ou as fotos foram projetadas nas telas, e feitas dessa forma, ou as imagens foram digitalizadas, ampliadas, impressas em telas, e depois pintadas”. E compara essas telas com o traço tosco de Bob Dylan para a capa do disco da The Band, Music from the big pink, de 1968, e de seu álbum Self portrait, de 1970. É possível que ele tenha evoluído como pintor desde então?

Coleman não considera as pinturas do artista “amadoras”, como vários outros críticos chegaram a apontar. “Dada a extraordinária variedade do que o mundo da arte hoje tolera e até aplaude em termos de habilidade e estilo de representação, o termo ‘amador’ tornou-se quase problemático. Dylan alcançou um nível profissional de competência a esse respeito. Ele certamente não pode competir com uma virtuosa como a pintora britânica Jenny Saville, com a impressionante Continuum, série de desenhos e pinturas exposta paralelamente na Gagosian (em 2011).”

A mais recente investida de Bob Dylan no mundo das artes plásticas é uma enorme escultura chamada Portal. O arco de ferro estará em exibição no National Casino Porto da MGM, em Maryland, a partir do final deste ano. O cantor exibiu, pela primeira vez, esculturas de ferro na galeria Halcyon, em Londres, em 2013. Mas, de acordo com um comunicado à imprensa, esse “é o primeiro trabalho permanente da arte de Dylan para um espaço público”.

Vários outros músicos, de diversos estilos musicais, também abraçaram o mundo das artes plásticas, Dee Dee Ramone, Josh Homme, Ron Wood, Patti Smith, Miles Davis, David Bowie, Paul McCartney e Kurt Cobain. Alguns deles conseguiram bom retorno financeiro, como Pete Doherty (Libertines) – cujo quadro mais famoso, Ladylike, traz, entre as tintas, o sangue de Amy Winehouse, e foi, em 2012, vendido por 35 mil euros – e Marilyn Manson, que começou a vender suas telas para traficantes e, a partir de 2002, passou a expor em galerias de arte na Alemanha, França e Áustria.

DESENHOS DE LENNON
John Lennon é um caso ímpar na relação entre música e artes plásticas, seu trabalho como artista visual ficou bem mais conhecido após sua morte em 1980. Ligado ao desenho desde a infância, chegando a estudar no Liverpool Art Institute entre 1957 e 1960, o beatle mergulhou nas artes plásticas nos últimos cinco anos de vida, período em que não lançou nenhum álbum. Depois de seu assassinato, o lançamento de produtos como o documentário Imagine, com o famoso autorretrato em rabiscos, a caixa John Lennon Anthology, repleta de desenhos lúdicos, e o livro Skywriting by word of mouth (1987), com ilustrações suas, ajudaram a projetar seu estilo como desenhista.

Para comprovar a força de seu nome, seus trabalhos estão expostos em 44 galerias nos Estados Unidos. A Pacific Edge Gallery, responsável pela divulgação de sua obra, já produziu mais de 100 exposições suas nos EUA e Canadá – a primeira delas ocorreu em 1988. Litografias foram doadas à coleção permanente do Museum of Modern Art (MoMA) e a coleção gráfica já viajou pelos Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Itália, Japão, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Hong Kong e Filipinas.

“Em sua vida, John Lennon, o artista, permaneceu um outsider no mundo das artes, em grande parte por sua fama como um beatle, e ele era visto pelo mundo como resultado disso. Pensando bem, isso foi uma sorte, no sentido de que permitiu aos seus trabalhos que mantivessem sua pureza, livres de comentários e ‘sugestões’ de críticos e marchands. Ele manteve seu estilo único, intocado por modismos. John fez seus desenhos com inspiração e rapidez, muito parecido com a forma que criava suas músicas. Era óbvio que havia uma forte, inata necessidade para que continuasse a criar esses trabalhos. Na maior parte do tempo, seus desenhos refletiam seu ânimo. Apesar de que, uma vez, quando John estava de mau humor, olhei sobre seu ombro e vi que estava desenhando algo muito engraçado. Outra vez, John estava alegre, fazendo um desenho sombrio. Apenas ele faria isso, pensei. Era como se estivesse usando o ato de desenhar para equilibrar e unir suas duas mentes – uma, sombria e pessimista, e a outra, alegre e otimista. Ao lado de seu violão, o papel e a caneta pareciam ter servido como ferramentas ideais para expressar as complexas emoções de John”, analisa sua viúva, a artista Yoko Ono, no site que mantém para divulgar a obra visual do marido e parceiro.

“Agora, não existe dificuldade em encontrar galerias para exibir seu trabalho de arte. Alguns de seus trabalhos se tornaram até parte das coleções de grandes museus. Imagino o que John teria pensado de tudo isso. Provavelmente teria aceitado, com seu típico humor irônico.”

Tão irônico quanto o leilão por U$ 1,3 milhão, em 2013, de um pedaço de um muro roubado. Apenas porque tinha um grafite de Banksy. 

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