Comentário

Notícias de uma guerra particular

Há 25 anos, explodia a Guerra da Bósnia, o mais longo conflito bélico europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Cidade-alvo, Mostar nunca mais foi a mesma

TEXTO GUILHERME CARRÉRA

01 de Janeiro de 2018

A chamada Ponte Velha, uma construção de pedra do século XVI,  foi arrasada durante o conflito

A chamada Ponte Velha, uma construção de pedra do século XVI, foi arrasada durante o conflito

Foto Reprodução

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 205 | janeiro 2018] 

Depois que os britânicos votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia, em um referendo ocorrido em junho de 2016, o debate em torno da ideia de fronteiras parece ter ganhado tônus. As eleições presidenciais na França, em maio de 2017, por exemplo, foram marcadas por uma intensa troca de farpas sobre imigração e xenofobia. Na margem oeste do Atlântico, Donald Trump se elegeu tendo como mote uma defesa virulenta de “valores norte-americanos”, incitando repúdio, sobretudo, aos vizinhos mexicanos. Como pano de fundo, a crise dos refugiados sírios tensiona ainda mais a corrente política internacional.

Essa onda nacionalista, no entanto, encontra na História recente motivos de sobra para ser questionada. Não faz três décadas, a Europa viu ascender um conflito bélico fomentado por divergências étnicas que viria a dizimar parcela considerável da população balcânica. A Guerra Civil Iugoslava, também conhecida como Guerra dos Balcãs, foi o mais longevo confronto europeu desde o término da Segunda Guerra Mundial. A sangrenta desintegração da Iugoslávia aconteceu nos anos 1990 – foi ontem, em se tratando do extenso histórico do continente.

Em uma região multiétnica como aquela, havia uma relativa soberania sérvia em relação à Bósnia e Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia e Montenegro, países que formavam a então República Socialista Federativa da Iugoslávia. Em um dado momento, o ímpeto sérvio de querer impor uma Grande Sérvia aos vizinhos socialistas errou a mão. Como consequência, movimentos separatistas que vinham se fortalecendo desde a dissolução da União Soviética, enfim, eclodiram. Na Eslovênia e na Croácia, em 1991, depois na Bósnia, já no ano seguinte.

No caso desse país, a alta concentração de bósnios, croatas e sérvios, juntos e misturados naquele pedaço de terra, acabou por agravar o conflito. O estopim aconteceu quando um referendo foi acionado para que a população pudesse escolher seu próprio destino como nação. Bósnios e croatas residentes votaram pela independência, mas sérvios residentes, como o espírito do tempo fazia supor, boicotaram o pleito. Ainda assim, a maioria optou por desvencilhar-se do que era, à época, a Iugoslávia. Sem titubeio, a Bósnia e Herzegovina proclamou-se independente. Como réplica, recebeu uma declaração de guerra.

NA ESTRADA
O campo literalmente minado em que aquela região se tornou ainda vigora no território bósnio. Em junho passado, o veículo que me transportava, junto a uma família de norte-americanos, duas amigas australianas e um grupo de britânicos e franceses, de repente, estancou. O motorista tinha se precavido, sem saber ao certo o motivo do pequeno engarrafamento à frente. A guia, pega de surpresa, ficou sem entender. Foi até o volante, cochichou com o colega, matou a charada e veio nos explicar. Quando o pequeno engarrafamento se dissipou, o veículo seguiu adiante e vimos trabalhadores, à esquerda da estrada, inspecionando o terreno montanhoso. “Ainda hoje, há campos minados sendo desativados nessa região. Apenas Dubrovnik pode ser considerada uma cidade já 100% segura”, contou.

Dubrovnik foi o ponto de origem em direção a Mostar, o sexto maior município da Bósnia e Herzegovina, com cerca de 115 mil habitantes. A 140 km da cidade croata, sua importância se deve ao fato de ter sido cenário de uma guerra particular dentro da guerra maior que já assombrava os Balcãs. Corria o embate separatista entre o recém-formado Exército da República Sérvia e a população local, quando bósnios muçulmanos, chamados bosníacos, e croatas católicos se olharam torto. Do dia para a noite, Mostar se viu em um fogo cruzado étnico-religioso com três frentes de batalha. “A certa altura, todos eram vítimas e agressores”, a guia arrematou. O saldo: cerca de 200 mil mortos e mais de um milhão de refugiados.

Não só à esquerda, mas também à direita da estrada, mais vestígios da Guerra da Bósnia, que só cessaria fogo em 1995, ficam à vista. As ruínas das casas e edifícios atingidos por granadas são marcas físicas do que ali sucedeu. O trabalho de restauração avança, é verdade, mas ainda há muito aos pedaços. A população que antes habitava aquelas construções foi também despedaçada. Antes da guerra, de acordo como o Banco Mundial, o país abrigava cerca de 4,1 milhões de habitantes; hoje, são em torno de 3,6 milhões. “Famílias ainda estão procurando por 12 mil parentes desaparecidos”, noticiou recentemente o britânico The Guardian.

Os julgamentos dos responsáveis pelo genocídio ainda estão em andamento. No fim do ano passado, ganhou destaque o ato suicida do ex-líder militar bósnio-croata Slobodan Praljak, 72 anos. Rejeitando a sentença de 20 anos de detenção, ele ingeriu veneno em plena sala de audiência do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) em Haia, na Holanda. Sua condenação havia sido baseada no fato de que Praljak não atuou para evitar o genocídio, além de ter autorizado a destruição da ponte histórica de Mostar – símbolo maior da cidade.

Pelo caminho, outros sinais deixam evidente a pluralidade étnica que acabou por fazer do lugar uma trincheira. No meio do trajeto, bandeiras sérvias flamulam no terraço de algumas casas. Mais adiante, surgem bandeiras bósnias. Depois da curva, aparecem as croatas. A incidência vai depender da nacionalidade predominante no local. Embora os idiomas se assemelhem, cada um desses povos fala uma língua própria. Como país, a Bósnia e Herzegovina avaliza essas distinções. São três, portanto, seus idiomas oficiais: bósnio, croata e sérvio. Para quebrar a tensão, a guia explica que a única palavra que é a mesma aonde quer que se vá nos Balcãs é pivo, a boa e velha cerveja. “Aí todo mundo entende.”

PÓS-GUERRA
Sarajevo, a capital e a maior cidade da Bósnia e Herzegovina, destaca-se no âmbito internacional. Com o fim da Guerra da Bósnia, período no qual se tornou uma cidade sitiada, ela vem passando por reformas estruturais em ritmo acelerado, baseando sua economia em manufatura, negócios e um ascendente turismo. A 130 km de Mostar, muito da condição multiétnica da pequena cidade já se constata na capital. Sarajevo é considerada a única urbe europeia a ter, a um só tempo, mesquita, sinagoga, igreja católica e igreja ortodoxa na mesma região.

Embora haja mesquitas e igrejas, o símbolo maior de Mostar é a chamada Ponte Velha, uma construção de pedra do século XVI que foi arrasada durante o conflito. Reconstruída com o apoio de comitês científicos internacionais, a ponte e seu entorno são considerados Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 2005. Vinte e quatro metros acima do Rio Neretva, é comum se deparar com saltadores preparados para o pulo em meados do verão. A água gelada não impede que competições sejam realizadas do alto da Stari Most, seu nome oficial.


A Ponte Velha foi reconstruída e, junto com seu entorno, é considerada Patrimônio da Humanidade desde 2005. Foto: Reprodução

A estratégia ajudou a colocar a cidade no mapa do turismo – uma indústria que vem ajudando o país a se reerguer. Quando indaguei um agente turístico sobre as consequências da guerra para aquele lugar, ele preferiu desconversar. “A guerra acabou”, desviou do assunto. “Podemos falar sobre as muitas opções de passeios nessa região. Os jovens adoram.” Em uma loja próxima, uma das vendedoras admitiu que ainda existe um certo desconforto entre bósnios e croatas, embora não seja violento. “Nós nos damos muito bem, mas, no fundo, no fundo, existe aquele sentimento, sabe?” Perguntei de qual nacionalidade ela era e, de pronto, um orgulhoso “sou bósnia, claro” veio como resposta.

Especialista no tema, o pesquisador da Universidade de Birmingham Louis Monroy Santander acredita que a guerra ficou para trás, mas nem tanto. “Na prática, Mostar permanece profundamente dividida. Com frequência, as comunidades étnicas desconfiam umas das outras, trazendo de volta a narrativa da guerra para justificar a falta de empatia”, explica. Para Santander, a essa desconfiança se junta ainda o remanescente ímpeto separatista de partidos políticos e uma certa má interpretação do que se passou durante a guerra, o que acaba impedindo o estabelecimento de uma dinâmica genuinamente saudável. “Uma guerra acaba, mas nunca acaba.”

Uma das tentativas de se incutir um sentimento irmão se deu com a construção da Torre do Sino da Paz. Com 107,2 metros de altura, ela é propositalmente mais alta que qualquer minarete árabe ou prédio socialista croata naquele entorno. Trata-se, na verdade, de um campanário católico vinculado à Igreja de São Pedro e São Paulo. As antigas torre e igreja haviam sido incendiadas no primeiro ano da guerra. Em 2000, o governo resolveu erguer uma nova como forma de reafirmar o fim do conflito.

Do seu alto, é possível observar a horda de curiosos que chega para descobrir a cidade antiga de Mostar, originalmente construída há cinco séculos, quando o Império Otomano a dominava. O chão forrado de pedras delimita a área do centro histórico, uma mistura balcânico-árabe verdadeiramente única. Lojas e mais lojas de suvenires se amontoam a vender peças típicas em cobre, pedra e madeira. O item que mais chama a atenção, no entanto, é o antigo dinheiro iugoslavo, à venda como uma espécie de raridade. Por 15 euros, cerca de R$ 60, dá para escolher entre cédulas e moedas, claro, itens de colecionador.

Embora o convívio seja pacífico, Mostar segue dividida entre um lado bósnio muçulmano e outro croata católico. São duas arquiteturas, duas universidades, dois clubes de futebol. Para os sérvios, o projeto imperialista fracassou. A que era a antiga Iugoslávia se tornou Sérvia e Montenegro em 2003. Três anos depois, Montenegro aprovou sua independência por meio de mais um referendo. Em 2008, foi a vez da região do Kosovo desgarrar-se, mas não sem violência. A Sérvia, que queria ampliar suas fronteiras ao custo que fosse, acabou por perder território. “Essa foi a punição por quererem algo que não lhes pertencia”, confessou a guia, que fique bem claro, de origem croata.

Segundo Santander, a retórica separatista que voltou à baila no discurso político vem provando ser um mecanismo de manipulação eficaz, vide a vitória do Brexit no Reino Unido. Ao mesmo tempo, trata-se de um discurso que também já provou o horror que pode causar. “O caso da Bósnia e Herzegovina deveria servir como um estudo de caso para se entender os perigos do nacionalismo e suas terríveis consequências. A história dessa guerra mostra como culpar o outro, seja uma etnia ou uma nacionalidade, e pode levar a formas extremas de violência”, conclui.

GUILHERME CARRÉRA é jornalista e doutorando em Artes e Mídia.

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