Crônica

Alerta de spoiler

TEXTO Victor Heringer

02 de Outubro de 2017

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ILUSTRAÇÃO Maria Júlia Moreira

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 202 | outubro 2017]

Reinaldo, de Grande sertão: veredas, é mulher. Bruce Willis é um fantasma em O sexto sentido. Jesus Cristo morre no final.

O fluxo descontrolado de informações no contemporâneo fez brotar, como efeito colateral, uma curiosa espinha na testa da mente humana: o medo do spoiler, que pode chegar a níveis patológicos, a ponto de causar desavenças entre pessoas até então consideradas razoáveis.

O spoiler, mais do que a mera divulgação de aspectos de um enredo, é a revelação capaz de estragar a apreciação de uma obra. “To spoil” significa justamente “arruinar”, “apodrecer” ou, por extensão, mimar alguém, sobretudo crianças.

Édipo mata o próprio pai e se casa com a mãe; ao descobrir o que fez, fura os olhos em desespero. Para o purista, um spoiler pode ter consequências similares. Muitas vezes, a revelação de um ponto importante da trama faz com que se perca totalmente o interesse na obra. Charles Curkin, em um texto publicado na Paris Review, intitulado The rise of the spoiler alert, afirma que “já não vemos filmes ou lemos livros pela gestalt”, hoje o poder da arte está diretamente ligado às emoções que é capaz de suscitar. Ou seja, sem a surpresa, acaba a graça.

Mas talvez o impacto mais ou menos nefasto da revelação dependa da qualidade da arte. Afinal, o oráculo de Delfos – o maior spoiler da Antiguidade – diz a Édipo que ele vai matar o pai e se casar com a mãe. Mesmo sabendo, Édipo vai ao encontro de seu destino. E nós o acompanhamos com um frio na espinha. Alguém deixaria de assistir a uma montagem de Édipo Rei porque já conhece o fim?

A ascensão do spoiler é relativamente recente e chama a atenção de artistas contemporâneos. Para o músico e escritor Dimitri Rebello, a “spoilerfobia” indicaria que “o interesse da obra reside somente no seu aspecto factual – como se a obra fosse a sua trama e não o tratamento dado a esta”. De certa maneira, a atenção desmedida ao spoiler revelaria que grande parte dos produtos culturais, ou o modo como os consumimos, se baseia numa concepção empobrecida de narratividade.

Talvez por isso, como explica o cineasta e poeta Frederico Klumb, o fenômeno seja mais visível nas redes sociais e esteja relacionado com mais força ao mundo das séries, “estruturadas em temporadas e com trama vinculada de um episódio para outro”, ou aos filmes de super-heróis.

O escritor Daniel Galera se refere a “um certo fetiche da surpresa” no contemporâneo, mas concede que a virada de trama é um dispositivo narrativo importante. Segundo o autor, “em suas piores versões, ele se torna uma muleta para histórias fracas e malcontadas. Nas melhores versões, enriquecem histórias mais exigentes, complexas, e que são genuinamente inesperadas”.

Entende-se sem dificuldade como os golpes de enredo podem se tornar muletas para uma obra de qualidade duvidosa – quantas histórias de detetive não nos fizeram suportar um desenvolvimento penoso simplesmente com a promessa da revelação final? Quem é o assassino? Era o mordomo.

Contudo, como diz Klumb, “o espectador não é um cavalo ou um burro tentando alcançar uma cenoura”. A necessidade de resolução e do clímax “nos foi empurrada garganta abaixo por um cinema de mercado muitas vezes alienante”, uma herança negativa do audiovisual americano. Para ele, é preciso “fugir o quanto for possível do lugar-comum. Não com revelações diretas, mas com a forma”.

No caso de peças complexas, a virada de trama “genuinamente inesperada” nos sugere um curioso paradoxo. Ao lermos Grande sertão: veredas sem saber que Reinaldo/Diadorim é mulher, recebemos o impacto da revelação. Era inesperado. Ao reler o livro conhecendo o enredo, o impacto não é o mesmo, mas adquiriu uma camada a mais: de certa forma, potencializou-se. Sentimos a surpresa e o amor do protagonista Riobaldo genuinamente, porque não estamos ali só para satisfazer o impulso de chegar ao fim. É uma virada de trama cuja potência não se degenera com a repetição.

Uma hipótese: não existe spoiler de obra boa porque o conhecimento do enredo magicamente a enriquece. Para os que acessaram a obra-prima de Guimarães Rosa pela minissérie que foi ao ar na Rede Globo em 1985, esse paradoxo estava encarnado na figura de Bruna Lombardi, que fez o papel de Reinaldo/Diadorim. Poderíamos, portanto, batizá-lo de “paradoxo Lombardi”.

Isso não quer dizer que não haja prazer em adentrar uma obra carregando somente a bagagem cultural acumulada, para preservar os primeiros arroubos. “Se eu preferia entrar totalmente ingênuo em uma obra? Talvez”, diz Rebello, mas descarta a existência de um receptor absolutamente ignorante. Mal ou bem, sabemos muitas coisas do mundo, dos livros, filmes etc. Ou seja, entramos com bagagem, nunca só com a roupa do corpo ou, como querem os puristas, nus.

Deslocar a atenção para outras formas artísticas talvez ajude a aclarar a questão. Por exemplo, existe spoiler na música? Para Rebello, a música em grande medida depende do spoiler: há um acordo tácito entre músico e ouvinte que estabelece uma expectativa em relação ao gênero musical, ao sistema tonal, às repetições, aos ritmos, às melodias e às rimas.

“Entramos na música já sabendo o que deve acontecer; em geral, é isso mesmo que acontece. E ainda assim a música pode nos oferecer não só a satisfação da familiaridade, mas nos surpreender pelo modo como aquela obra específica lida com elementos e regras já tão conhecidos”, explica.

Dito de outra maneira, a música vive do paradoxo de Lombardi. Se uma canção se atém ao já ouvido de forma muito próxima, nós nos desinteressamos. Se é boa, o que nos pega é a competência em jogar com o que já se conhece. A música pop é mestra nesse jogo.

Uma das reações à hiperinformação é o medo de ficar sabendo, essa espécie de ansiedade que se revela na aversão ao spoiler, mas desce a camadas mais profundas, que não podemos escavar completamente em poucas páginas. Uma questão que se pode levantar, entretanto, é o papel da crítica neste contexto. “Se estamos falando de crítica propriamente dita”, diz Galera, “essa que procura analisar obras de arte e produtos culturais à luz de suas ideias, conceitos, linguagens, formas, ramificações e contextos diversos, o pudor do spoiler tem um custo imenso”. Não lidar com a obra em sua integridade por temor a revelar pormenores do enredo tornaria o debate menos fértil.

De fato, é algo a se pensar. A crítica não judicativa (isto é, aquela que não se limita a conceder estrelinhas a um trabalho) se propõe a incrementar a bagagem do receptor. Se ele se recusa a entrar nas obras paramentado, a crítica perde sua relevância, alimentando um ciclo vicioso que terminaria na nudez total. Um final pouco feliz.

A questão, enfim, parece estar relacionada ao conhecimento. Saber é mais fértil do que não saber, porque o conhecimento se alimenta de si próprio para se alastrar. E, no fim das contas, a arte que interessa, como diz Klumb, é aquela “que tenta ser fiel a uma imensa carga de aleatoriedade da vida”. Essa aleatoriedade da vida não é uma surpresa, mas é o nosso espanto maior.

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