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Da América Latina à URSS

Festival É Tudo Verdade propôs um panorama reflexivo do gênero a partir de dois intensos processos históricos ocorridos no século XX

TEXTO Beatriz Macruz

11 de Agosto de 2017

Pioneiro soviético, Dziga Vertov foi um dos responsáveis pela construção da linguagem documental

Pioneiro soviético, Dziga Vertov foi um dos responsáveis pela construção da linguagem documental

Foto É Tudo Verdade/divulgação

[conteúdo da ed. 198 | junho 2017]

Duas importantes
datas históricas – os 100 anos da URSS, e os 50 anos do movimento que ficou conhecido como Nuevo Cine Latino Americano – ganharam destaque na 22a edição do É Tudo Verdade. Realizado entre abril e maio deste ano, em São Paulo e no Rio de Janeiro, o festival especializado em documentários apresentou uma mostra dedicada à produção documental da URSS e uma retrospectiva da obra do documentarista brasileiro Sergio Muniz, que fez parte do movimento e do Comitê de Cineastas Latino-Americanos, reunido pela primeira vez em 1967.

O documentarista e poeta Sergio Muniz guarda muito vivas as memórias da formação do Comitê de Cineastas Latino-Americanos; que levaria a encontros, exibições e produções cinematográficas, caracterizando um período de intensa parceria e intercâmbio cultural entre cineastas latinos, cujo marco inicial foi o Festival de Vinã del Mar, em 1967, que se estendeu até o final da década seguinte e ficou conhecido como Nuevo Cine Latino Americano (NCL).

“Este primeiro encontro foi uma descoberta mútua. Mostrou que, apesar da diversidade de filmes e temas, havia uma unidade entre esses cineastas, na sua maneira de se aproximar do cinema”, conta o diretor.

Um exemplo claro dessa afinidade estética compartilhada pelos cineastas do continente naquele período é justamente o documentário de estreia de Muniz: Roda & outras estórias (1965), um filme-colagem sobre os primeiros meses da ditadura militar brasileira, embalado por canções do então desconhecido cantor e compositor Gilberto Gil. No mesmo ano, o documentarista cubano Santiago Álvarez lançou Now, estupenda reflexão em forma de mosaico sobre o racismo nos EUA. “Santiago filmou o Now ao mesmo tempo em que eu filmava o Roda”, relembra Muniz, “e isso foi antes de nos conhecermos; então não dá pra dizer que um inspirou o outro, eram filmes irmãos e nós éramos compadres, é o que dizíamos”, conta.

Roda & outras estórias e Now são também precursores da linguagem do videoclipe e, assim como muitas realizações do mesmo período, são documentários abertamente políticos. O intercâmbio cultural promovido pelos diretores membros do Comitê do NCL permitiu que a fundamental obra documental de Álvarez circulasse fora de Cuba, por todo o continente latino-americano.

Muniz relembra variados projetos de cineastas que se firmaram na esteira dos encontros do Comitê, como a Escola de Documentário de Santa Fé, fundada por Fernando Birri, e o grupo Cine de la Base, ambos na Argentina; o pioneiro do cinema em língua indígena Jorge Sanjinés, da Bolívia; e mesmo o Cinema Novo brasileiro, que surge no início da década de 1960, para se tornar uma das principais referências de atuação para essa geração de cineastas latinos que viria a seguir.

“Havia um horizonte comum, que também já aparecia, por exemplo, nos filmes do Glauber Rocha. Ainda que fossem em sua maioria ficcionais, ele propunha uma revisão de linguagem do cinema, muito influenciada pela realidade brasileira e latino-americana”, explica Muniz. Ele ressalta que havia um ímpeto de conhecer e transformar a realidade através do cinema, “muito por conta do momento político que experimentávamos no continente”, principalmente após a Revolução Cubana, nos anos 1960, e que mudaria radicalmente na década seguinte.

Esse mesmo ímpeto de se aproximar da realidade de maneira mais direta foi o que motivou Sergio e outros realizadores brasileiros – como Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel, entre outros – a se juntarem no projeto de documentação audiovisual de cultura popular brasileira que, organizado pelo empresário e fotógrafo Thomas Farkas, ficou conhecido como Caravana Farkas. Viajando pelo nordeste do país entre os anos 1960/70, fez uso tanto de técnicas de reportagem tradicionais quanto de narrativas ficcionais para documentar a geografia, a religiosidade, personagens e histórias da região em pequenos documentários.

São desta época alguns de documentários mais inventivos de Sérgio Muniz, como Beste (1969), que mostra como se prepara uma beste, arma rudimentar utilizada antes do aparecimento da pólvora e das armas de fogo, enquanto uma narração em off informa que o filme se passa exatamente no mesmo dia em que o homem pisa pela primeira vez na Lua.

RETROSPECTIVA RUSSA
Cocurador da retrospectiva 100: de volta a URSS do É tudo verdade, mestre em Cinema pela ECA-USP, Luis Felipe Labaki descreve um desejo similar de transformar a realidade como a particularidade da produção cinematográfica soviética: “Desde o início da experiência revolucionária, o documentário foi considerado um dos caminhos possíveis para expressar as transformações da sociedade”.

É o caso do pioneiro Dziga Vertov – cuja obra fundante da linguagem documental no cinema é objeto da pesquisa de Labaki – e de seu filme Avante, soviete (1926). Tratava-se de “um filme de encomenda”, para o qual Vertov recebeu a tarefa de registrar o trabalho dos sovietes da prefeitura da cidade de Moscou. Mas, em vez de relatar de forma linear quais eram estas obras e trabalhadores, o diretor fez uma reflexão poética sobre o papel deles em toda URSS. Labaki exemplifica que “no filme, cartelas e legendas não têm função descritiva, mas amarram a narrativa num discurso sobre os sovietes em todo o território, que aborda também a superação das dificuldades e destruições da guerra civil, uma memória ainda muito presente em toda sociedade russa, o que obviamente não deixou as autoridades muito felizes com o filme”.

Segundo ele, apesar de algumas vezes desagradar as autoridades, Dziga Vertov nunca foi propriamente censurado pelo governo, mas encontrou dificuldades para produzir, uma vez que “as instâncias de produção e aprovação dos filmes se tornaram cada vez mais burocráticas”. Labaki, porém, esclarece que, sobretudo na primeira década da URSS, quando não havia ainda a imposição do realismo socialista e o estado estava se organizando, havia debate público e estético em torno dos filmes, mesmo quando desagradavam por alguma razão. “Desde a primeira década da URSS, já havia muitos procedimentos diferentes de documentário”, comenta, “que apontavam para caminhos e soluções de linguagem muito diversos, que nos levam até o documentário russo contemporâneo”.

Outro exemplo é O grande caminho, filme de 1927, que traça um panorama da primeira década de URSS. Segundo Labaki, a diretora Esfir Shub realizou o filme como resposta e alternativa a diversas críticas que Vertov recebeu; de que seu trabalho como documentarista era demasiado poetizante e individualista. Apesar de celebrar uma efeméride, Shub fez um filme preocupado em situar historicamente o espectador em relação a todas as imagens, documentos e registos apresentados, construindo com rigor “outro tipo de documento cinematográfico, a partir de outra relação com a imagem, muito eficiente como registro histórico”, esclarece o curador.

A inusitada mistura entre documentário e encenação em Diante do julgamento da história, de 1965, também dá conta da potência diversa da produção documental na URSS. Trata-se de um filme em formato de entrevista, em que um personagem real – ex-opositor do governo revolucionário, um senhor de 80 anos, supostamente arrependido – faz um relato de sua vida a um historiador fictício, ator contratado.

Labaki observa que Diante do julgamento da História é um exemplo de como “você pode fazer um filme com toda segurança e controle possíveis, mas, mesmo assim, ele pode soar contrarrevolucionário”, ou sob outra perspectiva, “mostra como um filme pode ser bom, apesar de toda censura prévia em torno dele”.

De fato, a fonte de interesse e controvérsia do filme está no fato de que o personagem real, que deveria se apresentar como um “derrotado pela história”, ao fazer uma revisão de sua trajetória política, é muito mais rico e interessante que o historiador fictício que o entrevista, ainda que todas as falas do filme sejam roteirizadas. “Mesmo com a crescente burocratização das produções e da necessidade de roteiro pré-aprovado para filmar, esse filme, por apresentar esse personagem tão complexo, ficou três dias em cartaz e depois foi retirado”, explica Labaki. Ainda assim, segundo ele, é um projeto que só poderia existir e causar incômodo dentro “daquelas condições específicas de produção” da URSS.

CONDIÇÕES ADVERSAS
Já a documentarista Marina Goldovskaya, que recebeu uma retrospectiva individual na edição de 2015 do É tudo verdade, sempre bateu de frente com temas incômodos para o governo soviético, especialmente o stalinismo, ao mesmo tempo em que se aproximava de dramas humanos e histórias mínimas em seus documentários, que problematizam a repressão e a violência do estado soviético.

Estreou na direção em 1972 e, em 1988, dirigiu o documentário O poder de Solovki, em que entrevista ex-internos do Solovki, um dos mais famosos campos de trabalho forçados soviéticos. Hoje, aos 75 anos, radicada nos EUA desde 1990, teve um de seus mais recentes filmes, O gosto amargo da liberdade (2010) – que conta a história do assassinato da jornalista russa Anna Politkovskaya – exibido uma só vez na televisão aberta russa.

Assim como ela, o documentarista russo Vitaly Mansky veio a São Paulo a convite do festival apresentar seu longa Relações próximas (2016), em que documenta o dia a dia de sua família, dividida entre duas cidades na Ucrânia, após o início do conflito com a Rússia, em 2014. Ele também exibiu apenas uma vez seu longa em território russo, de onde saiu com o prêmio de “evento cinematográfico do ano”, mas sem nenhuma possibilidade de distribuição ou financiamento para seus próximos filmes.

Ele observa que, mesmo no período soviético, realizadores como Vertov e Goldovskaya foram criticados e tiveram a produção de alguns de seus filmes dificultada; mesmo assim, conseguiram financiar seu trabalho dentro do estado soviético. Mansky conta que os documentaristas russos contemporâneos trabalham “sem financiamento, pelas bordas da sociedade” numa Rússia cada vez mais autoritária e conservadora.

Ainda assim, segundo Mansky, o documentário é talvez o único meio que o público russo encontra no cenário político contemporâneo, “para refletir e analisar questões políticas e existenciais”. De fato, Relações próximas é um filme que discute a guerra – trata da disputa territorial e da intervenção da Rússia na Ucrânia – através dos dilemas e angústias que surgem da rotina familiar de Mansky. Não há nenhum registro de batalha ou violência, mas a tensão entre os familiares – que só se comunicam por redes sociais e telefone –, apartados pelo conflito em território ucraniano, é crescente. Depois que o filme foi finalizado, o documentarista precisou deixar a Rússia e passou a viver na Estônia.

“Gostaria de poder dizer que meu filme não é um filme político”, ponderou,  “mas a política se torna inevitável, uma vez que ofereço uma abordagem singular e distante de qualquer discurso político, sobre um conflito genuinamente político”. “Espero que meu trabalho logo transcenda a esfera política em direção à esfera das questões puramente humanas, onde a arte reside de fato”, afirmou Mansky.

Para Luis Felipe Labaki, por outro lado, há diversos aspectos políticos importantes que advêm da produção documental russa e soviética. Ele recorda o trabalho de formação de jovens cineastas empreendido por Dziga Vertov: “É uma faceta política ainda pouco reconhecida do Vertov, que produziu manifestos, textos e cartas que tinham um sentido prático, eram verdadeiros manuais de como começar a fazer filmes”.

Segundo Labaki, para além do rigor e inventividade formais, pelos quais foi consagrado em sua obra-prima, O  homem com a  câmera (1929), Dziga Vertov nutria a preocupação de passar seu conhecimento adiante. “Um dos jovens que saiu de um círculo de formação conduzido pelo Vertov se tornaria mais tarde outra importante referência do documentário soviético, o cineasta Iliá Kopálin”, pontuou.

LUGAR DO CINEMA
É na preocupação com uma formação política que essas ações do meio audiovisual latino e russo dialogam. Com o intuito similar de retratar e transformar a realidade, nasceu na Argentina o grupo de orientação marxista Cine de la Base. Liderado pelo documentarista Raymundo Gleyzer, o grupo organizava oficinas e projetava filmes em bairros, escolas, universidades e fábricas antes e durante a ditadura militar argentina. Filmes como Ni perdón ni olvido (1972) e Los traidores (1973) tiveram de ser filmados e exibidos clandestinamente. Em 1976, Gleyzer acabou detido pelo estado e permanece desaparecido.

Sergio Muniz conta que, nesse mesmo período, era muito difícil encontrar um filme brasileiro que contestasse abertamente a ditadura militar à qual estávamos submetidos, “o que não quer dizer que não estivéssemos contra o regime, mas não estávamos maciçamente organizados, como era o caso do argentino Cine de la Base”. Ele rememora também a trilogia A batalha do Chile, de Patricio Guzman, sobre o golpe de estado que destitui Salvador Allende e instaurou uma ditadura militar no país, cuja montagem começou no país e terminou no exílio.

No Brasil, experiências pontuais nasceram, contudo, do intercâmbio com outros cineastas e movimentos de resistência no continente, como o documentário Você também pode dar um presunto legal, sobre a atuação do Esquadrão da Morte sob o comando do delegado Sergio Paranhos Fleury. Dirigido pelo próprio Sergio Muniz, em 1971, o filme, porém, só foi finalizado e exibido nacionalmente a partir de 2006; e curiosamente viralizou nas redes sociais brasileiras no início de 2017.

Muniz credita esse fato curioso à tarefa – que é também, segundo ele, um legado – de “dar continuidade a esta história”. Para ele, uma geração que atravessou um período ditatorial não consegue recuperar o fôlego sozinha. “O que ficou do nosso esforço dos anos 1960 e 70, sobrou para o documentário, que assimilou a riqueza e a responsabilidade daquele momento”, diz.

Já para Luis Felipe Labaki, o legado diz respeito às perguntas que os filmes deixam para o cinema e o tempo presentes: “A força estética que filmes como estes trazem e o que eles nos mostram são interessantes para nos perguntar sobre o cinema que fazemos hoje e sobre o que ele nos mostra. Como O homem com a câmera é um filme que faz uma reflexão sobre o lugar do cinema na sociedade soviética daquele momento, ele serve para que nos perguntemos: e hoje, qual é o lugar do cinema na nossa sociedade?” 

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