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Pontos de interesse nas ruas da cidade

Obras artísticas espalhadas pelo Recife são alvo de projeto de identificação e catalogação, através do qual é possível vislumbrar a relação arte-história

TEXTO Eduardo Montenegro

01 de Abril de 2017

Inspirado na sua tela

Inspirado na sua tela"Eu vi o mundo... ele começava no Recife", Cícero Dias também criou "Rosa dos Ventos", desenhada no piso do centro do Marco Zero

Foto Breno Laprovitera/divulgação

[conteúdo da ed. 196 | abril 2017]

Certa vez, nacasa de número 8 da Rua Aprazível, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, o artista Cícero Dias mergulhou em suas tintas para montar, durante três anos, uma de suas obras mais significativas e um dos expoentes do modernismo brasileiro: a pintura Eu vi o mundo… Ele começava no Recife, de 1930, que somente foi exposta na 8º Bienal de São Paulo, no ano de 1965. Hoje, quem anda pelo Marco Zero, no Bairro do Recife, ou já viu a famosa praça em fotos, encontra uma descendente dessa pintura. Rosa dos ventos, desenhada no piso do centro da praça, é obra de Cícero Dias e foi inspirada na tela. Uma simbologia plausível: se o mundo começava no Recife, deveria começar exatamente onde nasce a cidade. Ao lado de vitrais, murais e esculturas, Rosa dos ventos compõe um Recife pouco notado: a “cidade-museu”, uma exposição permanente, em que ruas, becos e avenidas funcionam como uma galeria de arte livre à visitação. A esse conjunto de objetos artísticos dispostos em locais públicos dá-se o nome de arte pública.

Quando José Guilherme Abreu, doutor em História da Arte Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, definiu esse tipo de arte como de caráter memorável, qualificadora do meio urbano e arquitetônico, além de se constituir em local de devoção, parecia retratar – em poucas palavras – o cenário da arte pública recifense. Uma vez, também, o escultor Siah Armajani referiu-se a essas obras de arte como não sendo somente criadas a partir de uma construção artística, mas também de uma produção social e cultural, baseada em necessidades. “Cada obra traz uma memória da cidade, da história, das pessoas que viveram e vivem naquela época. É isso. É a arte da memória”, define também Lúcia Padilha, uma das organizadoras do Recife Arte Pública, projeto que pretende justamente mapear esse acervo disposto pelo Recife e que conta com obras da autoria de Francisco Brennand, Abelardo da Hora, Lula Cardoso Ayres, Corbiniano Lins, entre outros artistas.

A ideia do projeto partiu da escultura de um caranguejo em metal, erguida às margens do Rio Capibaribe, na Rua da Aurora. Idealizado pelo artista plástico Augusto Ferrer, executado por Eddy Polo e Lúcia Padilha, o monumento Carne da minha unha, homenagem a Chico Science e Josué de Castro, inspirou Padilha a observar a cidade sob o ponto de vista artístico, ou seja, da perspectiva de que existem obras como aquela “em cartaz” em várias partes do Recife. O mapeamento das obras começou “pelo centro, onde o Recife nasceu, o Marco Zero. Existem, lá, o Parque de Esculturas de Brennand, e o desenho de Cícero Dias no Marco Zero. A cidade já começa com duas obras bem significativas”, explica Padilha, em entrevista à Continente, que conta, neste projeto, com colaboradores como Janaína Cardoso, na produção, os educadores Niedja Santos e Hassan Santos e os fotógrafos Breno Laprovitera e Nando Chiapetta.

Desde 2013, quando foi aprovado pelo Funcultura, o Recife Arte Pública publicou, gratuitamente, um livreto visual com as esculturas encontradas ao longo das zonas do Recife, dispostas num mapa. Ampliado desde então, o projeto conta com o site www.recifeartepublica.com.br, em que o primeiro livreto – com mais de 100 obras catalogadas – está disponível. Além deste, há pretensões de se produzir outras publicações dedicadas a vitrais e murais e, futuramente, juntá-las num único livro. “Essas obras de arte, vitrais e murais, além de serem arte, fazem parte da arquitetura. Não são obras de arte isoladas. Elas interagem com a arquitetura, em que estão inseridas”, destacou Lúcia Padilha, que é arquiteta e arte-educadora. Porém, mais do que estabelecerem um diálogo com a arquitetura, as obras de arte pública estabelecem um fio narrativo visual com as páginas dos livros de História, como uma reverberação do passado, discutido no presente, por meio de objetos em pedra, bronze, mármore, tinta e vidro.

COMO HISTÓRIA
“As obras de arte – quer se trate de monumentos, quer se trate de objetos móveis – ainda constituem o tecido ambiental da vida moderna. Se as conservamos, ou seja, se toleramos ou desejamos a sua presença, é porque ainda têm um significado. Não só isso: a tendência a desambientá-las, vendê-las, exportá-las, destruí-las, também implica, ainda que de modo negativo, o reconhecimento de um significado delas”, escreveu o historiador da arte do século XX, Giulo Carlo Argan, no livro História da arte como história da cidade (Martins Fontes). As ideias de Argan levam a uma reflexão sobre o papel documental da arte, uma vez que elas apresentam ligações diretas com certos períodos da história.

Usemos, nesse sentido, o exemplo do monumento Tortura nunca mais, de Demetrio Albuquerque, um dos cartões-postais da cidade e o primeiro monumento no Brasil criado em honra dos mortos da ditadura militar. Durante os diversos protestos contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, também contra o atual presidente Michel Temer, militantes ocuparam a base da escultura, como num gesto de luta pela democracia. Ou seja, pelas palavras de Argan, “a presença de obras de arte é sempre caracterizadora de um contexto cuja historicidade manifesta.”    

Reincide nas esculturas e nos murais recifenses a apreciação da história pernambucana. O busto de Frei Caneca, localizado próximo ao Forte das Cinco Pontas, não só remete a um dos heróis da Revolução de 1817, mas, também, ao próprio lugar onde o carmelita foi fuzilado devido aos seus ideais revolucionários. A parede atrás do busto – que, de certa forma, ajuda a compor o valor simbólico da estátua – foi onde o padre recebeu os tiros e o seu sangue se espalhou.

O mural Revoluções pernambucanas, de Corbiniano Lins, mescla os períodos de rebeldia pernambucana de 1817, 1824 e 1948 num extenso e azulado mural. Ou mesmo o mural A batalha dos Guararapes (1962), de Francisco Brennand, localizado no Bairro de Santo Antônio, mira o passado revolucionário dos “bravos guerreiros”, como está nos versos do hino pernambucano. Esses são, claro, alguns dos exemplos da arte pública da cidade.

RECURSO EDUCATIVO
Existe diferença em contemplar uma obra de arte instalada num local público e outra dentro do espaço de um museu? Segundo Ricardo Reis, mestre em Educação Artística pela Universidade de Lisboa, em sua pesquisa Arte pública como recurso criativo: contributos para a abordagem pedagógica de arte pública, “uma obra de arte colocada num determinado contexto altera-o. Um determinado contexto altera a percepção que o observador tem da obra”. Segundo esquema apresentado pelo pesquisador, formam-se três polos: o observador, o contexto e a obra. Esses dialogam entre si, justamente onde reside a diferença de se apreciar uma obra num museu, uma vez que – seguindo o pensamento de Reis – as pinturas e esculturas estão fora de seu local de nascença, não podendo estabelecer um contexto. Na arte pública, porém,  “não é raro encontrar quem menospreze as obras de arte colocadas em espaços urbanos, talvez por estas se encontrarem fora dos espaços de validação da arte, ou seja, fora dos museus e/ou galerias”, problematiza Reis.

Observando ainda essa sincronia, ou interdependência entre esses três polos, o monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares, criado por Abelardo da Hora e instalado no Pátio do Carmo, em frente à Basílica e ao Convento de Nossa Senhora do Carmo, no centro do Recife, ilustra essa ideia. Foi ali, sobre aquelas pedras antigas, na sombra da igreja, que o líder quilombola foi degolado, tendo sua cabeça exposta por dias, devido ao seu direito ao grito. Não menosprezando a importância do museu para a preservação das obras de arte, ter a estátua no local do assassinato carrega uma riqueza de contexto singular.

O Circuito da Poesia também materializa essa forma de associar arte e acontecimentos, através da localização de 16 estátuas de escritores pernambucanos (ou ligados ao estado). Quando se anda pela Rua da Aurora, e se depara com o Teatro do Arraial, observa-se, no lado oposto, uma escultura, em tamanho real, de Ariano Suassuna, que fundou o local. Na Praça Maciel Pinheiro, onde está localizado o sobrado em que morou a família da ucraniana, no Bairro da Boa Vista, está eternizada a figura de Clarice Lispector, esculpida sentada numa poltrona, com um livro nas mãos. Para Ricardo Reis, a arte pública, com seu potencial educativo, é “quase sempre menosprezada”, mesmo com iniciativas como o Circuito da Poesia. “Como trabalho com arte-educação, vejo na arte pública uma grande oportunidade de transformar as mensagens que ela traz em conteúdo de conhecimento educativo”, afirma Lúcia Padilha. A ideia do projeto Recife Arte Pública é, além de valorização e catalogação dessas artes, militar dentro desse campo de arte. De certa forma, acaba sendo uma via de mão dupla, pois, apontando novamente para Reis, “conhecer os contextos históricos, culturais e sociais nos quais as obras foram criadas enriquece o nosso olhar e as nossas habilidades para pensar sobre arte”. 

 

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