Reportagem

Os corpos que existem, mas não importam

Edição deste ano da 'documenta', importante evento de arte contemporânea do mundo, coloca em pauta crises globais, como os grupos não reconhecidos nos poderosos mecanismos de legitimação social

TEXTO Bárbara Buril

01 de Agosto de 2017

O 'Monumento para os estrangeiros e refugiados', do artista nigeriano Olu Oguibe, em Kassel

O 'Monumento para os estrangeiros e refugiados', do artista nigeriano Olu Oguibe, em Kassel

Foto MAYARA MARQUES

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 200 | agosto 2017]

“Quando se
pode considerar que um corpo existe? O que conta como um corpo? Pode o corpo ser a propriedade de alguém? E se ele for a propriedade de alguém, mas o proprietário e o tal sujeito do corpo não coincidirem? Que tipo de subjugação política é essa?”, provoca o filósofo Paul B. Preciado, no ensaio My body doesn’t exist (em português, Meu corpo não existe), que integra o livro The documenta 14 reader, antologia de poemas, documentos e imagens que orientaram a curadoria da exposição de artes visuais, realizada este ano em Kassel, na Alemanha, e em Atenas, na Grécia. No texto, Preciado, que também é o curador de Programas Públicos da documenta 14, problematiza a crise epistêmica que surge quando um corpo transita de um gênero para outro nas sociedades onde o regime político de gênero concebe apenas a existência de dois tipos de corpos: os masculinos e os femininos.

Paul B., que iniciou em 2015 um processo de transição, testemunhou, ele mesmo, a crise dos velhos regimes de gênero: no registro civil de Barcelona, onde deu entrada na “retificação de atribuição de sexo no certificado de nascimento”, teve de mostrar um documento médico que comprovava a sua “disforia de gênero” e outro que atestava o fato de ter ingerido testosterona sintética. Ao entregar os dois documentos, Preciado não pôde senão render-se a um sistema onde, para ver-se reconhecida em seu gênero e seu novo nome, a pessoa trans é constrangida não somente a passar por exames médicos, mas também a aceitar um diagnóstico de anormalidade.

Durante o processo de transição, Preciado também enfrentou entraves na adoção do nome “Paul Beatriz” (chamava-se Beatriz Preciado até 2015), impostos com a justificativa de que esse nome causava uma “ambiguidade sexual”, embora existam vários “José María” na Espanha. Viu o seu registro de nascimento ser destruído semanas antes de ter o seu novo nome publicado no Registro de Nascimento Civil, passando dias sem, a rigor, existir. Se houvesse a manutenção de dois registros de nascimento ou um registro especial de pessoa trans junto ao registro de nascimento anterior, isso significaria que o Estado, em seus procedimentos legais, reconheceria a existência dos corpos trans. Mas, para o Estado espanhol (e para muitos outros), estes corpos não existem. Ou não importam.
Os corpos que não existem para os poderosos mecanismos de legitimação social estão representados em muitas das obras escolhidas para integrar a documenta 14, inaugurada no dia 8 de abril em Atenas e no dia 10 de junho em Kassel. Na Grécia, a exposição foi até 16 de julho; na Alemanha, segue até o dia 17 de setembro. As duas versões coexistiram, então, durante os meses de junho e julho.

Paul B PreciadoPreciado problematiza a crise epistêmica quando um corpo trasita de um gênero a outro

Pela primeira vez, aquela que é considerada “as Olimpíadas das artes visuais” acontece também fora da Alemanha. Orientada pelo tema e lema Aprendendo de Atenas, a 14ª edição da documenta utiliza a cidade grega como metáfora das crises vivenciadas globalmente em diversos setores: desde as econômicas, experienciadas intensamente na Grécia (mas também em outros lugares do mundo), até as migratórias, chamadas por alguns críticos de “crise humanitária”, passando pelas ambientais e políticas. Ao acontecer em Atenas, ícone da democracia no mundo, a documenta também aproveita para refletir sobre as crises nas democracias representativas globais.

Essa amplitude temática parece achar um denominador comum nos corpos que existem, mas não importam. Não por acaso, o Programa Público da documenta 14, dirigido pelo filósofo Paul B. Preciado, dedica-se mais intensamente a eles através do Parlamento dos Corpos, uma série de iniciativas voltadas a representar e a documentar as pessoas que resistem a medidas de austeridade e a políticas xenófobas. Nas obras da documenta, não diretamente vinculadas ao seu Programa Público, os corpos também persistem.

É possível encontrar-se com os corpos queer e com a integridade dos corpos que foram despedaçados, nas obras da artista Lorenza Böttner; mas também com os de mulheres, em Cecilia Vicuña; com os de prostitutas, nas criações de Annie Sprinkle e Beth Stephens; com os de ciganos, em Nikhil Chopra; com os de imigrantes, em Olu Oguibe; com os negros, em Ali Farka; e ainda com os imigrantes turcos, na obra dedicada a Halit Yozgat, assassinado por neonazistas em Kassel, em 2006. Nos espaços expositivos ocupados pela documenta em Kassel – sendo os principais deles o Fridericianum, a Neue Galerie, a Neue Neue Galerie, a documenta Halle e a Kulturbanhof –, deparamos os corpos que, sim, existem, mas que, por não encarnarem a regra, não importam para os mecanismos de legitimação brancos, heterossexuais e colonialistas.

É inegável toda a aura de contradição e polêmica que cerca esta edição da documenta: pós-colonial no seu discurso, mas por muitos considerada colonialista em suas práticas de inserção no cenário social e artístico na Grécia; livre no seu processo criativo, mas refém dos tradicionais esquemas privados de patrocínio; portadora de uma vontade de transformação social, ao mesmo tempo que frequentemente isolada dos espaços de socialização que extrapolam o campo da arte. Apesar de todas essas contradições, fazem-se presentes, na exposição, os corpos que não importam, mas existem. Ainda que possam ser representados, no final, por corpos mais convencionalmente legitimados.

CORPOS ABJETOS
As obras da falecida artista chilena Lorenza Böttner (1959-1994) mostram exatamente um corpo que, ao não se enquadrar nas regras de saúde e normalidade, ganha o seu lugar apenas na norma do que é monstruoso. Lorenza Böttner, nascida Ernst Lorenz Böttner, no Chile, em uma família de origem alemã, teve os dois braços amputados depois de um choque elétrico que levou ao escalar um poste de luz. Após este acidente, Lorenza Böttner seguiu com a mãe para a cidade de Lichtenau, próxima a Kassel, onde cresceu sendo considerada deficiente. Recusou o uso de próteses e desenvolveu o interesse pelas artes, o que a levou a estudar pintura na Escola de Arte de Kassel. Como trabalho de conclusão de curso, escreveu a tese intitulada Behindert? (em português, Deficiente?), em que questionava a categoria de deficiência, rejeitava a equiparação da deficiência com aquilo que é freak ou monstruoso e refletia sobre as habilidades dos pés e da boca na atividade da pintura. 

Na época, adotou o nome Lorenza, passando a afirmar publicamente uma identidade feminina. Nos seus desenhos, pinturas e fotografias, veem-se representações suas nas quais a ausência de braços e a ambiguidade sexual não só não impedem a sensualidade de um corpo que comumente é dessensualizado na categoria do monstruoso, como se tornam justamente os elementos de sua sensualidade. Ao contrário de freak, o corpo de Lorenza é representado, nos seus desenhos, pinturas e fotografias, de modo sensual porque misterioso em suas ambiguidades, e também sensível, como na pintura em que ela se representa alimentando um bebê com uma mamadeira ou pintando uma tela com um pé, como se estivesse dançando balé. 

Lorenza Böttner

Lorenza Böttner
Lorenza Böttner trabalha com o próprio corpo, fora das regras e tido como monstruoso

A subjetividade transgênera e sem braços de Lorenza exige, assim como também exige Preciado, modos e discursos de representação que afirmam a existência trans não como um desvio que precisa ser corrigido, mas como uma existência que se legitima em sua dignidade humana, não monstruosa. As obras de Lorenza Böttner – desenhos, fotografias pessoais, pinturas, convite de lançamento e outros documentos – podem ser encontradas na Neue Galerie.

É possível ver, na produção de Lorenza, aquilo que aponta Judith Butler no livro Bodies that matter (em português, Corpos que importam), referindo-se aos corpos abjetos: eles não só fortalecem exatamente as normas ao comporem as margens dela, como também se qualificam como o oposto dos corpos que importam, “dos modos de viver que contam como ‘vida’, das vidas que vale a pena proteger, das vidas que merecem ser salvas, das vidas que merecem o luto”. Os corpos que não causam luto são precisamente os corpos que não importam. As suas tragédias não estão nos jornais. 

Como teria dito Butler, o corpo do turco Halit Yozgat também não importa. Em 2006, o jovem de 21 anos foi assassinado dentro da lan house de sua família na cidade de Kassel, na região de Hesse. Tornou-se a nona vítima de uma série de assassinatos de imigrantes na Alemanha. Estranhamente, comprovou-se a presença do agente do Serviço Secreto da região de Hesse na lan house, no mesmo dia do assassinato de Yozgat. Andreas Temme disse que não escutou as balas, não sentiu o cheiro da pólvora, nem viu o corpo de Halit no chão quando foi embora. Em vez de investigar a estranha presença de Temme na lan house no dia do assassinato, a polícia alemã se dedicou a investigar a vida da família dos assassinados: se havia antecedente criminal, envolvimento com drogas ou se estavam legalizados no país. Ao contrário do que aconteceria se as vítimas fossem alemãs, não se viveu um luto coletivo.

Um dos trabalhos mais interessantes da documenta 14 é justamente a série de documentos – fruto de investigações, pesquisa, ativismo social e criação artística da Sociedade Amigos de Halit – que problematiza o que se chama de “NSU-Complex”, um composto de terror neonazista e de um ciclo crescente de racismo institucional e estrutural em disseminação na sociedade alemã contemporânea. A presença de um trabalho que não se enquadra tão facilmente nas definições mais tradicionais de “obra de arte” torna-se uma questão secundária diante da importância dos documentos ali apresentados. O material compreende registros dos protestos que, semanas após o assassinato de Halit Yozgat, foram organizados, sob o slogan No 10th Victim (em português, Não à décima vítima), pelos parentes das vítimas de violência racista. A obra também reúne depoimentos dessas famílias (ouve-se neles o desamparo diante da falta de solidariedade e apoio do Estado alemão), e ainda uma simulação de alto nível realizada pela Forensic Architecture – uma agência de pesquisa sediada em Londres, que fornece evidências novas para investigações com base em análises arquitetônicas –, na qual se comprova, através de testes de som e cheiro e de simulações temporais, que Andreas Temme estava na lan house no momento do crime e que seria impossível ele não ter ouvido o som das balas, sentido o cheiro da pólvora e visto o corpo de Yozgat no chão. A conclusão que se tem, com a simulação, é que ou Andreas Temme foi testemunha do assassinato do jovem turco ou foi ele mesmo o próprio assassino. A versão contradiz aquela que ainda é tomada como verdadeira pelo Estado alemão, para o qual não há qualquer envolvimento de Temme – só em 2011 foi anunciado publicamente que os assassinatos tinham sido cometidos por um grupo de neonazistas, o Nationalsozialistischer Untergrund (NSU), e, mesmo após essa comprovação, não houve pedido de desculpas oficial à família de Halit pelo desrespeitoso tratamento recebido na ocasião do assassinato. A obra pode ser encontrada na Neue Neue Galerie.

Todos os documentos foram concedidos pelos membros da Sociedade Amigos de Halit, que se formou durante os encontros do Parlamento dos Corpos. Desde junho, também se vê em criação a Sociedade dos Amigos de Lorenza Böttner, voltada para a defesa da diversidade física e neurológica das pessoas. Uma das propostas mais interessantes do Parlamento dos Corpos é justamente incentivar a formação de Open Form Societies (em tradução livre para o português, Sociedades de Formas Abertas), grupos que se encontram para discutir questões que concernem a todos os envolvidos, através de leituras, escritas, palestras e debates. Desde 2016, outras sociedades vêm se constituindo, como a Sociedade pelo Fim da Necropolítica, coordenada por Paul B. Preciado, e a Sociedade Noosférica, orientada pelo artista Angelo Plessas. A ideia é que essas sociedades transformem as imaginações políticas segundo um encontro mais afetivo que representativo, como acontece de modo geral nas democracias representativas no mundo.

A happening, de Dimitris Alithinos
'A happening', de Dimitris Alithinos, põe o corpo feminino numa espécie de sessão de tortura

HETEROTOPIAS
Assim, nas obras encontradas na exposição, exprimem-se também reflexões sobre como o medo dos corpos que não se encaixam na norma e o terror aplicado a esses corpos compõem o pano de fundo das vidas nas sociedades capitalistas contemporâneas.“Apesar do chamado militante, empoderador – Esqueça o medo! –, formulado pelo artista Artur Zmijewski em 2012 como o título de sua 7ª Bienal de Berlim de Arte Contemporânea, o mundo como o conhecemos hoje permanece um lugar (e tempo) de mais medo que esperança. De fato, o medo é a moeda comum do neoliberalismo – precisamente porque ele pode ser mais facilmente capitalizado do que o desejo e a alegria sem limites”, escreve o diretor artístico da documenta 14, Adam Szymczyk, no ensaio Iterabilidade e alteridade – aprendendo e trabalhando de Atenas.

A obra Acropolis redux (The director’s cut), do artista sul-africano Kendell Geers, por exemplo, apresenta uma série de estantes e prateleiras de aço ocupadas por arames farpados de várias qualidades, como se estivéssemos em um depósito de materiais que serão usados posteriormente para cercar espaço e proteger territórios – Geers engajou-se aos 15 anos com o Movimento Antiapartheid na África do Sul, e muitas das suas obras refletem sobre as contradições morais e éticas do sistema apartheid. A obra, que integra a coleção do Museu Nacional de Arte Contemporânea (EMST) de Atenas, pode ser vista no museu Fridericianum, onde também estão outros itens da coleção que foi concedida temporariamente à documenta de Kassel. 

É no Fridericianum, aliás, que está a maior parte das obras criadas por artistas gregos. Lá se encontra A happening, de Dimitris Alithinos, onde se vê a representação do corpo de uma mulher deitada no chão com as mãos atadas. Ao seu lado, um gravador de som onde um rolo de fita já foi completamente gravado. Mesmo assim, ele continua girando, como se não houvesse mais ninguém no local para desligar a gravação. A posição da mulher e o símbolo do gravador lembram, então, uma sessão de tortura.

Apesar de essas obras terem sido criadas em momentos históricos bastante diferentes do atual (a primeira é de 2004 e a segunda, de 1973), elas se unem no presente por ambas aludirem a lugares que funcionam, ironicamente, como não-lugares. Ou, como diria Michel Foucault, por aludirem ambas a heterotopias: espaços de desvios, lugares onde estão os indivíduos cujos comportamentos ou corpos desviam em relação à média ou à norma exigida. São as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas, mas também os campos de concentração, as prisões, as salas de tortura. O medo de todos aqueles corpos e modos de vida que não se encaixam na norma se traduz, então, na criação desses espaços diferentes, “um espaço de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos”, escreve Foucault. 

O choque causado pelo Monumento para os estrangeiros e refugiados, do artista nigeriano Olu Oguibe (leia entrevista exclusiva com ele AQUI), liga-se justamente à ousadia artística de situar os não-lugares no centro daquilo que é tomado como um lugar. O obelisco de 16 metros, erigido no centro da Königsplatz, um dos pontos mais centrais de Kassel, tem em sua estrutura a seguinte frase, tirada de Mateus 25:35: “Eu era um estranho e vocês me acolheram.” A expressão é lida em cada uma das quatro faces do obelisco num idioma específico: inglês, alemão, turco e árabe, as línguas mais faladas na pequena cidade hessiana.“Penso que minha intenção era reconhecer e registrar a longa história da cidade com a migração dentro e fora de Kassel, na Europa e no resto do mundo. Como afirmei em outro lugar, todos nós somos viajantes, no final do dia, e todos os viajantes esperam que, não importa o propósito de sua jornada, haja alguém pelo caminho que seja gentil o suficiente para dizer, nas palavras famosas de Bob Dylan: ‘Entra, e eu vou te dar abrigo da tempestade’”, conta Oguibe – que também é professor de arte e estudos afro-americanos da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos – para a Continente (confira a entrevista completa com ele AQUI).

Assim, o lugar escolhido para situar o obelisco foi não só essencial na construção do sentido da obra como também fez com que ele incorporasse um forte elemento político. Se tivesse sido erigido às margens da cidade, poderia ser considerado um ultraje à presença (nada tímida) dos imigrantes em Kassel. Estando na Königsplatz (o único local na cidade onde se encontram regularmente a parte do norte, menos privilegiada e predominantemente imigrante, e a parte mais nativa e mais afluente do sul), o monumento subverte as dualidades lugar/não-lugar, imigrante/nativo ou margem/centro, unindo-as sob o denominador comum do sentimento unificador de hospitalidade. 

Como relata Oguibe, o monumento já provocou uma série de reações na população local: “A resposta pública para o trabalho foi esmagadoramente positiva em cada canto. Nós até recebemos relatos de pessoas chorando quando viam o obelisco. Jovens agora se reúnem lá, pessoas se sentam na base do obelisco para socializar, ou para esperar pelo trem, ou para usar o wi-fi público, e foi exatamente isto o que eu planejei criar, ou seja, um trabalho com o qual as pessoas se sentissem suficientemente confortáveis a ponto de terem um senso de propriedade, enquanto ao mesmo tempo a obra comunicasse uma mensagem universal poderosa.” O artista nigeriano, que há décadas realiza pesquisas sobre arte pública, conta que estas reações foram, de alguma maneira, previstas por ele. “Eu sou muito sensível à política e à logística do espaço aberto, e tento usá-las em meu pensamento como fatores no momento que realizo um trabalho a ser situado em local público”, conta.

Como resultado, já há uma certa pressão social para que o monumento continue na Königsplatz, mesmo após a documenta. Devido ao impacto e à repercussão positiva da obra entre os residentes em Kassel, Oguibe recebeu o Prêmio Arnold Bode 2017 das mãos das autoridades municipais. O prestigiado prêmio, que traz o nome do fundador da documenta, tem o valor financeiro de 10 mil euros e o simbólico de reconhecer os artistas contemporâneos que tenham emprestado os seus esforços mais intensamente à arte contemporânea. 

Além do monumento de Olu Oguibe, a heterotopia do imigrante também é explorada na obra Hopscotch (em português, Amarelinha), do artista grego Vlassis Caniaris, na qual se vê um grupo de homens com malas antigas e paletós diante de um jogo de amarelinha. Em cada quadrado, lê-se uma palavra específica em alemão. Na primeira, “comissão de trabalho”, depois “desorientação”, em seguida “consulado”, “situação de trabalho” e assim vai. Cada quadrado da amarelinha refere-se a um lugar ou condição que um recém-chegado tem que ocupar até se integrar em uma sociedade. O jogo da amarelinha surge como teste de inclusão social, assim como o exame de testosterona é o teste para a inclusão em um novo gênero. 

Hopscotch
Imigração é tema da obra 'Hopscotch' (em português, 'Amarelinha'), do grego Vlassis Caniaris

Ou, como também escreve Preciado, assim como a pessoa trans, o migrante e o refugiado são apátridas. São os viventes de heterotopias. “Eles deram um passo para fora da linhagem do estado-nação, mas também do patriarcado. Eles todos experienciam a suspensão temporal de seus status políticos. É demandado tanto da pessoa trans como dos refugiados que nós destruamos nossos certificados de nascimento para que possamos nos ‘integrar’ na sociedade dominante que bondosamente nos recebe”, escreve Preciado, ironicamente. 

Na fachada do Fridericianum, a frase Being safe is scary (em português, Estar seguro é amedrontador), intervenção da artista Banu Cennetoğlu, traz uma inversão. E a inversão aqui presente evidencia o que há de heterotópico no “mundo real”, no mundo em que vivemos segundo a norma, no mundo onde não cabe o desvio. Como é famosamente conhecido, a premiê da Alemanha Angela Merkel, respondendo ao BILD-Zeitung sobre que tipos de sentimentos a Alemanha lhe suscita, disse: “Eu acho que uma janela bem-fechada! Nenhum país pode fazer janelas tão boas e bem-fechadas.” Estar a salvo, dentro de um quarto onde as janelas estão bem-fechadas, surge como um cenário amedrontador na obra da artista Banu Cennetoğlu. No entanto, até dentro do quarto onde as janelas estão bem-fechadas, existe o lugar do desvio. E este lugar é, para Michel Foucault, o lugar da compensação.

LIMITES 
Aquela que é considerada uma das maiores exposições de arte contemporânea do mundo, a documenta, chega à sua 14ª edição com a intenção de refletir sobre as condições dos corpos que não se encaixam na norma. Na maior parte dos trabalhos artísticos escolhidos para integrá-la, realmente veem-se reflexões bastante provocativas sobre o cenário de crise no qual vivemos. Em seu discurso curatorial, mas também nos trabalhos que ocupam os espaços expositivos em Kassel, a documenta traz os sentimentos de vergonha, frustração, medo e desorientação, que parecem, realmente, compor uma espécie de estado de espírito global. 

Percebem-se esses sentimentos em obras como o Parthenon de livros, de Marta Minujín, Nós (todos) somos o povo, de Hans Haacke, Os desastres da guerra, de Daniel García Andújar, e tantas outras criações que não poderiam ser exploradas aqui largamente, pelas dimensões limitadas do presente texto, em comparação com a megalomania artística que é a documenta

Esta questão, aliás, parece ser uma das mais problemáticas da documenta 14. O diretor artístico Adam Szymczyk ressaltou, na conferência de abertura da exposição, que a documenta seria orientada, nesta edição, pelo que ele chamava de aneducation – um misto de prática social e princípio pedagógico que exige que se abandonem preconceitos, que se mergulhe no não saber, que se “desaprenda”, para que se possa aprender novamente. 

Só seria possível “aprender de Atenas”, como diz o título desta edição, através do princípio da aneducation: entrando em um lugar sem a bagagem anteriormente acumulada de ideias preconcebidas, no que poderia também ser interpretado como uma postura não colonialista de entrada em um território alheio. O problema desse princípio é que, para muitas pessoas que chegaram a conhecer a versão ateniense da documenta, ele não foi exatamente realizado: não teria havido uma troca realmente produtiva entre o cenário artístico local e a equipe da documenta, que teria chegado a Atenas como um óvni, utilizando a cidade apenas como “espaço cenográfico” (confira AQUI a crítica de Moacir dos Anjos).

Em Kassel, este tipo de incômodo não é percebido, porque, afinal, como diz o slogan da cidade, repetido inclusive nos anos em que não há documenta (acontece a cada cinco anos), Kassel é “a cidade da documenta”. Mas o que se vê como a principal problemática da mostra também está associado ao princípio da aneducation: espera-se que, de alguma maneira, o evento em si, no seu modo de se apresentar, também proponha uma desautomatização dos modos pelos quais normalmente se vê uma exposição. 

Como o próprio Szymczyk escreve no ensaio Iterabilidade e alteridade – aprendendo e trabalhando de Atenas, fez parte do processo de criação da documenta a invenção de ferramentas que pudessem desmantelar os termos do engajamento com uma exposição, visando a desafiar a própria exibição. O princípio da aneducation também tinha a intenção de abalar a própria estabilidade da mostra. Assim, a documenta deveria propor, a todas as pessoas envolvidas, dos visitantes aos produtores, “gestos simbólicos e práticos, intervenções, celebrações e rituais”. 

Não é bem isso o que se dá na exposição. “O problema da documenta é que tudo aqui é para ver, nada é para brincar, para jogar”, problematiza o artista paquistanês Rasheed Araeen, autor de obras que requerem a interação do público com a criação, como acontece em Shamiyaana – food for thought: thought for change, que ele montou em Atenas. Araeen armou uma tenda onde servia comida mediterrânea, a fim de que o público pudesse se encontrar de modo celebrativo e ritualístico. A interação proposta por Shamiyaana, junto com o Monumento para os estrangeiros e refugiados, de Olu Oguibe, parece ser uma das exceções à regra da normalidade expositiva ainda encontrada na documenta.

De fato, a mostra, no seu modo de se apresentar, não difere em nada das exibições que podem ser vistas em museus comuns da Europa. Cada espaço conta com as suas obras e cada obra com as suas placas informativas, onde estão escritos o nome e a data de nascimento do autor, o nome e a data de criação da obra. Além disso, são dezenas de obras por espaço expositivo, o que torna a experiência do visitante não só cansativa – é preciso ler e ver muitos itens a cada visita – como confusa. Não há tempo de digerir cada obra, porque, logo depois que se vê e se sente o impacto de uma criação, deve-se passar para outra. Como resultado, é impossível não sentir cansaço e desorientação no final do trajeto.

Assim, apesar das intenções de desafiar o próprio modelo expositivo, desestabilizando-o, o que ainda se percebe é uma mostra que funciona nos moldes tradicionais das grandes exposições de arte. Esta dificuldade de romper a estabilidade da documenta chega a ser abordada pelo próprio Szymczyk: “Esta estabilidade parece difícil de ser superada, especialmente em grandes exibições como a documenta, que depende, em uma miríade de modos, do seu contexto de produção – uma complexa, mas não inteiramente invisível rede de interesses políticos e comerciais – e que lida com a demanda do sucesso instantâneo, seguido pela expectativa de uma inteligibilidade imediata do conteúdo produzido.” 

O claro engessamento da documenta enquanto modelo expositivo e as polêmicas que tangem ao modo pelo qual a instituição se inseriu em Atenas, a ausência de artistas brasileiros, a pouca representatividade dos artistas latino-americanos e o acesso à exposição por um público de privilegiados mostram-se, então, como os principais problemas da 14ª documenta. Mas é preciso lembrar que estes não são problemas específicos desta edição: desde que foi criada, em 1956, a documenta se enquadra no modelo das grandes exposições de arte; traz inevitavelmente em seu discurso a voz do Estado alemão, já que é uma instituição pertencente à Fundação Federal de Cultura da Alemanha; e, por sua localização no Norte geográfico, político e social, sempre teve o seu acesso restrito. Se esta edição não tivesse vindo com o discurso de questionar toda esta ordem, não teria sido acusada de cinismo.

Mesmo assim, entre uma documenta que aceita a sua condição de Norte e se fecha em si mesma, à semelhança de uma “janela bem bonita e bem-fechada”, como diria Angela Merkel, e outra que, pelo menos, assume a condição de navio (ainda que um navio do Norte), a“heterotopia como excelência”, como diria Michel Foucault, prefere-se aqui a segunda opção.

BÁRBARA BURIL jornalista, mestre em Filosofia pela UFPE.

* A repórter foi a Kassel através de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).

Confira nossa cobertura completa 
AQUI.

Publicidade

veja também

“Eu não sabia o que era Carnegie Hall”

Samuca

[EXPOSIÇÃO] Precisão e acaso