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Um estranho universo

Em "Cravo na carne – Fama e fome", Alberto de Oliveira e Alberto Camarero resgatam a trajetória das “bailarinas exóticas”, mulheres que se destacaram em meados do século passado por jejuar em

TEXTO Bolívar Torres

01 de Dezembro de 2016

Na década de 1950, o faquirismo era uma prática que atraia um público interessado em ver mulheres que desafiavam a morte numa prova de jejum

Na década de 1950, o faquirismo era uma prática que atraia um público interessado em ver mulheres que desafiavam a morte numa prova de jejum

Ilustração Hallina Beltrão

[conteúdo da ed. 192 | dezembro 2016]

A Galeria Ritz se parece hoje com a maioria dos centros comerciais de Copacabana. Pequenas lojas, brechós, um futuro restaurante a quilo com preços modestos… Enquanto cabeleireiros abordam os visitantes oferecendo cortes e lavagens, alguns comerciantes colocam suas cadeiras de praia em frente às vitrines e jogam conversa fora, em clima de informalidade. Nenhum deles, nem os mais velhos, sabe que a estreita galeria em forma de T, com suas paredes emboloradas e sua decadência típica do bairro, foi outrora um dos principais palcos de uma arte perdida: o faquirismo feminino. 

Foi lá que, no final dos anos 1950, período de ouro da atividade, a “bailarina exótica” e faquiresa Georgina Pires Sampaio – conhecida pelo nome artístico Suzy King – realizou a mais polêmica de suas provas. Trajada num biquíni sumário, encerrou-se em uma urna de vidro repleta de cobras para um jejum que deveria durar 110 dias, recorde mundial da categoria. O episódio causou comoção pública, rendeu inúmeras manchetes nos jornais, mas terminou em polêmica e confusão, sem que a faquiresa conseguisse atingir a marca.

Suzy não é a única expoente da categoria, que, apesar de ter influenciado a cultura das celebridades no Brasil nos anos seguintes, desapareceu a partir de 1960. Nomes como Verinha, Rossana e Marciana – que, no passado, enfeitiçaram o público com sua beleza e mistério e desafiaram normas e convenções – foram até aqui desprezados pela história cultural do país. Só agora, mais de cinco décadas depois, o estranho universo do faquirismo volta a ser dissecado na obra Cravo na carne – Fama e fome, dos pesquisadores Alberto de Oliveira e Alberto Camarero, que conta a trajetória de 11 mulheres que ganharam notoriedade por jejuar em público na primeira metade do século passado.

“Até a publicação do livro, a existência de mulheres que se dedicavam ao faquirismo no Brasil estava esquecida”, explica Alberto Camarero. “Estivemos na maior parte dos lugares onde aconteceram provas de jejum realizadas por faquiresas no passado, mas encontramos apenas algumas pessoas da época que tinham a vaga lembrança de terem visto uma faquiresa. Na Galeria Ritz, por exemplo, não encontramos o menor vestígio ou lembrança da tumultuada passagem de Suzy King por lá.”

Mesmo tendo caído em um ostracismo geral, o faquirismo permanecia vivo na memória de Camarero. Ele era criança quando, em 1958, presenciou, por trás de uma vitrine, a performance de uma faquiresa chamada Verinha. A imagem da mulher corajosa, que “desafiava a morte em uma prova de jejum e suplício” (como dizia um sensacionalista anúncio no local), marcou-o para sempre. Já adulto, intrigado com a falta de informação sobre o assunto, passou a investigar pistas de Verinha e, depois, sobre o faquirismo de forma geral.

Pesquisando em jornais e revistas da época, mas também registros e documentos em arquivos históricos, bibliotecas e cartórios, além de localizados alguns raros sobreviventes que conviveram com algumas das faquiresas, Camarero e o historiador Alberto de Oliveira realizaram um verdadeiro trabalho de detetives. As trajetórias muitas vezes clandestinas de suas personagens aumentaram as dificuldades. Uma delas trocou de identidade e morreu sem que isso jamais fosse descoberto em vida; outra, condenada à prisão pelo sequestro de três irmãos, fugiu e nunca foi encontrada pela polícia, embora tenha continuado raptando outras crianças (a pesquisa de Oliveira e Camarero permitiu, inclusive, que uma das vítimas desaparecidas reencontrasse, décadas depois, sua mãe biológica, como mostrou uma reportagem no Fantástico). 

A dupla monta uma cronologia do faquirismo do Brasil, desde as pioneiras da década de 1920 até a – segundo eles – última grande expoente da categoria, Suzy King. Todas elas compartilham histórias de vida erráticas e tumultuadas, quase sempre com fim trágico. Conflitos violentos com os homens são regra, sejam eles maridos, empresários, fãs ou policiais. A francesa, radicada no Rio, Rose Rogé foi atacada sexualmente por um padre – e depois desmoralizada e arruinada ao denunciá-lo. Yvone foi assassinada pelo marido, o faquir e mentor Lookan. Rossana se suicidou por uma desilusão amorosa e Suzy King acabou espancada duas vezes no mesmo dia: primeiro, ao ser denunciada por trapacear em seu jejum; depois, na delegacia onde tentou… prestar queixa pela agressão. No fim da vida, destruída com o desaparecimento de seu filho esquizofrênico, faleceu sozinha em um trailer estacionado em uma área de prostituição nos Estados Unidos.

MARGINAIS
O faquirismo não era exatamente uma vocação. Suas representantes abraçavam a atividade num ato de desespero, quando nada mais havia em seu horizonte. Enterradas em urnas debaixo da terra ou expostas em público, encerradas na companhia de serpentes, superando os limites da fome, suas proezas as colocavam facilmente nas manchetes de jornais sensacionalistas. Assumindo-se como faquiresas, conseguiam se reinventar depois de experiências fracassadas e começar do zero sob o disfarce de um personagem misterioso.

Mesmo que hoje pareça insólito, o faquirismo foi uma atividade realmente levada a sério até o final dos anos 1950, principalmente no que se referia aos recordes mundiais de jejum. Quebrando tabus e contradizendo o estigma do “sexo frágil”, as mulheres que tentaram vencer nessa área fizeram mais do que buscar holofotes: também contribuíram para a luta feminista em seu tempo.

“As primeiras faquiresas que se apresentaram no Brasil foram aclamadas pela imprensa e pelo público por, na visão da época, estarem conquistando um espaço importante dominado por homens”, observa Alberto de Oliveira. “A coragem de uma mulher ao tornar-se faquiresa em uma época em que a escolha por profissões como a de atriz ou cantora já era vista com grande preconceito, contribuía, claro, ainda que de forma simbólica, à independência da classe feminina.”

Especialmente a partir dos anos 1950, quando os trajes de suas representantes começaram a diminuir e o universo do faquirismo apropriou-se de elementos da cultura pop e ganhou contornos erótico-marginais, a atividade parece ter antecipado a contracultura, numa época em que não se falava disso no país. Essa é a principal sacada de Oliveira e Camarero, que descobriram na figura de suas personagens as verdadeiras pioneiras do underground nacional. Num contexto bem brasileiro, eram praticamente superstars da Factory avant la lettre.

“Os faquires e faquiresas apresentavam comportamentos marginais e desafiadores até mesmo dentro dos meios artísticos e circenses de então”, lembra Oliveira. “Envolvidos por elementos da cultura mística oriental, que se tornaria moda anos mais tarde, levavam uma vida cigana e sem limites, extrapolando para fora do palco a excentricidade e a tragédia de suas exibições artísticas. Foram os primeiros artistas realmente malditos do Brasil, no melhor sentido. Ao mesmo tempo, tinham grande apelo popular. A forma como a maior parte deles vivia, acima do certo e do errado, acima da lei, acima dos limites físicos e divinos, não se parece com nada contemporâneo a eles.”

MUSA-MOR
De todas essas pioneiras, nenhuma delas foi mais radical do que Suzy King. Vedete e cantora fracassada, ganhou holofotes flertando com a infâmia. Uma subcelebridade que se alimentava do factoide pelo factoide, muito antes que existissem reality shows e chamadas online da revista Ego. Intervenções urbanas em trajes sumários e escândalos em jornais populares fizeram dela a musa-mor de uma certa era de ouro do faquirismo, da qual sua figura é uma espécie de símbolo e definição. 

“Foi a faquiresa que mais ganhou as páginas dos jornais na época em que o faquirismo, não apenas por suas exibições artísticas e provas de jejum, mas, principalmente, pelos sucessivos escândalos nos quais se envolveu, como em 1959, quando cavalgou seminua na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, para divulgar uma prova de faquirismo que iniciaria em breve”, explica Camarero. “Embora cada uma conservasse suas peculiaridades, a trajetória de Suzy King é a que representa melhor o que é uma vida de faquiresa, com todos os elementos sensuais, transgressores e trágicos que envolvem esse universo.”

Os autores decidiram terminar o livro com Suzy porque seu jejum na Galeria Ritz foi a última prova de uma faquiresa que ganhou grande destaque nos jornais brasileiros. Depois disso, até surgiram notinhas na imprensa aqui e ali, e algumas apresentações dispersas por todo o Brasil, mas nada que se comparasse à comoção das exibições de faquirismo realizadas entre 1955 e 1959. 

“Houve desmoralização do faquirismo por conta dos escândalos de fraudes no jejum, mas o fato é que o olhar do público também mudou”, aponta Oliveira. “As pessoas ficaram menos crédulas. Além disso, a televisão ganhou força a partir dos anos 1960 e o circo, o teatro de revista, o cinema, o rádio, várias formas de arte, perderam bastante o espaço que tinham junto ao público. Havia também uma onda de modernidade na época, uma mudança de mentalidade, e talvez não coubesse mais um espetáculo como o das faquiresas no novo mundo que se formava. Com o passar do tempo, conforme os faquires e faquiresas foram morrendo, a arte deles acabou se perdendo.” 

 

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