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Sobre labirintos, trevas e portas

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Janeiro de 2017

"Quando desejamos conhecer algo, nós o trazemos para a luz. A luz da ciência, a luz da razão. Luz e escuridão se alteram"

ilustração Maria Luísa Falcão

[conteúdo da ed. 193 | janeiro 2017] 

O escritor
Pedro Salgueiro me encaminhou trecho de uma carta de Rosa de Luxemburgo, escrita da prisão de Breslau, numa noite natalina de 1917. Ela diz: No escuro, sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida, sob os passos lentos e pesados da sentinela, canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir. O texto me deixou inquieto porque veio sem qualquer apresentação ou justificativa, aparentemente por nenhum motivo, com um pequeno título grifado: noite.

É possível tatear no escuro à procura de uma saída, mesmo que as portas pareçam fechadas? Não é difícil reconhecer que o escuro existe, basta ligar a televisão ou o rádio, ler os jornais e ir ao cinema. Ou olhar pela janela do carro. Você não precisa freqüentar como paciente a emergência de um hospital público, ou como réu uma delegacia de polícia. Não vá tão longe. Também não se aventure pelas veredas de uma favela, onde igualmente poderá se extraviar. O labirinto não passa de um emaranhado de caminhos, dos quais alguns não têm saída, e constituem impasses. No meio dele é necessário descobrir a rota que nos levará ao centro, embora se trate de um emaranhado de caminhos, que retardam a chegada do viajante ao centro que deseja atingir.

As trevas sempre nos ameaçaram. Plínio, O Velho, até escreveu que encarar a luz é para os mortais a coisa mais aprazível e o que está sob a terra é nada. Jaz escondido, pertence ao mundo da ignorância. Quando desejamos conhecer algo, nós o trazemos para a luz. A luz da ciência, a luz do conhecimento, a luz da razão. Luz e escuridão se alternam. Uma época sombria é seguida de uma época luminosa, pura, regenerada. Mircea Eliade escreveu que se pode valorizar as eras sombrias, épocas de grande decadência e de decomposição: elas adquirem uma significação supra-histórica, embora seja precisamente em tais momentos que a história se realiza de forma mais plena, porque os equilíbrios aí se tornam precários, as condições humanas apresentam uma variedade infinita, as liberdades são encorajadas pela deterioração de todas as leis e de todos o padrões arcaicos.

Prefiro a luz, não necessariamente a luz da razão. O logos, este saber dos gregos confundido com ciência, explica o que a mitologia deixou de explicar, mas não preenche todo o saber. Permanece o espaço da não razão, que nem sempre é treva.

A ciência não nos colocou no lugar mais calmo e justo, isso já sabemos. O medo de que algo inevitável está para acontecer atormenta nosso sono. Do mesmo jeito que atormentava o dos povos antigos, ao pressentirem o exército inimigo sitiando suas muralhas. Qual a diferença entre as bolas de fogo arremessadas das máquinas de guerra medievais e o fogo de uma bomba atômica? Ou o terror de um meteorito se aproximando da Terra? A morte está no fim de tudo, não importa a intensidade da explosão.

No filme Sonhos, do japonês Akira Kurosawa, alguns soldados se perdem na tempestade de neve quando procuram um forte. Amarram-se uns aos outros para não se extraviarem. Cuidam em não dormir. Mas a fadiga e o sono são irresistíveis.  O comandante deita e sonha com a morte. Ela vem buscá-lo, sedutora e bela. O comandante acorda e grita para seus homens. Tateiam há dias, dão voltas sem nunca acharem o fortim que os acolherá, salvando suas vidas. Por fim, escutam um toque de corneta bem próximo. Sempre estiveram há alguns passos da salvação, mas, no escuro, nada divisavam.

Nunca existirá uma porta, afirmou Jorge Luis Borges ao escrever sobre labirintos. Pior que afirmar não existirem portas é dizer que estamos sós, ligados numa rede de comunicação, que não nos coloca em contato verdadeiro com ninguém. Dura metáfora. Dura muralha de pedra.

Como responder à pergunta dos personagens de Tchekhov – o que fazer? – se a resposta é sempre: não sei. Convencer-se de que o mais importante é transformar a vida e que o resto é inútil. Mas, transformar que vidas? Todas, conclui, Tchekhov: ... na bagunça da vida cotidiana, na confusão de toda a miuçalha de que são tecidas as relações humanas, o forte impedir o fraco de viver já não é uma lei, mas uma contradição, pois tanto o forte como o fraco tombam vítimas de suas relações mútuas, submetendo-se involuntariamente a alguma força diretriz desconhecida, situada fora da vida, estranha ao homem.

Dos fios de uma Rosa de Luxemburgo prisioneira, me aparece a crença de que o segredo não é outro senão a própria vida; de que a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo e que basta saber perscrutá-la. 

 

 

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