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Triste Europa

Em entrevista exclusiva, o cientista político, escritor e artista francês Camille de Toledo reflete sobre o Velho Continente, suas memórias e seus ideais no mundo contemporâneo

TEXTO Olívia Mindêlo

01 de Fevereiro de 2017

Segundo de Tolledo,

Segundo de Tolledo, "o projeto europeu tem, desde 1945, uma razão para ser melancólico. Ele se voltou para o passado que ele não quer reproduzir."

Arte Mauricio Planel

[conteúdo na íntegra da ed. 194 | fevereiro 2017] 

No início deste ano, a atriz Meryl Streep proferiu um desses discursos de síntese de nossa era – ou talvez de todas elas. Em um dos trechos, dizia: “Quem somos nós? O que é Hollywood? É um grupo de gente que vem de todas as partes. Eu nasci, cresci e me eduquei em escolas públicas de Nova Jersey. Viola (Davis) nasceu numa cabana da Carolina do Sul e cresceu em Central Falls, Long Island. (…) Amy Adams nasceu na Itália e Natalie Portman, em Jerusalém. Onde estão suas certidões de nascimento? (…)  Hollywood está cheia de estrangeiros e forasteiros, e se querem expulsar todos nós, vão ficar sem nada para ver além de futebol americano e artes marciais mistas, que NÃO são artes (…)”. A ocasião da fala deu-se durante a entrega do 74º Globo de Ouro em Los Angeles, no qual a artista recebeu homenagem pela carreira, mas não faria mal se tivesse acontecido nas ruas de Nova York, na posse de Trump ou em um evento em Paris, tendo entre os convidados o político de extrema-direita Jean-Marie Le Pen. E se fosse na sede da União Europeia, em Bruxelas?

O francês Camille de Toledo, nascido de família turco-judaica-espanhola, e atualmente radicado em Berlim, não acharia uma má ideia. Historiador, cientista político, escritor, artista e, principalmente, um dos principais fomentadores do pensamento crítico da Europa contemporânea, ele é do time dos que defendem o que parece óbvio: somos o resultado de cruzamentos culturais, étnicos, religiosos, sociais,  etc., e devemos nossa riqueza a isso. Segundo Camille, é preciso separar a “Europa criadora”, aquela dos refugiados, imigrantes, dos artistas, que “sabe que não há nada de ‘limpo’ na Europa, que não existe ‘essência europeia’”, daquela “instituída no Tratado de Roma, em 1957, e que se chama União Europeia: uma entidade político-tecnocrata que quis sair da história, proibir a guerra, a violência, e que se encontra, hoje, distorcida por um aumento de nacionalismos, de egoísmos de identidade”.

Aos 40 anos, Camille já publicou diversos livros, sendo um dos mais conhecidos Le hêtre et le bouleau: essai sur la tristesse européenne (A faia e a bétula: ensaio sobre a tristeza europeia,Seuil, 2009). Também realizou dois projetos expositivos de arte contemporânea. Sua obra foi traduzida na Espanha, Itália, Alemanha, nos Estados Unidos, mas continua inédita no Brasil. A entrevista a seguir, concedida por e-mail, com exclusividade à Continente, é a primeira com ele publicada em nosso país. O que lemos a seguir é uma aula profunda sobre a Europa – e o mundo – nos dias atuais.

CONTINENTE Qual o diagnóstico que poderia fazer da Europa, atualmente, um homem de origem judaico-espanhola, morando em Berlim?
CAMILLE DE TOLEDO Você diz que eu sou um “homem”. Eu não estou tão certo disso assim. Me acontece com mais frequência de eu pensar que sou uma árvore, uma planta, ou uma mulher, ou qualquer coisa que esteja a meio caminho entre várias espécies, várias línguas, várias culturas. E essa entidade estranha que sou lhe dirá que é preciso sempre – quando se fala da coisa chamada “Europa” – distinguir dois mundos.

Há a Europa dos poetas, dos pensadores, dos escritores, dos artistas, que é a que Jorge Luis Borges e (Stefan) Zweig compartilhavam, uma Europa que sempre repousou sobre o tríptico da migração, da tradução e da hibridação. Essa “Europa” é a que atravessa o tempo, que é compartilhada e que foi usada pelos poderes e pelas nações para dominar e conquistar o mundo asiático, o africano, e o sul-americano, mas que permanece sempre, de fato, como um contraponto, uma Europa criadora, menor, de exilados e de vencidos – aquela que eu chamo igualmente de Europa benjaminiana –, que deve sua riqueza a cruzamentos entre o mundo judeu, o muçulmano, e o cristão, entre os tempos pagãos e os tempos monoteístas. Essa Europa sabe que não há nada de “limpo” na Europa, que não existe “essência europeia”. Se observarmos a circulação de ideias, de textos que vão formar a “modernidade”, cairemos sempre no que eu chamo de “experiência vertiginosa”, a ideia de que não há origem, de que tudo nasce da mistura, do cruzamento, da superposição de vários scripts.

Desse ponto de vista, o que ocorre atualmente é um enésimo desmoronamento, uma enésima regressão da Europa à sua obsessão essencialista. Falando, então, da outra “Europa”, que é a que conhecemos desde o Tratado de Roma, em 1957, e que se chama União Europeia: uma entidade político-tecnocrata que quis sair da história, proibir a guerra, a violência, e que se encontra, hoje, pirateada, distorcida por um aumento de nacionalismos, de egoísmos de identidade. Essa Europa que visa a estabelecer um “mercado puro e perfeito” está cada vez mais derrotada e, logo, desconstruída – pelas crises de identidade da Hungria à França, à Dinamarca, à Polônia.

É importante, o quanto antes, separar as duas Europas, para não se desesperar, para poder se apoiar sobre um alicerce de criações, de traduções, de hibridações, resistindo à definição essencialista, identitária, que ganha a União Europeia como havia ganhado, outrora, no século XV, a Espanha dos reis católicos e da Reconquista. É preciso, dessa forma, sem voltar a Toledo, aos significantes da tradução de Toledo, de Benjamin, lutar contra os retornos, as regressões do espaço europeu.

A tristeza europeia

CONTINENTE Você diria que há, ainda, na Europa, um fantasma do pensamento do século XX, um pensamento velho? Nós poderíamos dizer que a “nova” Europa é, na realidade, a “velha” Europa? Por quê?
CAMILLE DE TOLEDO A constituição não escrita, implícita, da União Europeia, é a memória. A expressão “Isto nunca mais”, nascida das duas guerras mundiais, fundou a razão da construção europeia. Todas as gerações de líderes políticos, de (Jean) Monnet e (Robert) Shuman à (François) Mitterrand e (Helmut) Kohl, se referiram a essa lógica memorial. Então, é lógico que a União Europeia, sob o plano ético-político, se constitui um projeto que depende da reativação de suas “memórias”. Estudei essa dimensão memorial da Europa em um ensaio, Le hêtre et le bouleau: essai sur la tristesse européenne (A faia e a bétula: ensaio sobre a tristeza europeia, sem tradução para o português), publicado em 2009, pelas edições Seuil. O que é preciso compreender é que essa constituição não escrita só pode recorrer à “razão memorial” desdobrando-se no tempo e no espaço das políticas da memória. O que isso significa é que o projeto europeu tem, desde 1945, uma razão para ser melancólico. De fato, ele se voltou para o passado, para um passado que ele não quer reproduzir. Disso resulta o que eu chamo de uma “inércia memorial”, quer dizer, a maneira como a experiência do século XX se prolonga, é prolongada e conservada além do tempo do esquecimento. É nesse sentido que podemos compreender e apreender, onde quer que seja, a identificação de “lugares de memória”. É uma especificidade do espaço europeu resultante do século XX.

Por conta disso, se pensarmos em muitos grupos políticos, veremos claramente que nem todos se referem a um passado proscrito. Ao contrário, eles se referem, com mais frequência, a passados revolucionários que fundem o futuro, a independência ou a democracia; acontecimentos em que se “mata o tirano” para estabelecer um regime de liberdade. Na diferenciação desses mitos do que está por vir, a construção europeia possui apenas um mito da destruição, que a condena a se conjugar no passado. Eis porque podemos compreender que haja tantas “memórias” na Europa, e que ela não consiga mais pensar fortemente, participar do que está por vir, ou seja, do futuro. Está aí sua fonte espectral, a presença nela de tantos fantasmas, a obsessão por sepulturas coletivas, por mortes. Esta não é uma “velha Europa”, é justo uma persistência da experiência do século XX que impede a Europa de ser contemporânea de seu tempo, um tempo que é difuso e complexo, descentrado e acumulativo, um tempo de mundos múltiplos que coabitam no presente e brigam, precisamente, pelo ritmo, pelo sentido do que está por vir.

CONTINENTE Em seu ensaio sobre a tristeza europeia (Le hêtre et le bouleau), você trabalha com metáforas a partir das espécies de árvores – faia, bétula e banian. Não sei se pela dificuldade de tradução do francês, ou devido a essas árvores estarem longe da realidade geográfica e cultural do Brasil, mas me parece um pouco difícil compreender tais metáforas. Você poderia nos explicar qual o significado do seu pensamento, no que concerne a essas árvores, ao definir a tristeza europeia?
CAMILLE DE TOLEDO Em A faia e a bétula (Le hêtre et le bouleau), meu ensaio sobre “a tristeza europeia”, eu modelei três “idades para a memória” a partir de três “árvores”. A “idade dos testemunhos” – de Primo Levi à Imre Kertesz – se materializa pela bétula, que é a árvore dos campos de concentração, das florestas da Polônia aos gulags da Rússia (sistema penal da ex-URSS para presos políticos, principalmente). A bétula é a árvore desse Leste Europeu, a árvore silenciosa que as testemunhas dos crimes do século XX viram, descreveram. Trata-se, neste caso, de pensar uma memória direta, dos que atravessaram a deportação.

A segunda idade da memória, dos seres assombrados, a geração que vem depois dessa dos testemunhos, é h-abitada, h-assombrada  pela história da deportação e do extermínio. A árvore que me faz pensar nesse estado de assombro é a faia (do fracês, le hêtre, justamente com “h”, letra à qual Camille associa as palavras habité, hanté – habitada, assombrada), uma árvore muito presente nas florestas europeias, que tendem a cobrir, a sufocar as outras espécies. É isso que pensa esse tempo das “faias”, uma idade em que a memória acaba por impedir o futuro e o presente, cobrindo o tempo. Corresponde a esse momento em que os diferentes estados-nações da Europa constroem “lugares de memória” para não se esquecerem do século XX.

A terceira idade da memória, na Europa, é a “idade das memórias” pós-coloniais, que se chocam com o alicerce memorial do século XX europeu. Eu peguei a imagem da banian, uma árvore que é encontrada na Índia cujos galhos se prolongam na terra para se tornarem raízes. Essas memórias pós-coloniais são, de fato, as da população migrante, desalojada, cuja existência linguística e cultural se situa entre os scripts europeus (coloniais) e os scripts de seus países de origem, que têm que negociar permanentemente entre várias heranças. Eu falei dessas três árvores, a bétula (“idade das testemunhas”), a faia (“idade do assombro”) e o banian (“idade das memórias pós-coloniais, das migrações”) para dar uma forma àquilo que, na Europa, disputa as maneiras de habitar o presente.

Brexit, Grécia, refugiados

CONTINENTE Nos últimos tempos, temos assistido a uma série de acontecimentos sintomáticos na Europa: o Brexit, a crise na Grécia, o problema dos refugiados, as políticas de fronteira, os ataques terroristas etc. Poderíamos dizer que esses são sintomas de uma mesma doença? Qual é a origem desses problemas?
CAMILLE DE TOLEDO Não existe uma origem comum para todas essas crises que você mencionou, mas há uma fraqueza estrutural do projeto europeu que está ligada à falta de um espaço transnacional compartilhado, aceito. A Europa, além da memória do século XX, nunca encontrou um alicerce comum, uma “poética” que permitisse a conjunção das diferentes nacionalidades. Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, a extensão da comunidade europeia, ao contrário disso, acentuou as forças centrífugas. A “cidadania europeia” é unicamente um compromisso racional das sociedades nacionais, no mínimo, que aceitam alinhar seus mercados interiores na esperança de criar uma zona de prosperidade. Contudo, a prosperidade prometida pelo mercado único e pela moeda – o euro – nunca veio. Se bem que as promessas da União Europeia não foram realizadas. Na falta de um desejo de fazer comunidade para além das nações, a Europa se expõe, então, a cada crise. Cada dificuldade – econômica, internacional, social – coloca à prova um alicerce comum que faz falta. E, a cada vez, é isso que se passa. Você acaba tendo uma estrutura institucional que não tem legitimidade democrática suficiente para resistir às provações.

O Brexit (abreviação que significa a saída – British exit – do Reino Unido da União Europeia) é alvo de uma dupla crítica: de direita – a retomada da soberania do Reino Unido – e de esquerda – o déficit democrático da Europa e de seus políticos neoliberais. A crise grega, por sua vez, provou que nenhuma alternativa de esquerda – um contramodelo de esquerda – seria possível no quadro da moeda única. O governo de (Aléxis) Tsípras teve de se curvar à lógica da dívida e aplicar os programas de liberalização que lhe foram impostos por Bruxelas.

Por fim, o uso que é feito da crise dos refugiados pelas diferentes elites políticas, sobretudo dos partidos nacionalistas e populistas, conduziu a febres xenófobas e islamofóbicas em toda a Europa. Vemos, então, que, a cada vez que algo acontece, os eurófilos não têm mais argumento. Eles dizem que a Europa é a melhor maneira de defender a economia europeia. Mas, de fato, a prosperidade não funcionou e os grandes tratados comerciais internacionais tendem a favorecer a economia norte-americana. Eles dizem que a Europa é a melhor maneira de acolher, em vários países, a onda de refugiados, mas, na verdade, eles não conseguem impor as quotas (de imigrantes). Eles dizem que (o Acordo de) Schengen é a melhor maneira de defender as fronteiras, mas, na verdade, eles fazem o jogo dos nacionalistas que não pedem outra coisa senão, justamente, que reconstruam as fronteiras e que se proíba a livre circulação dos cidadãos no espaço europeu. No lugar de atuar somente na construção econômica, teria sido preciso, de fato, não atuar somente na consolidação política, concebendo um modelo de cidadania transnacional, para ir além das nações. E isso não foi feito.

Fronteiras intransponíveis

CONTINENTE As fronteiras são uma questão polêmica na história do mundo moderno e, em particular, da Europa – em seu território e em outros lugares. Pensemos a respeito da criação dos mapas ou sobre os movimentos imperialistas, por exemplo. Parece que estamos diante de um paradoxo, pois a história nos mostrou que, de uma maneira geral, as fronteiras só causam violência, guerra, frustração e estados de miséria. Será que este seria um conceito obsoleto que as sociedades insistem em guardar, em preservar, mesmo com muitos problemas? Por quê?
CAMILLE DE TOLEDO Foi em torno disso que trabalhamos em 2014, depois em 2015, em dois temas de exposições que refletiam sobre uma nova definição de Europa. Após a queda do Muro de Berlim, houve uma crença persistente segundo a qual os “muros” iam cair uns após os outros. A ilusão era a de um sentido histórico que acenava para as sociedades abertas, sociedades sem fronteiras. Não somente a Europa, mas o mundo também foi levado por essa ilusão do desaparecimento das fronteiras. Uma visão puramente econômica do desenvolvimento histórico tendia a fazer da fronteira uma coisa anacrônica, fadada a se esvair.

O que deveria desaparecer no horizonte comunista – o desaparecimento das fronteiras e a união de todos os povos – terminou por se reformular no horizonte neoliberal: o desaparecimento das alfândegas, das taxas e das barreiras que servem de obstáculo à livre circulação das pessoas e dos bens. Esse desaparecimento das fronteiras certamente não aconteceu. Ao contrário, assistimos, nos quatro cantos do mundo, às portas da Europa e, recentemente, de maneira mais surpreendente, no seio mesmo da União Europeia, a uma reconstrução geral acelerada das fronteiras. Muros são elevados nas fronteiras húngaras, gregas, romenas, ucranianas, espanholas. “A Europa fortaleza” sucede a uma “Europa aberta”.

A incapacidade de pensar um espaço político em torno do tríptico da tradução, migração e hibridação; a falta de coragem das diferentes classes políticas europeias; os medos do outro, nascidos de narrativas culturais de oposição entre civilizações; os atentados em Madri, Londres, Paris, Bruxelas e, em seguida, as guerras às portas da Europa; as ondas de refugiados, toda essa aceleração da História, que marca os 15 primeiros anos do século, conduziu um retorno brutal aos velhos reflexos estatais: fronteiras, identidades, rejeição das alteridades.

Nas duas exposições nas quais trabalhamos, em 2014 e 2015, procuramos, ao contrário, repensar a ligação política de outra forma que não fosse sobre a base de um “nós” exclusivo. O projeto Secessão (2014), apresentado em Berlim, convocou artistas e escritores para refletir sobre uma Europa migrante, benjaminiana, e repensar o laço de cidadania a partir do paradigma da tradução. Em 2015, na exposição Europa/Eutopia, no centro de arte de Leipzig (leste da Alemanha), havia, igualmente, uma instalação que trabalhava essa ideia da migração, da passagem como o lugar mesmo do comum. É uma obra intelectual, material, coletiva, para repensar as nossas condições de vida no século XXI, um modo de vida livre da necessidade de se definir um limite para fundar um espaço comum, compartilhado.

CONTINENTE Em entrevista a Valérie Deshoulières (revista Villa Europa, 2011, Universidade do Sarre, Alemanha), você afirma que a Europa deve escolher “entre uma encenação pré-fabricada de seu passado, de suas memórias (…) e um espaço de devaneios e revoluções (…), onde possamos viver, viver entre os mortos, jogando com eles, com a força e as aspirações que eles nos transmitiram”. Seriam esses conceitos ligados a uma distopia e a uma utopia, respectivamente? Poderia nos explicar isso utilizando, se possível, as metáforas da exposição Europa/Eutopia?
CAMILLE DE TOLEDO A exposição Europa/Eutopia, que apresentei em 2015, no Centro de Arte Contemporânea de Leipzig, trabalhava sobre um conceito geral de migrance. “Migrância” dos elementos materiais com os quais eu formava o início de uma linguagem, de letras feitas a partir de pedaços de madeira recuperados nas florestas que se transformavam em formas animais. “Migrância” dos corpos, das silhuetas, que atravessavam uma floresta de bétulas cortadas. “Migrância” das memórias, a memória do século XX, a dos judeus exterminados na Europa, que se ligavam, na instalação, à realidade das “migrâncias” contemporâneas, aos refugiados da Síria, do Iraque, da África que atravessam as florestas europeias para ir em direção a uma vida melhor. “Migrância” das crianças, que podiam, na exposição, escalar as estruturas de madeira passando de um lado a outro da esperança, entre um “país” sinalizado por um neon onde se lia “Utopia” e outro onde se lia “Distopia”. Havia a migração da ideia mesmo de foyer (palavra que, em francês, significa espaço de entrada, mas também lar e lareira), com esse fogo apagado, abandonado como uma natureza morta diante do neon “Esperança”. O foyer é a base de nossas comunidades humanas, o caráter tribal de nossos coletivos. E, na exposição, o “fogo” do foyer estava apagado, e apontava em direção a uma concepção de um “foyer migrante”, um modo de habitar o mundo que não seja ligado a raízes, à identidade, mas, ao contrário, que possa ser pensado como um movimento permanente, uma “migrância”.

Tratava-se de recolocar, no coração da Europa, esta noção de migração das almas, dos corpos, das ideias, dos espíritos, dos tempos, apontando em direção a uma transformação poética e política. É o que se vê quando olhamos as imagens da exposição, da instalação. Uma das questões centrais do meu trabalho, que é igualmente o ponto central dos escritos de alguém como Georges Didi-Huberman, é: como fazer dos “traços”, “memórias”, “passados” e “mortes” um espectro de vidas futuras, de nascimentos? Como fazer da melancolia uma força? Havia no chão da exposição, quantidades de folhas de outono, um dos elementos que tinha como título Left melancholy, a melancolia da esquerda, um termo que é empregado por Walter Benjamin para desdenhar do fracasso dos políticos de esquerda ao enfrentar o aumento dos fascismos. Essas folhas de outono, as crianças que visitavam a exposição podiam brincar com elas, jogá-las para cima, rolar no meio delas. Eis o gesto que está no cerne do meu trabalho: como transformar um espaço melancólico – a Europa – em um novo lugar de experimentação social e política? Eu me interesso igualmente, então, pela reversibilidade da utopia e da distopia, quer dizer, pela maneira como, com um só jogo perspectivo, nós podemos passar de uma à outra, substituindo as crenças por outras crenças. É assim que nós nomeamos, no Les potentiels du temps (sem tradução para o português, livro de 2016 que ele escreveu junto aos teóricos da arte Aliocha Imhoff e Kantuta Quiros), a proposta potencial: uma maneira de escolher, com o espírito, com os olhos, com o corpo, muito mais o possível do que o comprimido. O que desejamos infinitamente é, obviamente falando sobre isso, uma plasticidade integral das formas.

CONTINENTE Nesta mesma entrevista a Valérie Deshoulières, você fala muito sobre a questão dos judeus e do Holocausto, mas nós sabemos que houve e que há chacinas iguais ou mais perversas do que o Holocausto na história da humanidade. Podemos citar a África ou a América Latina, onde várias populações foram e são exterminadas. Como um europeu de origem judaica, você não se sente em uma condição privilegiada, ou até mesmo hegemônica, para falar sobre os problemas com os quais trabalha?
CAMILLE DE TOLEDO Não é necessário de forma alguma “essencializar” as memórias, as histórias; ao contrário, é preciso retomar os pontos em comum das mortes. As mortes do século XX, e as mortes dos séculos XV e XVI, as mortes provocadas pela escravidão e as mortes de nossas épocas contemporâneas, os que se afogam no Mediterrâneo, ou que morrem na fronteira mexicana. É necessário imperativamente recriar este “comum” da morte, pois o que é morto, afinal, a cada vez, são os seres do “entre”, seres dos quais regimes políticos arrancam a dignidade humana. Mesmo se os modos de destruição e de extermínio se modificam, transformam-se segundo os lugares e os tempos, nós podemos tecer as ligações. O que é morto enxerga sempre o “direito à existência” e o status de “sujeito de direito”. Nós podemos estender esse raciocínio a todos os seres sensíveis, aos ecossistemas, como às sociedades indígenas.

A modernidade é uma maneira de enquadrar o real que exclui os mundos, as existências. Contudo, é justamente a partir desse direito à existência que podemos reconstruir do político uma política mais vasta, uma nova forma, mais ampla, de representação. Na Europa, é claro, o extermínio dos judeus no século XX ocupa um lugar específico, pois, como disse o escritor húngaro Imré Kertesz, Auschuwitz se tornou um “mito”, quer dizer, uma história que põe as fundações de uma certa ordem do mundo. Vivemos na Europa pós-Auschwitz. Dessa forma, a reconstrução ética e política que se instalou após a Segunda Guerra Mundial isolou demais o genocídio dos judeus das outras destruições, ruínas e genocídios. O trabalho que eu empreendi, e que creio que deva ser empreendido coletivamente, é tornar comum os crimes da modernidade, o extermínio dos judeus, pois o que importa, hoje, é sair “das lutas, das guerras de memórias, entre as memórias”.

Antes dos anos 1930, a figura do pária permitia relacionar, ligar, párias negros, párias femininos, índios, judeus, homossexuais, tudo o que era excluído de uma ordem dominante. Contudo, nos tempos subsequentes, os combates tenderam a separar isso. Foram as lutas pelas identidades nos anos 1970 que produziram um front extremamente fragmentado, no qual cada um rivaliza os sofrimentos. Mas essa fragmentação está deficiente hoje em dia. Ela condena justamente essa “melancolia da esquerda”, da fragmentação das causas, de maneira que parece necessário repensar as convergências, as “dores em comum”.

Ascensão da direita

CONTINENTE É evidente que estamos vivendo, em todo o mundo, um movimento de ascensão da direita e da extrema direita, inclusive no Brasil, por exemplo. A que se deve esse movimento, sob o seu ponto de vista, e como a Europa influencia essa onda no mundo inteiro?
CAMILLE DE TOLEDO Eu não creio que haja responsabilidade particular da Europa na onda de “direitização” do mundo. Ou então, seria preciso ir bem longe na exposição do modelo de “estado-nação” e na invenção do “capitalismo” no século XVIII, na Inglaterra, para compreender as razões profundas desse triunfo dos modos de vida reacionários. Mas, ainda neste caso, creio que, a partir de agora, o estado-nação, como modo de organização dos coletivos humanos, e o capitalismo, como modo de gestão dos fluxos, não podem mais ser eternamente reportados à Europa. São hoje modos de organização compartilhados, mantidos nos quatro cantos do mundo e que terminaram por ser atribuídos a diferentes culturas. É preciso, então, estar atento à dialética entre estes dois modos de gestão: de um lado, o estado-nação, um quadro ligado a noções de identidade, território, fronteira, soberania; e do outro, o capitalismo, um modo de organização dos fluxos econômicos que vão além dos territórios, dos corpos sociais, que colocam em concorrência as sociedades em uma escala mundial. E é essa dupla que tende a produzir os monstros da reação. Quanto mais o capitalismo se globaliza, quanto mais ele uniformiza as condições de vida, quanto mais ele coloca em concorrência as sociedades, os países, quanto mais ele enfraquece os Estados, mais a tentação para “reconstruir as fronteiras”, para “defender as identidades”, cresce.

Vemos que o liberalismo econômico é dialético em relação à “direitização” do mundo. Fluxos globalizados de um lado, “identitarismo” do outro. Os dois funcionam muito bem juntos e fica extremamente difícil a tarefa de pensar as proposições de esquerda; as proposições que articulem o respeito pela diversidade dos mundos e um modo de regulação dos fluxos que permitam desenvolvimentos sustentáveis. Seria preciso, para isso, imaginar ações na escala da Terra, a fim de preservar nosso meio ambiente, de desenvolver uma ecologia política global, justa, voltada para o respeito e a igualdade de todas as formas de vida. Mas, como tal governança na escala do mundo não existe, a estrutura dupla estado-nação e capitalismo globalizado empurra as preferências nacionais a uma “direitização” cada vez mais forte.

De fato, podemos realmente interpretar o ciclo atual como uma resposta direitista dos Estados e das sociedades à dilatação do mundo. É essa rede das velhas classes dominantes que busca se manter no contexto de uma competição generalizada. O mais irônico, nesse processo, é que os políticos liberais se permitem muito bem oscilar como autoritários, xenófobos, nacionalistas.

CONTINENTE MaxWeber refletiu sobre os processos de racionalização das ações sociais como a fundação da visão moderna e ocidental do mundo. Bourdieu seguiu, de certa maneira, essa linha de pensamento, afirmando que todo o sistema simbólico de classificação é violento, é uma forma de poder. E você trabalha, também, com a ideia dos processos hegemônicos a partir das palavras, expressões, definições etc. Poderíamos afirmar que esse é o grande problema da sociedade moderna/contemporânea, ser refém dessas categorizações racionais, dessa forma de organização social?
CAMILLE DE TOLEDO Na segunda metade do século XX, até mesmo a Antropologia, a Etnologia e as Ciências Humanas permitiram ampliar a noção de “razão”, de “racionalidade”. Em sua pergunta, você fala de uma “racionalidade ocidental”, e é verdade que existem traços característicos dessa ratio, que reduziu, conquistou, dominou e oprimiu os mundos múltiplos, as múltiplas formas da vida, particularmente na longa sequência histórica que se abre com a conquista das Américas no século XV. Sendo assim, a crítica da ratio ocidental aconteceu e teve prosseguimento, abrindo-se hoje a um reconhecimento jurídico, filosófico, de uma multiplicidade de modos de existência. É essa virada etnológica, formal, que está no centro de numerosos trabalhos de pesquisadores. Não vemos mais o mundo do único ponto do humano. Nós o observamos do ponto de vista de várias formas de humanidades, do ponto de vista animal, vegetal. Trabalhamos para expandir o olhar – uma empatia política a ser expandida – e essa ciência da expansão é o cerne das críticas contemporâneas da dominação. Pouco a pouco, vemos se desenhar um “direito da natureza”, um “direito dos animais”, que nos obrigam a renovar a maneira como concebemos nossas formas de viver.

Essa virada nos modos de existência é o tema central do livro (antes mencionado) que concebi e escrevi com dois teóricos da arte, Aliocha Imhoff e Kentuta Quiros, Les potentiels du temps. Algo está mudando na forma como concebemos o “reino humano”, algo que nos obriga, de agora em diante, a compartilhar, de outro modo, o sensível. Há um combate em torno do compartilhamento do sensível e reconhecemos, mais do que nunca, que há mais de uma foma de viver, de compreender o mundo. É claro que, a reboque dessas transformações do saber, há uma decepção. As formas de governo do mundo não mudam, ou mudam muito pouco. Tudo muda lentamente. Em Les potentiels du temps, espantamo-nos com a inércia dos velhos poderes, dos velhos saberes. Como é possível, haja vista o estado de nossos conhecimentos etnológicos – a sensibilidade animal, antropológica, a multiplicidade das racionalidades, cosmogônicas, a multiplicidade de mundos – que as formas de governo mudem tão pouco, que elas sejam, a essa altura, conservadoras? Por que isso não se transforma mais rápido?

Nós apelamos, neste livro, a políticas ovidianas, mais infinitas, mais abertas, que seriam precisamente levadas por uma sede de metamorfose, por uma transformação do modo de viver. É nessa tarefa que nós nos engajamos. Mas é claro que precisamos compreendê-la como um combate. É preciso que esses estados modificados do saber se atualizem. E é neste lugar que o combate ganha corpo, desde a insurreição zapatista, em 1994, até os últimos movimentos “ocupe” ou “podemos” na Espanha, passando pelas revoluções árabes. É preciso que tudo isso finde por desenhar um sentido histórico e que os políticos ajam em favor desses desejos de transformar as formas de governo. Se a rede, as velhas redes se defenderem contra essas transformações, então o estado de guerra não será outra coisa que não reforçado.

Pensamentos revolucionários

CONTINENTE Diante desse cenário contemporâneo do continente europeu, e do mundo, que alternativas ao pensamento crítico podemos ter como uma forma de resistência política e cultural? Qual o papel das artes nesse cenário?CAMILLE DE TOLEDO Eu concebo nossos tempos como tempos em preparação. Um novo vocabulário, uma outra gramática, novas maneiras de viver estão sendo elaboradas. O presente está surdo a essas transformações, mas elas estão aí. Elas visam às modificações legislativas, políticas, econômicas. Existe, frente a esses desejos de metamorfose, um velho alicerce do saber e do poder, uma rede que procura se manter, se defender. No conflito entre essas duas ordens, o presente se articula, se agita.

Tenho a imagem frequente do século XVIII, do tempo em que a ordem política parecia imutável. E, no entanto, nas alcovas, nos clubes, nos salões, havia uma atividade intelectual intensa, a difusão de pensamentos que tendiam a modificar, em profundidade, a maneira de se conceber uma sociedade. Esse pensamento das luzes levaria mais de um século para se atualizar no mundo, para se tornar um repertório comum de princípios, ligado à liberdade, à igualdade, e certamente esse pensamento teria consequências dramáticas sobre as formas de dominação, sobretudo coloniais. Vemos, então, que há sempre uma ambivalência intrínseca aos projetos de emancipação, sempre ameaçados de virarem modos de dominação. O período atual me parece análogo.

O fim do “freio marxista” que serviu de limite, de contramundo ao longo da segunda metade do século XX, evitando que o capitalismo fosse ao máximo de sua lógica – a saber, freando a lógica da rede, da apropriação, da privatização dos lucros –, causou, no transcorrer dos anos 1980 e 1990, a aceleração e o desenvolvimento de todo o poder predatório do capitalismo, agravando as desigualdades no mundo inteiro. Essa aceleração foi afetada por crises, até o apogeu da crise dos subprimes (crise imobiliária de 2007, a partir dos EUA), que surgiu, um belo dia, como um regime de espoliação.

Na América Latina, aconteceu da mesma forma, com as crises sucessivas do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. Em todo caso, o capitalismo tirou proveito do fim da hipótese comunista. Mas, ao mesmo tempo, desde 1989, assistimos a uma tentativa de recomposição política. É um esforço que religa as greves dos anos (Margaret) Thatcher, na Inglaterra, aos movimentos das praças que entoaram os primeiros anos do século XXI, de Nova York à Tel Aviv, passando por Madrid, Barcelona, Tunísia, Paris, Cairo. Esse movimento das praças é a manifestação de uma recomposição política. E os altos índices de votação para Bernie Sanders na primária democrata, nos Estados Unidos, são outro traço dessa recomposição. São movimentos de fundo. É uma recomposição da inteligência coletiva, da crítica, que é inseparável de uma repolitização dos mundos da arte. A arte é esse espaço em que discursos dissidentes podem se organizar, se manter, um lugar onde “ficções de possíveis” podem ser contadas. São, portanto, essas ficções de possíveis que nós devemos manter vivas, ligando-as, se possível, a movimentos sociais e políticos. Eu não duvido de que essas forças de recomposição já estejam dando à luz a uma nova política. Mas permanece a questão sobre o ritmo e a amplitude dessas transformações. 

TRADUÇÃO Carmen Mendonça, com colaboração de Erika Muniz e Olívia Mindêlo.

 

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