Resenha

Todo Leonilson

Catálogo em três volumes dedicado a toda obra do artista cearense, morto em 1993, levou duas décadas para ficar pronto, trazendo 3.400 registros dos variados meios utilizados por ele

TEXTO Bitu Cassundé

02 de Outubro de 2017

Leonilson ganhou catálogo percorrendo toda a sua rápida e pontual trajetória

Leonilson ganhou catálogo percorrendo toda a sua rápida e pontual trajetória

Foto Ronaldo Miranda/Arquivo pessoal

1.0
O artista José Leonilson (1957–1993), um dos principais nomes da arte contemporânea brasileira, ganha mais um reconhecimento: uma publicação de seu trabalho em catálogo raisonné (edição que compila toda a obra de um artista). A obra é resultado de um profundo estudo acerca de seu processo poético, que exigiu mais de 22 anos de pesquisa, catalogação e conservação.

O trabalho foi capitaneado pela equipe que integra o Projeto Leonilson e contou com a colaboração de alguns pesquisadores: quatro no Brasil — Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte — e cinco no exterior, que realizaram o estudo em sete países — Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália e Viena.

Gabriela Dias, uma das coordenadoras editoriais, indica detalhes do processo técnico que estruturou a edição: “A ideia do raisonné é realmente apresentar ao público o processo de criação do artista através de sua obra. Esse assunto foi justamente tema de uma mesa-redonda que fizemos no MAM–SP em dezembro de 2015, intitulada Como catalogar uma obra de arte contemporânea de um artista já falecido. O evento foi mediado por Ana Lenice e Ricardo Resende e teve como participantes Eduardo Brandão, Felipe Chaimovich, Leda Catunda, Lisette Lagnado, Margarida Sant’Anna, Pedro Mastrobuono e Pierina Camargo”.

O catálogo raisonné teve o patrocínio da Fundação Edson Queiroz — que também apresentou recentemente, no seu espaço cultural, como parte da programação do lançamento, a exposição Leonilson – Arquivo e memória vivos, com curadoria de Ricardo Resende. A mostra é resultado dessa vasta investigação e selecionou 120 obras pouco ou nunca vistas do artista cearense, que faleceu precocemente aos 36 anos em São Paulo.

Dividida em três volumes de uma edição bilíngue (português/inglês), a publicação apresenta a obra catalogada pelo Projeto Leonilson até o momento. São 3.400 registros, entre obras e estudos. Não segmentados por suportes ou linguagens, os volumes revelam interessantes possibilidades de cruzamentos de informações, tais como dados técnicos e fortuna crítica. Gabriela Dias afirma:

“Para o catálogo raisonné criamos, junto com a museóloga Pierina Camargo, uma padronização de técnicas e informações sobre a obra. A partir disso, todas as obras já catalogadas foram revistas de acordo com as fichas originais de catalogação e as informações pesquisadas no arquivo pessoal e fornecidas por museus, galeristas, leiloeiros e colecionadores. Não foi feita revisão de obras com visita aos colecionadores, com exceção das novas. A maior dificuldade para a edição do catálogo raisonné é a localização de ‘novas’ obras, as quais não estavam catalogadas em nosso banco de dados. Leonilson teve uma produção intensa e numerosa.

Quando vivo, presenteou muitos amigos e familiares e trocou bastantes obras com amigos artistas, isso sem contar com aquelas comercializadas pelos galeristas nas exposições individuais. Dentro desse cenário, temos duas situações: obras que apresentam apenas o título (ou descrição), citado pelo artista em arquivo pessoal ou mencionado em documentação das galerias e que, em sua maioria, não puderam ser identificadas e ficaram de fora do raisonné. A segunda situação é que a pesquisa conseguiu identificar fotos de obras novas. Como temos as imagens, optamos por catalogá-las, mesmo que não tivéssemos muitas informações de dados técnicos. No fim de cada respectivo ano, elas entrarão no catálogo junto com a imagem de referência e os dados parciais.

Quem sabe assim conseguiremos localizar o paradeiro da obra e realizar a catalogação. Uma das etapas do processo de produção do raisonné foi um dia de expertise para análise de obras novas de Leonilson sobre as quais não tínhamos informações suficientes para reconhecimento. Formamos um grupo composto por técnicos, curadores, advogado, artistas e amigos que conviveram com Leonilson, com o objetivo de analisá-las e decidirmos se seriam incluídas no catálogo”.

Esse é o primeiro catálogo raissonné de um artista contemporâneo brasileiro. A publicação percorre sua rápida e pontual trajetória e, a partir desse intenso processo de imersão na sua produção, já que o artista é bastante pesquisado na academia e participa frequentemente de mostras, Gabriela indica a diversidade de informações que compõe os volumes: “Uma outra boa surpresa com a pesquisa no raisonné foram os novos registros de exposições e a bibliografia. Quando iniciamos a pesquisa e a revisão para o raisonné, achávamos que quase tudo sobre o artista já havia sido catalogado, e, no decorrer da pesquisa, foram localizadas cerca de 70 novas exposições e quase 1.000 registros de bibliografia relacionada”.

2.0
O primeiro volume compreende a produção do artista entre os anos de 1971 e 1980 e conta com textos institucionais do patrocinador; do Projeto Leonilson/família; do curador Ricardo Resende, que apresenta o processo e as escolhas tomadas diante de uma obra tão complexa; da pesquisadora Margarida Sant’Anna, que estrutura a natureza técnica da publicação, a metodologia utilizada e suas ferramentas; além de um glossário de técnicas adotadas.

Sem título (1980), aquarela sobre papel, 16,5 x 28 cm

É um volume de extrema importância para se conhecer a instância processual da construção poética do artista. Reúnem-se ali, na sua maioria, exercícios acadêmicos plásticos, pinturas iniciais, assim como a utilização de diferentes técnicas – colagem, gravura, assemblage etc. Foi um período de intensas experimentações, um percurso curioso que nos conduz a inúmeros estudos de fachadas e plantas arquitetônicas, a referências dos quadrinhos, aos fanzines e Vogue Ideal e ao divertido conjunto de personagens em desenhos (Neuza, Rosycrair, Crestyana, Rita de Cássia, Silvete, Carla Frederica, Dinorreia e Kika).

Mesmo nos estudos iniciais ou nos primeiros trabalhos, há uma constante presença do signo verbal. Exemplo disso é um desenho de 1980, intitulado Viver amigos, no qual é possível perceber um diálogo fluente entre texto e imagem que evidencia a questão da amizade, outro índice que compõem sua poética.

“(…) e ter a emoção de ver/ de conter as lágrimas/ e lacrimejar como um rio ao ponto de molhar todo o espírito vizinho/ ser tudo dentro do limite em que tudo pode ser uma simples coisa/ tão pequena, que circularia nos vasos sanguíneos mais estreitos/ mas que carregam vida.”

O segundo volume compreende o período de maior produção do artista (1981–1989). As fases processuais de algumas obras e estudos até chegar à obra finalizada nos permitem observar o caminho tomado, as modificações naqueles que eram espaços de experimento em distintos suportes e técnicas. Há um dado interessante para pesquisadores, que é a sistematização de informações – isso ajuda a encontrar referências, textos, inscrições, informações técnicas, locais onde as obras foram exibidas e excertos de textos. A produção está dividida por anos, o que facilita a realização de pesquisas do que foi produzido a partir de datas específicas.

No entanto, é um trabalho que não se finda com a publicação do raisonné, como observa Gabriela:

“Costumamos dizer, aqui, que o trabalho de catalogação de obra e bibliografia relacionada do Leonilson é infinito. Estamos sempre em busca de novas informações, de dados complementares, de obras não cadastradas. Também achamos que, com a publicação do raisonné, novas informações e obras devem aparecer. Esse trabalho vai sempre existir. Uma vez publicado o catálogo, vamos começar a catalogação do arquivo pessoal do artista. Temos, sob a guarda do Projeto Leonilson, um vasto e rico arquivo pessoal composto por textos, correspondências, objetos e coleção de obras de outros artistas, material de trabalho, agendas e cadernos, documentos, fotografias e livros. Para a produção do catálogo raisonné, esse acervo foi pesquisado, porém não catalogado”.

O terceiro volume abrange o período principal da produção do Leonilson (1990–1993). Nele, encontramos as obras icônicas, bastante apresentadas em exposições e aclamadas pela crítica de arte. No entanto, há dois pontos importantes a serem evidenciados nesse volume: a parte em que os projetos e matrizes são expostos: projetos para cartazes das exposições, identidades visuais das suas mostras, adesivos, convites, projetos de layout para exposições, projetos de catálogos – tudo minuciosamente pensado e estruturado pelo artista –, além de matrizes de algumas séries de gravuras e serigrafias.

Saquinho (1992), linha e fio de cobre sobre voile, 15,5 x 15,5 cm

Outro ponto relevante da publicação é que os volumes não se limitam à catalogação da obra, o que a tornaria burocrática e enfadonha. Assim, a presença de textos, além de enriquecer o catálogo, contextualiza aqueles que terão acesso a ele — importa observar que um dos capítulos da edição conta com a valorosa contribuição textual de Lisette Lagnado e Jan Fjeld.

3.0
É curioso observarmos esses procedimentos técnicos e o caminho tomado pela edição dos volumes para chegarmos a questões confluentes entre a poética do artista e alguns eixos que conduzem o seu processo. A obra de Leonilson apresenta dispositivos taxonômicos, tais como listas, números, estruturas sequenciais, furos, categorias, palavras, signos recorrentes, linhas, pontos etc. Esses dados fluem através de uma carga subjetiva que percorre toda sua produção, aliada a um expressivo exercício ficcional, ou seja, arquiva-se ali uma vida, no entanto, uma vida conjugada pela ficção e suas artimanhas.

É um arquivo geracional sem precedentes, que atravessa um dos mais complexos períodos políticos, sociais, sexuais do nosso tempo e resguarda um posicionamento que é extremamente sofisticado e desconcertante: uma voz masculina regendo suas fragilidades/desejos/utopias entre os dissabores de um espírito romântico que insiste no exercício de conjugar o “nós”.

Em tempos políticos e sociais complexos, revisitar um conjunto tão significativo é adentrar-se em entranhas que perpassam camadas da nossa recente história e nos fazem repensar acerca de questões pertinentes para o hoje. Atravessamos um espantoso momento da rigidez das verdades absolutas e posicionamentos radicais acerca de nós e do outro que revela uma grande dificuldade em aceitar a diferença; aceitar aqueles que não comungam com as nossas crenças ou que conosco não dividem territórios. A poética de Leonilson nos faz refletir sobre essa nossa incapacidade de operacionalizar sintaxes que, a princípio, seriam simples, mas que, na verdade, apresentam-se complexas e repletas de meandros.

Extra: 

Por isso, é fundamental que o Projeto Leonilson viabilize a publicação de inúmeros materiais que necessitam ser revisitados, como os registros fotográficos de algumas ações; as agendas pessoais, que possuem relevância para investigar o processo poético do artista; as correspondências e os escritos; a relação do seu trabalho com outras linguagens, visto que diversos espetáculos, sobretudo de teatro e dança, articulam-se a partir de referências do artista; e, finalmente, revisitar as fitas que o artista deixou gravadas e o Frescoe Ulisses, documento geracional de extrema relevância para refletirmos o hoje.

Uma forma interessante de possibilitar acesso a pesquisadores e interessados na obra do artista é fortalecer o site com o conteúdo presente no catálogo raisonné ou disponibilizar os volumes em alguma plataforma digital.

Sabemos da dificuldade de operacionalizar tamanho desafio, principalmente num país em que se negligenciam arquivos e memórias, porém é necessário fazer um esforço para encontrar parcerias, desejos e ousadias. Há muito material a ser pesquisado, e a publicação desse catálogo é um momento ímpar de conseguir fôlego para dar os próximos passos, que são desafiadores e instigantes.

CARLOS BITU CASSUNDÉ, pesquisador, atualmente curador do MAC–CE e coordenador do Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes (CE).

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