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Temática Trans é acolhida e discutida no palco

Encenações como Gisberta, Joelma e BR-Trans, em sua maioria, monólogos, trazem à cena um repertório calcado na realidade da transfobia, que macula as relações no Brasil

TEXTO Pedro Vilela

01 de Maio de 2017

O espetáculo

O espetáculo "BR Trans", do Coletivo Artístico As Travestidas, foi criado a partir de conversas com travestis, transexuais e transformistas

Foto Bernardo Cabral/Divulgação

[conteúdo da ed. 197 | maio 2017]

Ao olharmos para a recente produção cênica brasileira, podemos observar, ainda que sob diferentes campos de abordagem, determinadas recorrências temáticas, motivadas principalmente pelas angústias que regem a sociedade no mundo atual. A crueldade e repercussão da morte de Dandara dos Santos (travesti torturada e espancada até a morte em 17 de fevereiro deste ano, em Fortaleza), gravada em vídeo que circula nas redes sociais, joga luz sobre o combate à transfobia, tema que vem encontrando nos palcos lugar de acolhimento e discussão.

Sendo o Brasil o país que mais assassina transexuais no mundo, não são poucos os dados de violência, aversão sem controle, repugnância, ódio, preconceito contra pessoas e grupos com essas identidades de gênero. O olhar sobre tais questões vem sendo posto em cena, em sua maioria, através de monólogos, o que de alguma maneira configura também a angústia pessoal de determinados artistas.

A mais recente estreia sobre a questão é Gisberta, solo do ator Luís Lobianco, dirigido por Renato Carreira, que cumpriu temporada nos últimos dois meses no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-Rio). O espetáculo reconta momentos dessa brasileira, vítima de transfobia, que teve morte trágica após ser torturada por um grupo de 14 menores de idade, em 2006.

O ator, com mais de 20 anos de carreira, conhecido do público brasileiro principalmente pelo viés cômico, participando do programa Vai que cola, do Multishow, e integrando o canal Porta dos Fundos, mergulha nesse espetáculo através da tragicidade da história em questão.

Nascido Gisberto, em São Paulo, caçula de uma família com oito filhos, logo após a morte do pai, confessou à família que gostaria de ser mulher, tornando-se Gisberta. Aos 18 anos, com medo da crescente violência contra transexuais na capital paulista, optou por se mudar para a França, onde passou curto período, e logo depois passou a residir no Porto, norte de Portugal, onde viria a falecer.

Ainda que os crimes cometidos tenham sido em países diferentes, Gisberta e Dandara fazem parte de uma mesma estatística. Indo mais além, configuram também o descaso do poder público em relação ao tema. Em Portugal, ao proceder com o julgamento dos acusados sobre o crime de Gisberta, o juiz disse, textualmente, que o assassinato foi “uma brincadeira de mau gosto de crianças que fugiu ao controle”.

Transformada em música por Pedro Abrunhosa, sob voz de Maria Bethânia, através da Balada de Gisberta, o assassinato dessa brasileira acabou sendo responsável por um novo paradigma para a pauta trans em Portugal. Nos anos seguintes à sua morte, após pressão de militantes e de parte da população, o legislativo português criou uma série de leis voltadas para a igualdade de gêneros, com o objetivo de garantir a pessoas trans maior acesso à justiça, à educação e ao emprego. Além disso, foi aprovada a concessão de asilo a transexuais estrangeiros em risco de perseguição.

Enquanto isso, os números não param de crescer no Brasil, e talvez a presença dessas obras sobre os palcos tenha ainda maior importância por se configurar como alternativa reflexiva para parte da população. É louvável a atitude de Lobianco, artista que vem tendo grande repercussão em nosso país, por escolher esse tema tão penoso para vestir-se em solo. Diferentemente de grande parte de sua geração, o ator se nega à busca por uma obra “atrativa” comercialmente, como os stand-ups (em grande parte, amparados dramaturgicamente por piadas excludentes e preconceituosas).

Acompanhado de três músicos, que executam a trilha ao vivo, o ator refaz a trajetória de Gis a partir de depoimentos recolhidos de seus familiares, do processo judicial e de visitas aos locais da tragédia. Para ele, o Brasil não aprendeu nada com esse assassinato, uma vez que é um dos países que mais cometem crimes de transfobia e homofobia, num processo que se soma a uma onda conservadora de intolerância com as diferenças.

“Se não conseguimos mudar as leis que não nos protegem, que a justiça seja feita no teatro, com música e luzes de cabaré. Que venham as identidades de humor, gênero, drama, música, tragédia e redenção. O caso de Gisberta não é conhecido por aqui e decidi que Gisberta vai reviver a partir da arte e será amada pelo público”, diz Luís Lobianco.

OUTRAS GISBERTAS
A construção de dramaturgias a partir de casos reais não pode ser vista como uma exclusividade de Lobianco. É o caso, por exemplo, do ator Fabio Vidal, que vem circulando por todo o país desde 2013 com o solo intitulado Joelma, baseado na surpreendente vida de uma das primeiras transexuais do país, de nome homônimo, natural de Ipiaú, no interior da Bahia.

Nascido inicialmente de um curta-metragem dirigido pelo diretor do espetáculo, Edson Bastos, com este trabalho, o ator baiano redimensiona o olhar para além das questões de gênero, dialogando, em sua narrativa, com o campo da religiosidade (Joelma, desde cedo, dizia ser visitada pelas “13 almas benditas, sabidas e entendidas”), sendo a casa atual de sua personagem, uma espécie de centro espiritual. Dois terrenos polêmicos nos quais o ator navega com intensidade cênica.

Para o crítico Valmir Santos, a peça resulta habilidosa “na dimensão ética de não expor a Joelma da vida como ela é, em suas filigranas, idiossincrasias e alteridades”. “O espectador do cinema ou do teatro tem subsídios para chegar às próprias conclusões no liame do que é invenção e do que é verdade. De como ela sublimou na espiritualidade, por exemplo, toda forma de opressão, ciente de que a solidão pode inspirar ou aspirar a um estado de vigília existencial, mesmo no contexto da vida a dois. Edson Bastos, Fábio Vidal e equipe foram sutis sem abdicar das dores e das delícias em habitar o mundo refratário em vários aspectos, a começar pelo machismo, sem recuar da determinação de ser feliz, amar e ser amada. Outra perspectiva evidente é a do papel da sociedade, a hipocrisia de “atores” fundamentais numa cidade interiorana, como a igreja, a família, a imprensa e a polícia. Em Bastos, sendo ipiauiense, o curta e o solo ressignificaram aquela comunidade em suas fissuras”, escreveu.

Também nordestino, o Coletivo Artístico As Travestidas possui como foco de sua pesquisa exclusiva a abordagem sobre o universo das travestis e transformistas, objetivando compreender para além do estereótipo e preconceitos. Com mais de 12 anos de trajetória, o coletivo nasce com a criação do espetáculo Uma flor de dama, solo do ator Silvero Pereira, inspirado no conto Dama da noite, de Caio Fernando Abreu.

Entretanto, é com BR-Trans, estreado em 2013, que Silvero finalmente é “descoberto” por todo o país e alçado à referência artística nacional na pesquisa sobre o tema. O espetáculo, criado a partir de fragmentos de vidas reais, coletados através de conversas com travestis, transexuais e transformistas da cidade de Porto Alegre, circulou por quase todas as capitais, esgotando sessões, além de ter se apresentado em festivais internacionais.

Para o crítico Gustavo Fioratti, da Folha de S.Paulo, “alguns espetáculos de perfil político-discursivo causam impacto porque são contundentes naquilo que se propõem a defender ou atacar. Outros, e este é o caso de BR-Trans, criado por Silvero Pereira e Jezebel de Carli, conseguem mais, fazem o discurso abrir-se para sequências de enigmas”.

Outra importante obra sob sua direção e que foge do caráter de solos é Quem tem medo de travesti, traçando uma pesquisa histórica do papel da travesti no teatro, em comunhão com uma reflexão sobre a decadência e marginalização da figura “trans” na nossa atual sociedade. Nessa obra, percebe-se uma maior abertura para a performatividade de gênero, por meio do deslocamento poético das identidades de travestis e transexuais para a cena.

O ator, que atualmente pode ser visto na novela da Rede Globo Força do querer, acredita que “a marginalidade da travesti é fruto de uma sociedade excludente. Portanto, essa sociedade deveria acolher os filhos que ela joga nas ruas”.

SOBRE TRANS FAKES
Quando nos deparamos com essa temática tão provocante sob diferentes aspectos, é quase impossível não encontramos outro ponto de vista para esses trabalhos. No último dia 11 de março, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, foi lançado o Movimento Nacional de Artistas Trans (travestis, mulheres e homens trans de todo Brasil). Nele, é posto em questão o fato de personagens trans não estarem sendo interpretados por atores trans, apontado uma possível incongruência em um ator cisgênero interpretar um personagem transgênero, tornando-se, portanto, fake (trans fake = trans falso).

A necessidade de visibilidade e representatividade, não só nos palcos, mas principalmente na oportunidade de empregos, surge como justificativa principal desse movimento que tece críticas ao próprio Luís Lobianco, ao escolher recontar a história de Gisberta sem uma trans no elenco, acusando-o ainda de ser integrante do Porta dos Fundos, um dos canais mais transfóbicos.

O movimento ainda pontua a escritora Gloria Perez, que convidou a atriz cisgênero Caroline Duarte para viver um homem trans na novela Força do querer, lembrando, ainda, que a autora toca no tema da transexualidade e travestilidade há um bom tempo: em 1995, em Explode coração, Floriano Peixoto interpretava Sarita; em 2012, na novela Salve Jorge, trouxe Maria Clara Spinelli e Patrícia Araujo.

Lobianco, em outro texto postado em rede social, intitulado Manifesto Gisberta, responde aos questionamentos: “Se estamos falando de sobrevivência, o teatro, que tem seus estimados 82 mil anos, é um dos maiores resistentes da história. É um senhor que abraça todos e todas as causas – todas as intenções. Que sejam bem-vindos e nobres – nele – todos os debates contemporâneos que estamos conquistando. E que o palco, o ritual, nunca seja censurado. Sabemos dos arranhões que a censura deixou recentemente nas artes, temos o dever de zelar para que nada parecido seja reproduzido”.

O que parece não ter sido levado em consideração na escrita do manifesto trans fake é que estes projetos, com exceção das novelas globais, são batalhados e viabilizados pelos próprios artistas, enfrentando também inúmeras dificuldades para viabilizá-los.

A compreensão de que não é possível construir nenhum tipo de luta negando o outro ainda nos é cara. Entretanto, tamanha a procura do público por essas obras parece-nos, ao menos, o apontamento de um estágio inicial em que, finalmente, nossa sociedade busca reparar as questões relacionadas à homofobia e transfobia. 

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