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Em busca da elegância gráfica

Editoras apostam na publicação de obras com projetos gráficos mais elaborados e criativos, focando num público afeiçoado às formas materiais do livro

TEXTO Erika Muniz

01 de Junho de 2017

Publicação da obra de Heire Muller pela n-1 traz um rasgão individualizado na capa

Publicação da obra de Heire Muller pela n-1 traz um rasgão individualizado na capa

Foto Divulgação

[conteúdo da ed. 198 | junho 2017]

Da cidade de livros tornou donos

estes olhos sem luz, que só concedem

em ler entre as bibliotecas dos sonhos

insensatos parágrafos que cedem

as alvas a seu afã.

 

Em vão o dia

prodiga-lhes seus livros infinitos,

árduos como os árduos manuscritos

que pereceram em Alexandria.


Poema dos dons
, Jorge Luis Borges

A diversidadede suportes de leitura, desde a revolução eletrônica, torna-se cada vez maior. No entanto, percebe-se certa preferência, por parte dos leitores, pelo livro em seu formato analógico. Há, ainda, os que não dispensam a oportunidade de aquirir edições com projetos editoriais mais sofisticados. “Pensar o conteúdo do livro relacionado com o projeto gráfico faz toda a diferença”, afirma Marília Garcia, da Luna Parque. O número de editoras brasileiras que oferecem um apuro minucioso nas diversas etapas dos processos de edição gráfica, e até nas escolhas de seus conteúdos, vem crescendo. Atualmente, esta variedade acaba ampliando o público leitor, estimulando a criação de eventos e de novas alternativas para a distribuição destas obras.

“Há um motivo pelo qual o mercado da música migrou quase que inteiramente para o digital e o de livro não. A experiência de ler um livro é atravessada pela interação com o objeto livro. Uma boa composição como a escolha da tipografia e o tamanho de letra certos tornam essa experiência muito mais prazerosa. Ilustrações e um projeto gráfico pensado de maneira complementar ao texto permitem uma expansão e apreensão melhor do conteúdo. O toque, o cheiro, tudo isso conta”, afirma Júlia Fagá, gerente de comunicação da Ubu Editora.

Com uma equipe formada inteiramente por mulheres – entre elas, a diretora artística Elaine Ramos, responsável pela direção artística da extinta Cosac Naify por 11 anos – e de modo independente, a editora está localizada no Largo do Arouche, em São Paulo. O catálogo da Ubu se volta para textos e criações artísticas que contribuam para o debate contemporâneo, buscando inovar, mas também cuidando para que os projetos gráficos mantenham o diálogo com o recheio. “Para textos densos, por exemplo, o cuidado vai mais no sentido de prover o leitor de facilidade ao manipular os livros, como é o caso da Coleção Argonautas”, explica Fagá. Entre os destaque está a reedição de Os sertões, organizada por Walnice Nogueira Galvão, em comemoração aos 150 anos de Euclides da Cunha, que traz, além do texto integral, ensaios e críticas de autores como a própria organizadora, Antonio Candido, Luiz Costa Lima, Gilberto Freyre e outros. 

No conjunto de editoras que primam por um projeto editorial bastante cuidadoso e vêm investindo no desafio de ampliar sua lista de edições está a Carambaia. Entre os diferentes gêneros já publicados pelo selo – como a prosa, o ensaio, a crônica –, este ano, a equipe pretende agregar o teatro. A proposta do catálogo é misturar obras mais a outras menos conhecidas de autores já consagrados, que ainda não tenham seus principais livros publicados no Brasil, a exemplo da edição de Jaqueta branca, do norte-americano Herman Melville – autor de Moby Dick –, texto que até então era inédito no Brasil.

Outro título de destaque na Carambaia é Salões de Paris,com 21 crônicas escritas pelo autor de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust. Em 2016, a editora paulista lançou sua versão de Dom Casmurro, de Machado de Assis, com projeto gráfico assinado pela designer Tereza Betttinardi. Os exemplares, com as mesmas dimensões do original publicado em 1899 pela carioca Livraria Garnier (17,5 x 11,5 cm), são numerados e trazem uma antiga técnica de decoração de livros, em que as imagens são apresentadas nas laterais das páginas quando o livro está fechado. “Por que a pessoa vai comprar um livro de Machado de Assis nosso e não uma edição estudantil ou lê-lo em formato digital de graça? É uma edição cuidadosa, diferente. Esse leitor, provavelmente mais experiente, já leu Machado, mas quer ter uma edição caprichada. Isso demonstra como um mesmo autor, uma mesma obra, pode ter diferentes funções para diferentes públicos. Um mesmo autor pode funcionar em diferentes versões, em diferentes edições, a gente vê isso acontecer muito lá fora”, explica o diretor editorial Fabiano Curi à Continente.

DISTRIBUIÇÃO
A dedicação das editoras não finda quando os procedimentos de feitura do livro se concluem, pois elas consideram a distribuição como outro ponto importante. Facilitar o acesso do leitor ao produto, bem como garantir que chegue aos leitores é parte da atenção destinada. Para os preços não aumentarem, por conta das numerosas etapas que fogem do modelo de indústria tradicional, uma das alternativas de disseminação tem sido vender através de sites e redes sociais.

É preciso levar em conta que, quando colocados nas livrarias, os livros sofrem acréscimos que chegam a 50% de seus valores. “A gente pensa em todo o processo, e também na entrega. No começo, decidimos que as vendas seriam pela internet e, hoje, trabalhamos com poucas livrarias. Como nossos livros têm um valor mais alto, por conta do custo gráfico e do material, se as vendas fossem no formato tradicional, o custo sairia mais alto, por isso, investimos bastante no site”, afirma Curi.

Bem análoga é a maneira que a n-1 edições disponibiliza seus produtos. “A gente vende no site e distribui em algumas livrarias. Para o nosso público, livrarias comerciais não são muito interessantes”, afirma o editor e diretor artístico Ricardo Muniz. Voltada para campos da filosofia, antropologia, arte e teatro, a editora oferece, em sua página virtual, informações sobre cada obra, além de comentários de outros autores. Quanto aos processos de criação editorial, eles apresentam um trabalho gráfico apurado, que mescla o industrial ao artesanal. Sobre isso, afirma Muniz: “Cada livro é diferente do outro, uma obra múltipla. Pra nós,é importante que sempre haja algum procedimento manual. Procuramos quebrar a estrutura industrial e inserir alguma coisa à mão, valorizando o trabalho humano”.

Todas as intervenções manuais são desenvolvidas a partir do conteúdo das publicações. No caso do livro William James, a construção da experiência,de David Lapoujade, com tradução de Hortência Santos Lencastre, as capas são alinhavadas cada uma por um costureiro específico. “As ideias do William James são as de que a construção da experiência é como um patchwork e o conhecimento também seria isso”, explica o editor. Outro exemplo é Leituras do corpo no Japão, de Christine Greiner, em que, trazendo referências do Oriente, optou-se por desenvolver uma capa que remete à dobradura, quase como em um origami. Cada livro de A gênese de um corpo desconhecido, de Kuniichi Uno, é costurado com uma agulha cirúrgica. Os exemplares de Estamira – Fragmentos de um mundo em abismo, de Estamira Gomes de Sousa e Marcos Prado, são confeccionados com papel kraft, estampados com técnicas de serigrafia e fechados cada um em sacos de lixo, em diálogo com o conteúdo, que traz recortes de discursos de Estamira Gomes de Souza, catadora no Aterro Sanitário do Jardim Gramacho (RJ) e belíssimas imagens de Marcos Prado.

Além de sites e redes sociais, as vendas têm acontecido também através de feiras – como a Ladeira, em Salvador (BA), a Plana (Festival Internacional de Publicações de São Paulo), na capital paulista, a Tijuana, no Rio de Janeiro (RJ) e a Desvairada (SP), esta última, exclusivamente de poesia. Com primeira edição em março deste ano, a Desvairada reúne editoras de diferentes cidades e serve de plataforma para câmbio de informações, vendas e aproximação entre autores, leitores e editoras.

ESCOLHAS PRECISAS
Marília Garcia e Leonardo Gandolfi são dois dos organizadores da Desvairada e responsáveis pela Luna Parque, editora que apresenta publicações com uma elegância gráfica que parece ser simples, mas bastante precisa quanto às escolhas editoriais. Dedicada exclusivamente a iniciativas relacionadas à poesia, a “pequenina” Luna Parque, como a própria Garcia a define, desenvolve projetos que acabam movimentando a produção poética e estabelecem vínculos entre escritores.

Um exemplo disso é a coleção Livros em dupla, em que dois poetas que tenham algum tipo afinidade –  conhecendo-se ou não – são convidados a fazerem um livro juntos. Toda a parte gráfica é predeterminada – bem minimalista –, contribuindo para a compreensão do projeto como uma coleção a cada dupla, mudam-se as cores e as ilustrações da capa, mas tudo estabelecendo diálogo com os poemas. Entre os livros concebidos pelo projeto

estão: 20 sucessos, de Fabiano Calixto e Bruno Brum, Gabinete de curiosidades, de Lu Menezes e Augusto Massi, e Caderno americano, de Fabricio Corsaletti e Alberto Martins. “Cada dupla escolhe trabalhar de um jeito, seja a partir de um tema em comum, seja mandando poemas um para o outro e deixando o projeto se desdobrar a partir disso”, conta Marília Garcia, em entrevista à Continente.

Por outro lado, com a coleção Segunda edição, a Luna Parque reedita livros que já tiveram uma primeira versão, mas estão fora de circulação. Entre os já lançados está Risco no disco, da poeta Ledusha, originalmente de 1981, e Cigarros na cama, do escritor Ricardo Domeneck, que, na estreia, teve uma tiragem de apenas 100 exemplares, em 2011. “Agora, vamos editar um livro de 1979 do pernambucano Jorge Wanderley, que também nunca mais saiu.Além disso, temos publicado algumas traduções e uma revista literária, a Grampo Canoa, de poesia e tradução”, pontua Garcia.

A editora carioca Garupa tem em seu catálogo somente poesia contemporânea e desenvolve livros a partir de uma perspectiva em que o projeto gráfico quebre a ideia desses objetos como um “receptáculo onde o conteúdo esteja afastado da forma”. A Garupa funciona como uma espécie de “coletivo editorial”, no qual Amanda Cinelli, Daniel Dargains, Xu Xuyi e Juliana Travassos compartilham as diversas funções demandadas pelos processos editoriais. Todos eles possuem alguma relação com arte gráfica e, por isso, há a preocupação visual. “É uma forma de o leitor já ter algum tipo de contato com o texto, antes mesmo de lê-lo. Todos os nossos livros possuem algum tipo de acabamento manual”, afirma a editora.

O limite da navalha, do poeta Italo Diblasi, apresenta pedaços de espelhos na capa, trazendo ao conceito questionamentos dos limites entre autor, livro e leitor; em Herói de atari, de Leonardo Marona, o formato do livro é proporcional ao de um cartucho do videogame e mistura referências que vão desde o construtivismo russo à ficção científica. Sobre os processos criativos, Juliana Travassos afirma: “No livro do Italo, percebi que grande parte da poesia dele é em primeira pessoa. Então, para o projeto gráfico, eu precisaria responder a essa primeira pessoa, refletir esse eu no leitor, e por isso, o espelho na capa. O mesmo acontece no da Adelaide Ivánova, que traz como tema um assunto muito sério, por isso as mãos sujas de sangue. A preocupação é sempre partir do texto, para trazer o conteúdo para os projetos gráficos”. 

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