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“A literatura precisa se libertar da teoria”

O escritor Alberto Mussa, que acaba de lançar uma coletânea de seus contos, fala sobre sua produção de textos curtos e dos seus romances, apontando mudanças na sua forma de narrar

TEXTO Rodrigo Casarin

01 de Novembro de 2016

O escritor Alberto Mussa

O escritor Alberto Mussa

foto tomas rangel/divulgação

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

“Coleção de todas as minhas narrativas curtas que podem ser lidas de maneira autônoma, livres de qualquer contexto”, que contém contos e “histórias que estão inseridas ou que são desmembráveis de três dos meus romances”, sendo que “todos os textos sofreram revisões mais ou menos profundas; e alguns chegaram a ser completamente reescritos, mudando até de título”. É assim que Alberto Mussa define Os contos completos, seu livro mais recente, lançado pela Record – as palavras acima foram retiradas da própria apresentação da obra.

Um dos autores mais originais do país, enaltecido por aliar ficção e historiografia de maneira primorosa, mostrando que uma mesma história pode ter uma infinidade de pontos de vista, sempre permeados pelas referências e influências culturais, não surpreende que a reunião de textos breves de Mussa seja mesmo diferente das coletâneas convencionais. Esse novo trabalho, elaborado a partir de textos antigos, norteou a conversa do escritor com a Continente.

CONTINENTE Você acaba de reescrever, reeditar ou ao menos reler as suas narrativas breves para publicar Os contos completos. Algumas perguntas parecem inevitáveis em qualquer entrevista com você, como as que tratam de mitologia ou história do Brasil, por exemplo – responder novamente a uma mesma pergunta é uma chance de reescrever as próprias opiniões, de modo semelhante ao que fez no novo livro?
ALBERTO MUSSA Algumas perguntas são recorrentes. Nunca fiz essa pesquisa, talvez o que eu dizia em 2004 para algumas questões se mantenham, mas para outras sempre tento dar uma forma nova à resposta. Falando do livro, nem todos os contos sofreram um processo de reescrita, foram mais os que estavam no Elegbara, que saiu em 1997, tem quase 20 anos.

CONTINENTE Por que mexer com mais afinco especificamente nos contos do Elegbara?
ALBERTO MUSSA Eu ainda era inexperiente, então tinha uns finais muito abertos, algumas frases muito sofisticadas, quase incompreensíveis. Alguns contos eu achava muito herméticos, aí tentei criar uma versão que fosse mais fechada para o entendimento do leitor. Cada vez mais acho que a narrativa precisa contar uma história, ser compreendida. Talvez, em 1997, eu ainda tivesse resquícios da formação acadêmica em Letras. Hoje, percebo que quanto mais afastada das teorias literárias, mais sincera é a literatura. O escritor que estuda teoria literária para escrever acaba dependente do conhecimento dos teóricos. O público geral, por sua vez – o médico, o mecânico, o jornalista –, que frequenta a livraria, não é especializado. Todo mundo lia até os anos 1980 e um dos fatores para a redução da leitura, creio, foi essa prevalência do pensamento acadêmico dentro do meio literário, que torna o texto muitas vezes incompreensível para boa parte das pessoas. A arte não tem nenhuma obrigação de refletir sobre ela, a arte é a arte, não precisa ser meta artística. Na academia, reflete-se sobre a arte. A literatura, hoje, para se recuperar, precisa se libertar da teoria. O trabalho do escritor precisa ser livre, espontâneo. Então, o Elegbara se ressentia um pouco dessa carga, agora tentei amenizar esse problema.

CONTINENTE Mas, se teve essa mudança de visão com relação a esses textos, ao revisitar outros, com certeza você se deparou com algumas surpresas positivas, não?
ALBERTO MUSSA Cada vez eu gosto mais dos meus romances do que dos meus contos, embora muita gente prefira o contrário. Gosto de alguns contos como Encruzilhada na Ladeira do Timbau, que é uma história que escrevo de um jeito um pouco diferente da maneira que geralmente faço. Ali tem uns ecos leves da linguagem de botequim, do morro… Isso surgiu espontaneamente, então nem quis mexer, não sei se conseguiria fazer outro parecido. Gosto também do De canibus questio, que é bem cerebral, escrevi para uma coletânea sobre a questão árabe-judaica. Era um universo completamente diferente para mim, tive que estudar bastante, aprendi coisas novas e gostei do resultado. Mas tem uns de que não gosto mesmo. Um de que até gostava muito quando escrevi, mas passei a odiar é o A primeira comunhão de Afonso Ribeiro. Ele tem uma interpretação de textos de 1500 que, depois que estudei um pouco melhor as culturas tupis, passei a discordar, então, passei a discordar também do que escrevi, havia outra interpretação para a questão canibal que abordo ali.

CONTINENTE Em seus escritos, aliás, tanto em contos quanto em romances como A primeira história do mundo, você lida com questões relacionadas aos índios de uma forma bastante interessante e respeitando as peculiaridades de cada tribo, povo ou etnia. Acha que normalmente falta esse tratamento estético apurado, não infantil ou acadêmico, quando os indígenas são retratados em nossa arte?
ALBERTO MUSSA Eu acho, sim. É muito interessante a evolução da literatura brasileira e a relação com as culturas indígenas e negras. No século XIX, o que estava na moda eram as culturas indígenas, que tinham uma aceitação melhor do que as culturas africanas; essas praticamente não existiam na literatura. Os negros eram tratados quase como animais, os índios, não. Já no século XX, com o desenvolvimento da cidade, como o índio ficou afastado e chegou até a ser considerado um obstáculo para o desenvolvimento do Brasil durante a ditadura, um representante do atraso completo, aliás, ideia que domina até hoje, o negro passou a ganhar mais espaço e respeito, ainda que não esteja no patamar ideal. Então, as posições se inverteram. Atualmente, há um completo desinteresse com relação ao índio. Uma vez, conversando com uma pessoa inteligentíssima, gente da elite cultural brasileira, que não revelarei o nome, estava comentando sobre essas questões e ele falou “qual o interesse que pode haver na cultura indígena?”. Isso mostra o desconhecimento completo, como se as histórias fossem banais, como se as culturas indígenas fossem todas iguais e uma noção de que eles não pertencem ao Brasil. Esse é um problema seríssimo de rejeição do índio na cultura brasileira. O escritor indígena, por exemplo, só tem aceitação se escrever para criança. E uma imagem que fez muito mal é a do Macunaíma, de Mário de Andrade. Acho um livro bobo, infantil, uma reprodução de estereótipos que não prosperou literariamente. A imagem do índio ali é essa, um pastiche, uma grande caricatura. Em Macunaíma, em vez de se aprofundar na questão do caráter do brasileiro – o que poderia ter feito com propriedade, porque o trabalho de pesquisa foi respeitável, bebendo em fontes originais para colher os mitos –, Mário se limitou em fazer uma interpretação estereotipada.

CONTINENTE Em Decompondo uma biblioteca, você fala que a descoberta da literatura africana foi uma das mais importantes da sua vida. Por quê? É uma literatura que ainda precisa ser descoberta de fato pelos brasileiros?
ALBERTO MUSSA Ali, havia um universo inteiro para conhecer. Comecei a ler os africanos no final dos anos 1970, quando entrei na faculdade, e vi um universo espetacular. Uma linhagem da literatura africana é a das guerras de independência, da presença colonial, o romance social no sentido clássico, tendência forte nos países lusófonos, principalmente. Na África de língua inglesa, por outro lado, há uma literatura que aborda a África mais tradicional, com autores que nasceram em determinadas etnias, foram estudar, aprenderam a língua do colonizador e a utilizaram para escrever sobre o confronto dessas duas formas civilizatórias ou apresentar a mitologia do seu povo, registrar o tradicional, em um romance moderno. Nunca tinha pensado nisso antes, mas pode ser que ali tenha ficado latente a influência para o que eu vim fazer depois. Nessa época, eu nem pensava em ser escritor, estava estudando Matemática ainda. Deparar-se com um tipo de universo totalmente diferente do seu é algo que sempre busquei. Poder entrar em um mundo que fisicamente não se pode viver é uma experiência que só o romance pode dar. Coisas que podem soar naturais para algumas culturas, podem não ser para outras. Há culturas que aceitam a tortura e a pena de morte, mas não toleram a cadeia, o encarceramento, por exemplo, do mesmo jeito que rejeitamos o canibalismo, mas outras aceitam ou aceitavam.

CONTINENTE No mesmo texto, você define que contistas lidam com um gênero “mais intelectual” do que os romancistas. Por quê? A versão mais intelectual de você mesmo é o Mussa contista?
ALBERTO MUSSA O Mussa contista é o Mussa anterior a essa fase. Duas professoras que conversaram comigo não aceitaram que eu divida minha própria obra em fases, mas eu o faço, não sei se corretamente, mas de acordo com o que eu penso da escrita. O enigma de Qaf e O movimento pendular foram muito intelectuais, com estrutura toda matemática, pensada e dosada para cumprir finalidade preestabelecidas. São romances, mas compostos por contos, se você observar a estrutura interna deles. Ali está a ideia da matemática, da biblioteca do (Jorge Luis) Borges. Quando eu dei um intervalo entre os romances O movimento pendular (2006) e O senhor do lado esquerdo (2011), só fiquei fazendo alguns contos sob encomenda e trabalhei em O meu destino é ser onça. Então, quando fui escrever O senhor do lado esquerdo, tinha me afastado do formato de O movimento pendular. Aí voltei a uma forma que não deixa de ter um planejamento, mas consegui, principalmente nos meus dois últimos livros, ser mais espontâneo. Não precisava ter número certo de capítulos ou divisões com teoremas, esses esquemas que eram uma âncora para conseguir escrever. Como esses últimos livros são romances um pouco mais livres, e acho que menos intelectuais, também me senti mais livre

O conto exige mesmo do autor. Do romance, pela própria extensão, é sempre mais fácil de se extrair algo. Um conto ruim, por sua vez, não existe, ele precisa ser bom, independentemente da fórmula. Mesmo que não tenha o impacto do (Guy de) Maupassant ou o nocaute do (Julio) Cortázar, ele precisa ser bom. No conto, toda frase e informação servem pra narrativa, já no romance pode ter coisas nem tão interessantes assim. Então, o conto é mais sofisticado. Agora, uma coisa impressionante é que acabei de lançar Os contos completos, mas os dois romances que tinha publicado antes continuam vendendo mais do que este. Perguntei para dois livreiros amigos as razões disso e eles disseram que as pessoas têm resistência a comprar livros de contos. É estranho, porque é um gênero que se adequa à realidade das pessoas de hoje, já que textos menores teoricamente podem ser lidos mais rapidamente. Além disso, talvez o conto seja o único gênero realmente universal, já que o romance é algo ocidental, europeu, mas os contos aparecem em tradições do mundo inteiro, inclusive na literatura oral.

CONTINENTE Para encerrar, Mussa, uma curiosidade: com toda a sua relação com os livros, como lida com a leitura digital?
ALBERTO MUSSA Não lido. Tenho uma resistência muito grande, porque eu ando com meus livros. Se fico na fila do banco, leio uma página. Vou tomar café da manhã, levo meu livro. E o digital não tem o conforto que a tecnologia do livro me oferece, de anotar, voltar numa marcação, interagir com o objeto. A vantagem do livro digital é o armazenamento, sem dúvida, mas o livro físico é muito interativo. O livro físico é muito moderno.

 

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