Ensaio

Ayahuasca em contexto

Produção imagética e representação da experiência psicoativa

TEXTO MIGUEL COLAÇO BITTENCOURT
ARTE PAULO JALES

01 de Março de 2018

Arte Paulo Jales

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 207 | março 2018]

PLANTAS ENTEÓGENAS: UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

Na contemporaneidade, lidamos com o constante desafio da autenticidade, singularidade e autonomia. Através dos constructos históricos percebemos em nosso cotidiano a transformação do mundo, o devir humano e o nosso poder de atuação. Certamente, na era do protagonismo, envolvimento, experiência e busca pela salvaguarda da natureza, o reino dos vegetais e, especificamente, os enteógenos podem ensinar algo a uma parcela da humanidade. Todavia, por que os enteógenos nos intrigam tanto? E como podemos abordar criativamente esse assunto? Para tal, farei uma contextualização desse tema, problematizando a representação do sagrado e dos estados de consciência nas produções imagéticas, intituladas como artes visionárias, em particular as que abordam a experiência com a ayahuasca.

Ayahuasca é um termo que se convencionou e consagrou a partir das repercussões e tensões dos contatos interétnicos, entre os diferentes povos com distintas epistemologias. Segundo Luna (2011), o nome ayahuasca deriva do quíchua (aya: espírito, ancestral e huasca: vinho, liana), traduzido como “vinho dos mortos”. Todavia, inúmeras denominações recaem sobre as modalidades de beberagem, que utilizam da decocção de cipós e folhas, popularmente, conhecidos como mariri e chacrona e, cientificamente, como Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis. Curiosamente, ainda hoje, não podemos afirmar quem iniciou a utilização dessas plantas e a preparação dessa bebida, deixando-nos no presente um conhecimento milenar imemorial, oriundo dos povos ancestrais.

Certamente, o berço das práticas intituladas genericamente como xamânicas, através do uso das plantas de poder, floresce na Bacia Amazônica pelo seu ambiente propício e interação entre os humanos e os vegetais. Os povos indígenas dessa região adquiriram através da experimentação práticas singulares com diversos fins, que se tensionaram e contrastaram com os estilos e técnicas ocidentais.

Diversas gerações e linhagens continuam aprendendo com a ingestão da ayahuasca, conhecida como planta mestra e professora, devido à sua capacidade misteriosa de promover insights, experiências místicas e benefícios ao ser humano. Abordagens antropológicas acompanham a saída da ayahuasca dos portais da floresta aos grandes centros urbanos (conferir em Goulart, 2004; Miksz, 2009). Compreende-se o uso da bebida pelas fases históricas que permeiam gerações, linhagens e sistemas de trocas. Os indígenas antepassados, baseados pelo saber oral, foram os pioneiros que cultuaram-na. Posteriormente, a partir das repercussões da colonização se formaram os mestiços, que, constituídos por um saber sincrético, desenvolveram ritos e práticas vegetalistas.

Por volta de 1920, surgem grupos religiosos criados a partir de sínteses. Os mais abordados são os que se firmaram na “época da seringa” e conquistaram o maior número de espaços e adeptos, tornando-se as maiores linhagens tradicionalistas e sendo as responsáveis pela disseminação da cristianização da ayahuasca. As doutrinas foram criadas por nordestinos retirantes, Irineu Serra fundou o Santo Daime, na cidade de Rio Branco, em 1930; Daniel Pereira de Mattos, Barquinha na mesma cidade, em 1945; e José Gabriel da Costa, a União do Vegetal, em Porto Velho, no ano de 1961. Sucessivamente, surgiram as dissidências e reinvenções que desenvolveram demais ideologias e novas modalidades de uso. É importante destacar que o processo de regulamentação religiosa da bebida abrangeu controvérsias e desdobramentos sociopolíticos que continuam até os dias atuais.

O caso brasileiro, envolvendo especialmente a ayahuasca, teve repercussões mundiais, que resultaram nos estudos de usuários e pesquisadores contra a instalação de dois estigmas do mundo hegemônico. O primeiro, de âmbito religioso e colonial, direcionava-se à desvalorização das práticas indígenas e populares, consideradas como feitiçaria e charlatanismo; o segundo remete a origens republicanas e atribui sentidos pejorativos ao uso de substâncias psicoativas, classificando-as como drogas e alucinógenos, com o intuito de moldar e controlar o desenvolvimento social, criando secundariamente a política de guerra às drogas (Goulart, 2004). Tais estigmas interagiam diretamente com o difusionismo das práticas dos povos da floresta, resultado da desterritorialização das práticas tradicionais, impulsionadas pelo terror colonial e política do medo. A bebida ora é vista como tabu, droga, alucinógeno, ora como reveladora e curadora.

Os estudos e informações eram controversos e escassos a respeito dos psicoativos, sobretudo das características sociológicas e farmacológicas. Após a instalação da Polícia Federal no Acre, a Divisão de Medicamentos pelo Ministério da Saúde suspendeu o uso da ayahuasca, no ano de 1985.

Logo, algumas pesquisas foram solicitadas com o intuito de verificar a nocividade e a natureza da bebida. Os estudos de maiores impactos no Brasil foram financiados pela ONG Botanical Dimensions, como A farmacologia humana da Hoasca, que reuniu um corpo de sujeitos para analisar as implicações das propriedades das substâncias, seus efeitos psicológicos e sociológicos, numa abordagem clínica. A data de 2004 se torna marcante, pois, durante o processo de regulamentação, o governo brasileiro aprovou o documento do Conselho Nacional AntiDrogas e sancionou juridicamente o uso religioso da bebida. Em 2009, iniciou-se, no Acre, o processo de patrimonialização da ayahuasca, o qual não foi levado adiante, pois, segundo o Ministério da Cultura, o procedimento deveria ser inclusivo, abrangendo os povos indígenas, considerados como detentores desse saber.

Alguns etnobotânicos e demais pesquisadores se destacaram por introduzir perspectivas acerca dos psicoativos no cenário ocidental. Pois o termo alucinógeno e suas implicações não abrangiam a especificidade da realidade empírica. O termo enteógenos foi proposto em 1979 por químicos e etnobotânicos – Carl Ruck, Danny Staples, Robert Wasson, Jonathan Ott e Jeremy Bigwood – com intencionalidades sociopolíticas, com o intuito de classificar um grupo de substâncias psicoativas utilizadas originalmente com finalidades espirituais.

A intitulada reforma enteogênica, cunhada por Jonhatan Ott, propôs estudar as implicações dos psicoativos, considerando o set and setting adequado, ou seja, a interação do homem com o ambiente, envolvendo políticas públicas, contextos de atuação e disposição humana. Em sua opinião, os enteógenos despertariam o reenraizamento do ser humano através da experiência direta e sensível. O termo parte da etimologia grega traduzida como “a geração interior do divino”. Atualmente, a classificação de enteógenos depende de três questões: elementos da natureza não sintetizados, usados em contextos ritualísticos, em que tais elementos são vistos como um sacramento com finalidades “espirituais” e uso legítimo acordado pelos códigos de leis da sociedade em questão.

PRODUÇÃO IMAGÉTICA E REPRESENTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
A partir dos anos 2000, na era da informação e da tecnologia, tivemos um acréscimo nas produções imagéticas e sonoras que contribuem para a composição de uma estética alternativa visionária. A produção de conteúdo em torno da ayahuasca cresceu bastante e as suas representações também. A pesquisa de Rick Strassman (2001) em parceria com demais estudiosos, DMT: the spirit molecule, é um marco diante dos estudos e da comunicação sobre o tema. Iniciadas na Universidade do Novo México, em 1990, tiveram como produtos um livro e um documentário com o mesmo título, dirigido por Mitch Schultz (2010), que inovou acerca das impressões da experiência psicoativa no campo da produção científica e cinematográfica.

A pesquisa, divulgada em formato audiovisual com objetivos de informação sobre o uso do DMT, lidou com a dificuldade de comunicar a experiência psicoativa para pessoas que estavam em outros moldes culturais e não faziam a mínima ideia de como tratar o assunto. O documentário foi influenciado pelas imagens do artista Alex Grey, com a intenção de representar a multisensorialidade da experiência. Os efeitos audiovisuais e animações gráficas representam os efeitos visionários e místicos, similarmente, os sons de frequências metadiegéticos têm o intuito de acentuar os efeitos subjetivos psicoacústicos da ampliação de consciência.

Obras anteriores também usaram esse recurso de imagens cinéticas e sons metadiegéticos para transmitir a experiência sensível. O diretor Jan Kounen que participou de ritos indígenas com os Shipibo, na Amazônia peruana, produziu dois filmes de diferentes gêneros, que abordaram a temática de modos distintos. A ficção Aka renegade (2004) utiliza do gênero faroeste espiritual para tratar os limites e diferentes códigos de conduta entre os nativos e os brancos. O documentário D’autres mondes (2004) traz outras narrativas, descentralizando o discurso. Nele, não estão apenas cientistas que conferem a legitimidade da bebida, mulheres e homens indígenas, artistas e demais usuários relatam suas experiências e pontes entre o visível e o invisível, “evidenciando” os diferentes modelos de pensamento.

O dramático filme ficcional El abrazo de la serpiente, dirigido por Ciro Guerra (2015), é inspirado nos relatos de exploradores que percorreram a Amazônia colombiana em diferentes períodos. A película faz uma analogia à ayahuasca, revelando uma planta chamada yakruna, capaz de ensinar a sonhar.

Já os filmes documentais que narram as “trajetórias espirituais” expõem questões contextuais, apresentando personagens, discursos e lugares. Geralmente, findam em catarses e resoluções, associadas aos ritos de passagem e fases do repertório vital humano. Tais produções imagéticas têm como auge a exposição e objetificação do personagem principal no momento da “beberagem”. Todavia, a lente que objetiva não alcança o íntimo da experiência. Apesar disso, os depoimentos compartilhados revelam a profundidade dos processos existenciais e os dilemas sociais confrontados. Nesse direcionamento, estão a obra fílmica temporariamente censurada pela televisão francesa L’Ayahuasca – Le serpent et moi, dirigido por Armand Bernardi (2003); The space in between (2016), dirigido por Marco Del Fiol, o qual acompanha a famosa artista iugoslava Marina Abramovic; e The last shaman (2016), dirigido por Raz Degan, que narra a busca de um jovem adulto, na selva peruana, para superar sua intensa depressão e recuperar o bem-viver.

Tais produções e qualidades estéticas imagéticas problematizam o contexto social e as relações entre sujeito-objeto, trazendo o carácter sociológico e formas de expressar o sagrado. Logo, qualquer comunicação que procure revelar a qualidade da experiência direta é uma tradução mediada, ou seja, revela indiretamente a experiência através da sua representação.

Uma questão perpassa as produções citadas: como comunicar algo do campo da experiência e expressar o indescritível? A arte seria a maneira de atingir esse fim? Novaes (2015) e Hupsel (2015) destacam que as imagens fotográficas têm a sua gramática própria, associadas entre a sua materialidade e o que ela representa, quando procuram expressar o indizível perpassam pelo viés interpretativo. A poética dessa representação consiste no nível das percepções compartilhadas, na expressividade das possibilidades e intencionalidades, auxiliando-nos a refletir sobre os próprios processos de construção da realidade e aprender com os mesmos.

Uma curiosidade atravessa os estudos da produção imagética e os padrões das visões, os quais dialogam com os estados de consciência e os efeitos visionários induzidos. Classificações iniciais apontam para um estado onírico, relacionando-o com os sonhos, criatividade e o mundo não real da fantasia. Por outro viés, as considerações antropológicas apontam para os estados de consciência não-ordinários, pautados por estados alternativos e ampliados que induzem uma consciência de si. Os termos expansão, ampliação e psicointegrador também traduzem com propriedade a especificidade desses funcionamentos e ab-reações (ver: Shannon, 2003; Mikosz 2009; Mercante, 2012; Chaibub, 2015; Hupsel, 2015).

Os povos indígenas Shipibo-conibo estão presentes nas produções citadas, suas habilidades relacionadas ao uso da ayahuasca abarcam uma experiência sinérgica. Os curandeiros e curandeiras, ao realizarem os ícaros sob o efeito do chá, percorrem caminhos visionários de labirintos semelhantes às suas obras que expressam o sagrado. A arte manual e visionária de tecelagem kené está intimamente relacionada à sua cosmovisão e a floresta, os Shipibo veem “desenhos no pensamento” e através dos cânticos induzem percursos visionários curativos.

Os grupos tradicionalistas daimistas e udevistas cunharam práticas ritualísticas e expressões associadas a uma série de significações. “Miração” e “visão” são os termos que exprimem os efeitos visionários para esses adeptos. Todavia, devo esclarecer que se, de um lado, há o efeito visionário sublime, por outro, as experiências podem ser confusas e perturbadoras, deixando-nos o mistério da interpretação e o carácter subjetivo da experiência psicoativa.

O psicólogo Benny Shannon (2003) se impressionou pelo carácter atemporal da experiência e o acesso a visões que não faziam parte da sua cultura. Tais considerações apontam para o processo híbrido do ser humano e uma possível memória armazenada e internalizada no corpo de todas as coisas. Por outro viés, tal questão abrange considerações dos estados de êxtase induzidos pelas plantas de poder e técnicas corporais. Aqui, o nosso interesse se foca nos significados atribuídos à experiência, que como uma pedra no jardim de areia marcam o sujeito no decorrer dos anos.

Os grupos tradicionalistas e os demais contêm variados registros realizados no decorrer dos anos. São diversos os conteúdos a respeito da ayahuasca, abrangendo materiais autopromocionais, notícias, reportagens jornalísticas, documentários, filmes de ficção, animação, exposições fotográficas, ilustrações, relatos em sítios na internet, clipes de música, congressos científicos, palestras. A produção imagética visionária está presente em diversos campos. Artistas e ilustradores, muitas vezes, são vinculados aos grupos religiosos e adquirem uma relação artística que transcende os fins comerciais, tornando a arte uma forma de expressão e aprendizado do sagrado. Destacam-se Isabela Hertz, Alexandre Segrégio, Clancy Cavnar, Paulo Jales e Priscila Lins.

Conforme Mikosz (2009:117), a arte visionária abrange uma classificação flexível, “envolvendo o uso de visões obtidas em toda a forma de expansão de consciência, com ou sem o uso de substâncias psicoativas”. Portanto, a composição estética da arte visionária é uma forma de expressão que corresponde a determinados padrões estéticos, os quais confluem com fases e estilos artísticos, que buscam retratar as mensagens e aprendizados conferidos na experiência numinosa.

A CARACTERIZAÇÃO DA ARTE VISIONÁRIA
O conceito de arte visionária foi proposto em manifesto por Laurence Caruana. Hoje, torna-se difícil atingir a necessidade ocidental de classificação e distinção do que é arte visionária. Por ora, destaco que tais gêneros e estilos convergem em suas técnicas, as quais apontam princípios de movimento, macropsia/ micropsia, repetições, sobreposições, formas geométricas, vórtices, espirais, auras luminosas, cores, fragmentos e metamorfoses.

O repertório de influências das artes visionárias abrange a história da arte ocidental e as demais, sendo as artes rupestres consideradas as pioneiras. Similarmente, é colocado como influência o Romantismo, pela expressão e desenvolvimento dos sentimentos humanos. Francisco Goya e William Blake pintaram de modo dual o mundo das visões interiores. O Impressionismo e Pós-impressionismo de Claude Monet e Vicent Van Gogh, admirados pelos escritores Aldous Huxley e Terence McKenna, são contemplados pelas passagens do tempo e técnicas com a luz.

A fase do Simbolismo atribuiu como marco a bandeira da liberdade pelo uso de drogas, da sexualidade e tentativas de tornar visível aquilo que não pode ser descrito. O Simbolismo é marcado pelos artistas Alfred Kubin, Odilon Redon e Gustav Klimt. O movimento posterior, Abstracionismo, procurou representar a realidade fora dos moldes do mimetismo para alcançar o “espiritual”. Os surrealistas, em sua maioria, opuseram-se ao uso de substâncias psicoativas para alcançar o âmago espiritual, optando pelo estudo da arte como forma de acessar o inconsciente e o irracional. Em contrapartida, o emblemático pintor Salvador Dalí se destaca nesse movimento pelo seu quadro O toureiro alucinógeno (1968).

A Arte Bruta (Art Brut), intitulada pelo artista francês Jean Dubuffet, foi produzida por aqueles que não têm formação e se encontravam à margem do cenário artístico e comercial estabelecido. Esteve vinculada aos hospitais psiquiátricos, tendo como ícone o suíço Adolf Wölfi e Nise da Silveira, que buscaram fazer da arte uma forma de expressividade e via terapêutica. O movimento, cunhado por Roger Cardinal, Outsider Art ou Arte Marginal, trouxe a estética naïf e buscou traduzir a Arte Bruta, ampliando o “exercício artístico” aos outros circuitos. O gênero psicodélico nasce em 1960, sendo a modalidade mais lembrada como arte visionária, depois se ramificou nos gêneros Optical Art e Pop Art.

O peruano Pablo Amaringo produziu um número significativo de imagens que denotavam o efeito visionário, a expansão da consciência e os caminhos da experiência. Amaringo fundou em 1988 a escola filantrópica Usko-Ayar, especializada em pintura e artes, e cunhou o estilo neoamazônico. Os quadros produzidos pelo artista revelam uma raiz liberta de influências da cultura massificada e não colonizada.

A arte visionária abrange um processo de significação existencial que desencadeia a saída do niilismo, de uma expressão sem sentido e sem significado para uma criação autêntica e consciente dos processos internalizados e reproduzidos. Os artistas têm o difícil papel de expressar o indizível, de tornar visível o invisível em sua totalidade e afetação humana. A arte visionária é aquela que busca se despersonalizar no âmbito das percepções comuns, transmite a transfiguração e o potencial místico da experiência numinosa ao espectador. A sua maior motivação não é atingir os fins comerciais, mas fazer de nós, seres humanos, cada vez mais conscientes do poder da nossa expressão.

MIGUEL COLAÇO BITTENCOURT é antropólogo, doutorando e mestre em Antropologia (PPGA–UFPE) e vice-presidente da Sociedade Panteísta Ayahuasca (miguelcolacob@gmail.com).

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