Arquivo

Revolução de 1817: o ano em que o Brasil nasceu

TEXTO Luciana Veras

01 de Março de 2017

O artista pernambucano Daaniel Araújo pintou “Tropas pernambucanas cercam o Forte do Brum” a partir dos relatos do ocorrido

O artista pernambucano Daaniel Araújo pintou “Tropas pernambucanas cercam o Forte do Brum” a partir dos relatos do ocorrido

pintura Daaniel Araújo/reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 195 | março 2017]

Pernambucanos, estais tranquilos, apareceis na capital, o povo está contente, já não há distinção entre brasileiros e europeus, todos se conhecem irmãos, descendentes da mesma origem, habitantes do mesmo país, professores da mesma religião. Um Governo Provisório iluminado, escolhido entre todas as ordens do estado, preside a vossa felicidade; confiai no seu zelo e no seu patriotismo. A providência que dirigiu a obra, a levará ao termo. Vós vereis consolidar-se a vossa fortuna, vós sereis livres do peso de enormes tributos que gravam sobre vós; o vosso e nosso país, subirá ao ponto de grandeza que há muito o espera e vós colhereis o fruto dos trabalhos e do zelo dos vossos cidadãos. Ajudai-os com os vossos conselhos, eles serão ouvidos; com os vossos braços, a pátria espera por eles; a vossa aplicação à agricultura, uma nação rica e uma nação poderosa. A pátria é a nossa mãe comum, vós sois seus olhos, sois descendentes dos valerosos lusos, sois portugueses, sois americanos, sois brasileiros, sois pernambucanos.

Proclamação do Governo Provisório de Pernambuco, escrita pelo padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro.

Ufanistas e acolhedoras, as palavras transcritas ao lado foram escritas há dois séculos, impressas e divulgadas à população de Pernambuco como parte de uma carta de proclamação, a estabelecer os preceitos pelos quais se estruturava um governo inédito nos tempos de um Brasil colônia. Lidas em voz alta pelas ruas do Recife, ratificavam a insurgência de uma província que se revelava imersa no espírito do tempo, atravessada pelos ideais de independência e liberdade, igualdade e fraternidade que emanavam tanto dos Estados Unidos como da França. O movimento conhecido como Revolução de 1817 deflagrou novo rumo para a história do país “descoberto” por Portugal desde 1500. À luz do bicentenário, o episódio histórico de extrema importância para a nação ganha outros contornos.

“A revolução de Pernambuco em 1817, se bem que muito pouco durasse, fará sempre época nos anais do Brasil; tempo virá, talvez, em que o dia 6 de março será para todos os brasileiros um dia de festa nacional”, escreve Francisco Muniz Tavares (1793–1875), no prefácio do seu História da Revolução em Pernambuco de 1817, publicado pela primeira vez em 1840 graças aos esforços intelectual e financeiro do próprio autor – que havia sido preso por participar do movimento. O livro é uma imprescindível fonte de informações para o estudo dos fatos que desembocaram na formação do Governo Provisório e ressurge, no bojo das celebrações dos 200 anos, em oportuna nova edição, idealizada e impressa pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe.

Este volume traz o texto original de Muniz Tavares e as notas do historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima (1867–1928) acopladas à terceira edição, lançada em 1917 como esforço do então Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (hoje Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano) para marcar o centenário da Revolução de 1817 e, de certa forma, demarcar uma contraposição ao que a historiografia do século XIX havia determinado. Na narrativa “oficial” do Brasil, tudo que se relacionava a 1817 era minimizado. Autor de História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal, Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816–1878) e historiador oficial do Império, recebera de Pedro II a missão de narrar a trajetória brasileira para o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil; ao fazê-lo, nos volumes publicados entre 1854 e 1857, não incluiu o movimento nordestino entre os predecessores da Independência de 1822.

É compreensível, portanto, que até hoje se ensine e se difunda mais sobre Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e a Inconfidência Mineira de 1789 do que sobre Domingos José Martins, padre João Ribeiro, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, ou Domingos Teotônio Jorge – todos esses componentes do Governo Provisório instaurado em março de 1817. E é justamente por causa disso que se torna mais necessário revisitá-los. “Duzentos anos depois, a grande lição é tomar consciência da contribuição que Pernambuco deu ao Brasil. O que era o Brasil naquela época? Uma simples colônia, sofrendo o peso e a extorsão de uma Coroa que havia aqui se instalado, após a pior das humilhações – a fuga de Dom João VI. 1817 foi fundamental para o conceito de pátria, nação e liberdade. A semente do Brasil nasceu duas vezes em Pernambuco – uma no século XVI, com a expulsão dos invasores holandeses e a restauração, e outra no século XIX. Devemos aproveitar o ensejo do bicentenário para voltar a ler, a ouvir, a contar, a cantar e a nos encantar com a história de 1817, contra aquele silêncio que uma história nacional impingiu sobre os fatos relacionados à revolução”, sustenta o professor Antônio Jorge Siqueira, do departamento de Sociologia e da pós-graduação em História da UFPE.

Ao lado dos professores Antônio Paulo Rezende e Flávio Weinstein Teixeira, ele é um dos organizadores de 1817 e outros ensaios, compilação de 10 textos a ser lançada ainda neste semestre pela Cepe. O interessante do livro é a oferta de análises sobre diversos aspectos do movimento, como a participação de negros e índios nas hostes revolucionárias e do papel crucial desempenhado por padres católicos.

Não é megalomania pernambucana afirmar, como o faz o embaixador cearense Gonçalo de Barros Carvalho Mello Mourão, no ensaio Seis de março, data nacional, que “a Revolução de 1817 suscitou entre nós o poder do apelo à liberdade como despertar da consciência nacional. Representou, em suma, o surgimento da ideia de um Brasil brasileiro, através daquilo que o sublimado padre Dias Martins chamou de busca do ideal de ‘Pátria e o amor da Liberdade’. A Revolução durou parcos 76 dias, 11 semanas, dois meses e meio. Foi pouco, mas foi o suficiente para fazer nascer o Brasil”.

DIREITOS CIVIS E LIBERDADE
Corriam os primeiros dias de março de 1817 e o capitão-geral da província de Pernambuco (cargo equivalente ao de governador) era Caetano Pinto. O Recife só se tornaria cidade em 1823, porém, já era uma babel. Antônio Jorge Siqueira utiliza os dados levantados pelo professor pernambucano Luiz Geraldo Silva, da UFPR, em um dos ensaios da coletânea 1817 e outros ensaios, para contextualizar o panorama da época. “Em 1762, no século XVIII, o Recife tinha uma população de 90 mil habitantes, dos quais 25% eram escravos. Dada a importância do cultivo da cana-de-açúcar, percebem-se os escravos como segmento importante para alimentar a indústria canavieira. Em 1810, dois anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, e sete anos antes da revolução, a população de Pernambuco era de 392 mil habitantes, dos quais 28% eram brancos, 26,2% eram escravos, 3,2% índios e 42% eram afrodescendentes, livres ou libertos. Ou seja, o panorama era favorável à busca pelos direitos civis e pela liberdade”, indica Siqueira.

Autor de Os padres e a teologia da ilustração – Pernambuco 1817 (Editora Universitária UFPE, 2009), em que investiga a atuação dos religiosos no levante, o professor recorda que a abertura dos portos, um dos primeiros atos de Dom João ao chegar ao Brasil, não só acarretou uma nova dinâmica comercial, como também desaguou em uma maior circulação de ideias. “Produtos, comércio e ideias formam a tríade que se complementa nesse momento de desarrumação”, aponta Antônio Jorge Siqueira.

No ensaio Entre banquetes e batuques: a visão dos viajantes sobre o Recife em tempos de revolução, a historiadora Sylvia Costa Couceiro trabalha com os relatos de quatro forasteiros – o francês Louis de Tollenare e os ingleses Henry Koster, James Henderson e Maria Graham – para compor o quadro de uma vila em ebulição. “Como funcionava o Recife? Lanço uma série de perguntas a partir das reflexões que esses viajantes faziam. Além do que aconteceu durante a revolução, eles falam, com ênfase, da ideia de mestiçagem. O Recife de 1817 era, como o Recife de 2017 ainda é, uma cidade híbrida, mestiça e de profundas diferenças. A vila do Recife compreendia o Bairro do Recife, Santo Antônio, São José e algumas casas na Boa Vista. Locais como Apipucos, Monteiro, Várzea e Poço da Panela eram os destinos para onde as elites iam em momentos de lazer, tomar banhos de rio. Quando a revolução eclodiu, parte da população fugiu para essas casas de veraneio, deixando a área central deserta”, situa à Continente a pesquisadora titular da Fundação Joaquim Nabuco.

Os gatilhos da Revolução de 1817 não podem ser percebidos como isolados. Havia o fluxo de produtos e ideias, decorrente da abertura dos portos, havia a herança da França, dos Estados Unidos e das lutas pela independência da América espanhola e havia as noções libertárias discutidas nas casas de maçonaria. Domingos José Martins, capixaba que chegara ao Recife em 1815, vindo de Londres, era adepto e entusiasta de tais ideais disseminados entre os maçons. “Entre os amantes de República, figuravam alguns maçons ou pedreiros livres. Esta sociedade secreta, respeitada por ser misteriosa, e condenada cegamente como tal, diz-se que em tempo assaz remoto fora instituída com o louvável fim de confraternizar os homens, e incitá-los à prática das virtudes morais, concedendo aos seus membros plena garantia de pensar, oferecendo mútua comunicação de ideias e socorros”, aponta Muniz Tavares, em História da Revolução em Pernambuco de 1817. “Os maçons – como se a lei de sangue que os prescrevia tivesse sido ab-rogada – congregavam-se quase em público, banqueteavam-se frequentemente de fé. Em seus banquetes ouviam-se brindes acompanhados de expressões que revelavam generosos desígnios.”

“VIVA A PÁTRIA”
Consta que, ao ser alertado sobre possíveis conspirações, o capitão-geral Caetano Pinto dissera: “Os maçons divertem-se: nada farão”. Contudo, resolve agir ao receber uma denúncia do “negociante abastado Manoel de Carvalho Medeiros”. Em O Recife da revolução republicana de 1817: cenários, cenas e atores, concebido especialmente para 1817 e outros ensaios, o arquiteto José Luiz da Mota Menezes esmiúça o desenrolar dos acontecimentos. No dia 5 de março, Pinto “manda prender 70 implicados”. “No dia 6 de março, às 11 horas, o governador iniciou as prisões. Foram denunciados os seguintes militares: três capitães de artilharia Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, José de Barros Lima e Pedro da Silva Pedroso, tenente, secretário do mesmo Corpo, José Mariano de Albuquerque e o ajudante de infantaria Manoel de Sousa Teixeira. Preso o negociante Domingos José Martins e recolhido, por ser civil, à cadeia (provavelmente a da atual Rua do Imperador, antes da Rua da Cadeia Nova)”, relata Mota Menezes.

Quando o general de brigada Manoel Joaquim Barbosa de Castro se dirigiu ao quartel da artilharia (localizado no Bairro de Santo Antônio, entre o que hoje são as avenidas Guararapes e Dantas Barreto) para efetuar as prisões dos militares, deu-se o estopim. Domingos Teotônio foi preso, mas José de Barros Lima, o Leão Coroado, desembainhou a espada e matou o oficial português. Ninguém protestou, como descreveu Muniz Tavares: “Entre tantos oficiais presentes, não houve um só que se opusesse à perpetração do delito; os que eram brasileiros, maquinalmente desembainharam as espadas, e como se fossem feridos por um golpe apoplético, permaneceram inertes espectadores. Dois portugueses, um que era sobrinho do morto, o capitão José Luiz, temendo igual sorte, saltou pela janela e escondeu-se; outro por nome Luiz Deodato, fugiu deixando a barretina e a espada”.

Os gritos de “Viva a Pátria” e “Mata marinheiro”, como os portugueses eram chamados, ecoaram nas ruas. Houve conflitos, mortes, “arruaça” e “confusão”, como transparece nos relatos do francês Tollenare (suas Notas dominicais foram publicadas pela Secretaria de Educação e Cultura do governo de Pernambuco em 1978) e nas memórias de Muniz Tavares, que serviram de base para inúmeras revisões. Uma delas, 1817, foi escrita pelo professor Denis Antônio Bernardes para o livro Revolta, motins, revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX, lançado em 2011 pela Alamada, e incluída em 1817 e outros ensaios, como uma homenagem ao historiador, falecido em 2013.

Sua recapitulação dos fatos: “A resistência da tropa portuguesa e de alguns marinheiros de nada adiantou. No dia 7 de março, o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro aceitou assinar sua capitulação e deixar a capitania acompanhado da família e dos oficiais e familiares que o quisessem seguir rumo ao Rio de Janeiro. No mesmo dia foi eleito um governo provisório, com representantes dos diversos corpos sociais, refletindo a divisão estamental da sociedade: pelo clero, o padre João Ribeiro Pessoa de Mello Montenegro, pelos militares, o capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, pela magistratura, o advogado José Luís de Mendonça, pelo comércio, Domingos José Martins e, pela agricultura, o senhor de engenho e coronel de milícias Manoel Correia de Araújo. Cessava, com este ato de eleição de um governo provisório saído de uma rebelião militar, a soberania do príncipe regente D. João sobre Pernambuco. Não tardou que, inclusive pelo envio de emissários, a notícia da instalação de um governo republicano e patriótico em Pernambuco logo se espalhasse pelas províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e pela comarca das Alagoas, ainda território pertencente à província de Pernambuco”.

ECOS PARA O FUTURO
O “tempo da Pátria” foi breve, porém intenso. Incluiu a viagem de um emissário até os Estados Unidos e a conexão com levantes bonapartistas, como detalha a pesquisadora da Fundação Rui Barbosa, Isabel Lustosa, em artigo publicado adiante, na página 26. Deixou, no cotidiano da capital pernambucana, nomes de ruas, como Padre Roma e Gervásio Pires. Foi, para centenas de escravos, o primeiro vislumbre de liberdade – os negros foram alforriados pelos senhores para lutar pela revolução. Com a debelação da insurgência, voltaram à senzala, mas o ideal de liberdade se consolidava no horizonte. “A abolição da escravatura só se deu em 1889, mas um negro que ficou livre para lutar, ao voltar a ser escravo, não era o mesmo. Apesar da repressão violenta ao movimento e das punições exemplares aos envolvidos, o término da Revolução de 1817 não fez com que a sociedade voltasse a ser o que era antes. As experiências deixaram marcas para novas atuações libertárias”, pontua a pesquisadora Sylvia Costa Couceiro, da Fundação Joaquim Nabuco.

O próprio Joaquim do Amor Divino Rabelo, o frei Caneca, foi um dos grandes envolvidos em 1817. Preso ao lado de Muniz Tavares na Bahia, virou líder da Confederação do Equador em 1824. “Na prática e na História, com a restauração brasileira dos Guararapes, no século XVII, com a Guerra dos Mascates, a Revolução de 1817 e o movimento de 1824, Pernambuco tem um papel deveras importante para contribuir com a semente de pátria, nação, liberdade, direitos e constituição. Esses ideais não morreriam com o sacrifício dos cabeças revolucionários. Aqueles que foram para as masmorras na Bahia voltaram e continuaram com um ideal de luta. Tudo isso foi corroborado nas revoltas subsequentes, como a Praieira”, reforça o professor e historiador Antônio Jorge Siqueira, da UFPE.

“Viva a Pátria, vivam os patriotas e acabe para sempre a tirania real”, bradavam os revolucionários, nas ruas e nos documentos que servem de esteio para reviver e repensar a Revolução de 1817. Dois séculos depois, a tirania ainda persiste e há de se olhar para o passado para reposicionar, na história da nação, o pioneiro movimento que uniu brancos, negros, pardos, índios, militares, comerciantes, padres e maçons e seu incontornável legado de luta.  

 

Publicidade

veja também

Gabriel García Márquez

Laerte: um olhar sobre si mesma

Moçambique: relato de uma mzungu