Entrevista

“Parece que o mundo se prepara para desaparecer”

Fotógrafa paraense Elza Lima, que teve livro sobre sua obra recentemente lançado, fala sobre a situação ambiental e cultural da vasta região amazônica, e sobre como fabula seu trabalho

TEXTO ADRIANA DÓRIA MATOS

02 de Maio de 2018

Elza Lima, fotógrafa do Pará, teve livro de sua obra recentemente lançado e conta sobre como pensa seus trabalhos a partir da leitura e memórias da infância

Elza Lima, fotógrafa do Pará, teve livro de sua obra recentemente lançado e conta sobre como pensa seus trabalhos a partir da leitura e memórias da infância

FOTO WALDA MARQUES

Elza Lima mora numa das porções do Brasil que talvez mais desperte a nossa imaginação e o nosso fascínio: a região amazônica. Estabelecida em Belém, onde nasceu em 1952, a fotógrafa conta a nós, forasteiros, histórias de um lugar que já foi confundido com o Eldorado e para o qual foram atraídos viajantes de todos os tipos, quase todos em busca de aventura, fortuna ou do paraíso sobre a Terra. A Amazônia bem que poderia ser esse paraíso, um ponto intocado no planeta, onde a natureza se mantivesse em sua inteireza. Mas sabemos que essa é apenas uma utopia – delirante – pois, como diz Elza Lima nesta entrevista, “a Amazônia está sendo dizimada muito rapidamente, mas mais rapidamente do que possas imaginar”.

Ao longo das mais de três décadas que tem dedicado à fotografia, desde que começou a trabalhar na área em 1984, Elza Lima tem nos oferecido imagens peculiares desse vasto território amazônico, de rios caudalosos, florestas e lendas de amazonas guerreiras. Peculiares porque trazem em si dois elementos caros à boa fotografia: a capacidade de registrar o mundo real e de criar um mundo próprio. O acervo dessa artista e documentarista paraense nos remete, ao mesmo tempo, ao contexto da realidade social e cultural da região em que vive e a um universo fabuloso que ela desenvolve através do pensamento estético e do manejo do equipamento fotográfico.

Historiadora de formação, Elza nos conta que muito do que ela cria é motivado por leituras que faz. Assim é que trabalhos importantes dos quais participou, ou que protagonizou, refletem essa sua prática. Em 1996, por exemplo, ela empreendeu o projeto de documentação das populações negras quilombolas que habitam as margens do Rio Trombetas, intitulado Trombetas: na rota das águas. Um enfoque diferenciado, já que as populações indígenas chamam mais atenção por sua maior presença na região, e que foi motivado pelo contato com a pesquisa então em curso da socióloga Edna Castro, da UFPA.

Do mesmo modo, entre 1999 e 2001, ela embarcou, junto com uma equipe de fotógrafos – Ed Viggiani, Antonio Augusto Fontes, Celso Oliveira e Tiago Santana –, no projeto Brasil sem fronteiras, que pretendeu investigar imageticamente sobre esse empreendimento abstrato que é a divisão política entre países a partir da leitura do livro-reportagem Fronteiras – Viagem ao Brasil desconhecido, escrito por Cláudio Bojunga e Fernando Portela.

Ainda poderíamos citar outros e outros trabalhos de Elza Lima que operam a partir desse contato íntimo com a leitura e a pesquisa, alguns dos quais comentados nessa conversa que tivemos, e que aconteceu em muitos lances, em trocas de e-mails e telefonemas. Mas vale mencionar aqui um dado sempre lembrado pela fotógrafa em suas falas públicas: que sua fotografia começa na memória, mais precisamente, na da sua infância.

Menina criada por avós, num ambiente doméstico rico em referências artísticas e intelectuais – seu bisavô, Ignácio Batista de Moura, escreveu o livro de viagem De Belém a São João do Araguaia, sua avó era pianista e o avô, escritor, crítico de arte e professor, que exerceu forte influência na inventividade da neta –, Elza Lima soube reunir as boas referências que recebeu para realizar seu trabalho em fotografia. No livro Elza Lima, recentemente lançado pela Ipsis e ponto de partida desse “encontro” com a fotógrafa, o leitor verá claramente a fusão bem-realizada entre documentação da realidade amazônica, fabulação onírica e memória da infância. Um livro que faz um recorte num período específico da obra de Elza, entre os anos 1980 e 2000, todo em preto e branco e fotografado com câmeras analógicas e que, como pontua o curador do livro, Eder Chiodetto, “narra de forma poética e apaixonada a vida dos ribeirinhos, dos caboclos, das crianças amazônicas, da cultura do Norte do Brasil”.

CONTINENTE Você atua em fotografia desde 1984, portanto, há mais de três décadas. Que avaliação você faz desse seu percurso? Que mudanças você percebe na produção fotográfica no Brasil nesse período e em que medida você se aproxima ou distancia dessa produção?
ELZA LIMA O tempo me fez olhar com mais calma as belezas e mazelas da minha Amazônia, porém continuo viajando nela. Não sei se terei tempo para fotografar tudo que quero na sua imensidão. Percebo mudanças boas na nova geração, além de criativos, estão conseguindo avançar em um campo mais arrojado sem amarras de linguagens e sem abandonar o poético que aprecio muito.


Marujada, Bragança, Pará, 1987. Foto: Elza Lima

CONTINENTE O projeto Brasil sem fronteiras, que você empreendeu junto com mais quatro fotógrafos e resultou num livro homônimo (2001), foi uma tentativa de trazer uma tese de que as fronteiras entre países são mais imaginárias que reais, era essa a ideia que vocês tinham?
ELZA LIMA Até te mandei um texto sobre isso, porque, assim, fica muito distante de hoje o tempo do trabalho e tu te perdes… vem um projeto, vem outro projeto… então, te mandei o texto porque escrevi tanto sobre esse quanto sobre o do Prêmio Marc Ferrez (de 1996, quando Elza recebeu uma bolsa para viajar pelo Rio Trombetas, registrando os quilombos da região). Inclusive o do Marc Ferrez foi todo impresso e sobre ele eu escrevi qual foi a minha conclusão, o que eu esperava, o que eu entendia das diferenças da questão de não ser computada como a nossa raça negra na Amazônia, é só o índio, o caboclo. Então, essas nuances estão todas no texto.

CONTINENTE Entendi, mas me explica como foi a experiência de você realizar esse projeto, que, mesmo passado esse tempo, continua um tema tão atual.
ELZA LIMA Isso foi um projeto muito longo. Longo e muito especial de ter acontecido. Eu não estava habituada a isso. O Itaú nos deu toda uma pesquisa sobre as fronteiras, um caderno com toda a pesquisa, até aquela época, das fronteiras. Porque nós nos baseamos no livro do Cláudio Bojunga (Fronteiras – Viagem ao Brasil desconhecido, livro-reportagem feito em parceria com Fernando Portela), porque ele foi o primeiro escritor a falar sobre as fronteiras. Ele tem um conhecimento, naquele texto, sobre o Brasil, os viajantes… ele escreve maravilhosamente bem.

CONTINENTE Para fazer esse trabalho, então, vocês partiram desse subsídio?ELZA LIMA Acho que o nosso trabalho durou aproximadamente uns dois anos (aconteceu de 1999 a 2001), porque íamos pro Rio nos reunir, ler os textos juntos, com o próprio Cláudio, ele participou das reuniões. Além da pesquisa, nós tínhamos esses encontros para discutir o que seria o trabalho. Então, foi algo muito profundo, pra mim, foi uma experiência única de ter o subsídio, o escritor/pesquisador nos orientando e esses encontros no Rio e em São Paulo com os outros fotógrafos que iriam participar do projeto, discutindo o que cada um faria. Ainda aconteceu uma coisa muito interessante: na mesma época que eu fui aqui para a fronteira do Amapá, o (fotógrafo paraibano) Antônio Augusto Fontes foi lá pra fronteira do Chuí e nós nos comunicávamos… No texto que Walter Carvalho fez para o livro, ele diz que aquele era um livro para todo mundo ter. No texto que eu escrevi para o Brasil sem fronteiras, eu falo da experiência desse livro ligada às minhas águas, porque a primeira imagem que eu tenho da superação da fronteira eram as palafitas da Amazônia. As fronteiras só dividem, mas não separam. Eu via muito o Brasil nas fronteiras em que eu fui, tudo está misturado. Foi uma experiência muito boa e acho que esse tipo de projeto deveria ser sempre conduzido dessa forma. Também foi um projeto bem-pago e com todo cuidado com a pesquisa antes da gente ir a campo, de se conhecer o que já se tinha visto sobre as fronteiras e de se discutir o caminho que se ia tomar. É uma experiência que marca meu trabalho.

CONTINENTE Qual foi o seu recorte?
ELZA LIMA As fronteiras emque fui eram aquelas onde eu tinha tido uma experiência anterior. Por exemplo, a do Mato Grosso, eu morei no Mato Grosso, comecei a estudar lá. Num tempo que passei lá, as fronteiras eram uma coisa só pra delimitar no mapa, porque eu via o vaivém das pessoas com muita intensidade e com muitas trocas de lá e cá. As fronteiras, de certa forma, tornam mais abrangentes as culturas. A fronteira te dá mais vontade de atravessá-la. Então, as pessoas que moram ali próximo são chamadas a atravessá-las, como num chamamento.

CONTINENTE Com relação à outra viagem sua, em 1996, pelo Rio Trombetas, na qual você registrou os quilombos da região e que foi publicado no livro Trombetas: Na Rota das Águas, como foi essa experiência?
ELZA LIMA Esse projeto foi logo no início da minha carreira de fotógrafa. Havia uma pesquisadora, Edna Castro (socióloga, professora da Universidade Federal do Pará), que estava fazendo um trabalho sobre os negros. Eu era muito próxima da filha dela, então comecei a ler o seu livro e aquilo me chamou a atenção, porque eu já trafegava pela Amazônia, e mais ou menos por esse caminho dos quilombolas. Aí eu disse, bem, é hora de eu olhar mais de perto isso, algo está me chamando, não é à toa que estou lendo sobre esse trabalho. Ele foi muito interessante pra mim, porque eu fiz uma entrevista com Pierre Verger um pouco antes de ele morrer e eu cheguei à Bahia pra isso no dia 2 de fevereiro. Como eu tinha saído dessa pesquisa dos quilombolas, pude ver a diferença entre os negros da Bahia e os da Amazônia.

CONTINENTE Como foi? Você comparou o comportamento, a urbanização, a questão étnica
ELZA LIMA É. Porque, primeiro, os quilombolas amazônicos são donos da água, não temem a água como os da Bahia. Os da Bahia reverenciam, eles pedem muita licença. Na Amazônia, além de dominarem a água, eles nela cozinham, brincam, só faltam dormir, e até dormem dentro dos barcos. Achei-os muito integrados à natureza, inventivos. Vi uma criança, na época eu até a fotografei, que fez um barquinho de miriti – que é uma madeira tradicional daqui – onde ele colocou um fio de nylon; aí ele sentou numa pedra e dali ficou controlando o barquinho no rio, como se fosse um controle remoto. Eu os via fazendo comida, dançando, cantando, contando histórias, eram seres bem livres. Acho que hoje está bastante mudada essa realidade, porque o local foi urbanizado com muita rapidez. A Amazônia está sendo dizimada muito rapidamente, mas mais rapidamente do que possas imaginar. É assim: num ano tu vais, no outro, já tem aquela mata toda no chão… muita queimada, muito gado entrando na terra. É uma coisa triste, viu? É muito triste a situação da Amazônia. Inclusive a minha penúltima ou última exposição, não me lembro agora se foi a última ou penúltima…

CONTINENTE Que foi À deriva?
ELZA LIMA À deriva. Nela, eu abordo a maior seca do Amazonas, em 2010, do rio-mar. Presencio a maior seca que aconteceu em todo o tempo da Amazônia e eu fico horrorizada com o que vejo. Retribuí com esse grito de alerta, foi a forma que encontrei de recompensar o tanto de imagens que venho tirando do rio durante todo esse tempo.


Rio Amazonas, Pará, 1998. Foto: Elza Lima

CONTINENTE Você transformou isso numa exposição?
ELZA LIMA Fiz uma parede de barro imitando a taipa das casas dos caboclos, a arquitetura da floresta e projetei nessa parede de barro imagens de árvores queimando, pessoas cortando árvores, e fiz uma caixa de vidro, baixinha, e nela eu coloquei a água do rio, salobra, ainda coloquei barro embaixo pra que ficasse da cor do Rio Amazonas. De cima, projetei sobre essa caixa imagens de peixes nadando, na sequência, peixes mortos, putrefatos na água suja. Essa caixa te dava a possibilidade de ver o rio de cima e da borda. Isso estava numa sala escura, onde só havia as projeções e duas imagens, uma da queimada e outra de uma onda. E tinha o barulho do rio, o som da queimada.

CONTINENTE Essa exposição foi no mesmo período em que você estava fazendo O Lago da Lua ou Yaci Uará – As Amazonas do rio-mar, não é? Foi quando você se deu conta dessa situação do rio.
ELZA LIMA Foi na mesma época e esse trabalho foi também um prêmio da Bolsa Marc Ferrez, igual ao do Trombetas.

CONTINENTE Mas o Yaci Uará não tem a ver com sua viagem pelo Rio Cuminá, no final dos anos 1990, em que você refez, 100 anos depois, a viagem da cartógrafa Otille Coudreau, a primeira mulher a fotografar a Amazônia
ELZA LIMA O Viagem ao Cuminá foi feito em homenagem ao meu bisavô e refazendo a viagem de Otille Coudreau. A história dela é curiosa, porque ela vem para cá nos 1800 com o marido para delimitar fronteiras e desenha uns mapas maravilhosos em aquarelas do Rio Cuminá – eu reproduzi esses mapas em grande formato. Basta te dizer que quando eu refiz a viagem não tinha esses mapas, porque o Rio Cuminá era muito difícil de ser visto pelo satélite, então não tinha mapa náutico na época, eu os teria comparado aos desenhos dela. Esse projeto eu publiquei em caixinhas e depois produzi uma publicação que mandei para a (Bolsa) Vitae, tanto do povo que encontrei como do colorido do que eu encontrei pelo caminho; as imagens são em preto e branco. Foram duas edições, uma caixinha menor, depois, outra maior. Projeto gráfico lindo, papel especial, japonês, que eu depois nunca mais achei igual.

CONTINENTE Você pensa em reeditar esse material?
ELZA LIMA Na época eu pensei, mas sabes, depois tinha de pedir tanta autorização em Paris… o diário de viagem de Otille é lindo, tem uma parte genial. Uma cabocla amiga dela, já velha, idosa, a convida para assistir a uma dança, ela chega lá à noite e vai assistir a dança, que era um lundu. O lundu é um tipo de dança muito sensual e Otille fica horrorizada de como uma velha pode ter uma sensualidade daquela. Ela, francesa, europeia, muito tradicional, com os conceitos muito arraigados do pudor, sai no meio da apresentação. O que acontece? No outro dia, a cabocla vai lá “minha branca, por que você não ficou até o fim?”, e Otille se sente vergonhada pelo que fez. Quando a cabocla sai, ela diz “eu acho que o preconceito está na minha cabeça”, porque ela veio tão simplesmente me perguntar, não vi maldade nenhuma nela. Os preconceitos dela começam a ruir aqui. É maravilhoso esse encontro entre a Europa e o Brasil. É uma coisa que me move muito, o meu trabalho, é um caminho que gosto de trilhar. Quanto à questão de publicar, tenho tantos projetos… agora mesmo estou debruçada em um que vou enviar para uma bolsa, estou escrevendo texto, lendo livros… adoro ler, acho que todos os meus projetos têm essa característica de serem muito lidos, pesquisados. As imagens vão sendo criadas nessa leitura.

CONTINENTE Você tinha até comentado que esse projeto em curso tinha uma relação com Portugal.
ELZA LIMA O projeto não vai ter ainda relação com Portugal, porque a bolsa é pequena, vou fazer a parte do Brasil, que será em Santarém. A ideia é a seguinte: tem um historiador aqui em Belém que escreve sobre um levante que houve em Santarém. Tinha um vice-consulado de Portugal em Santarém e os barcos vinham de Portugal para pescar aqui. Só que eles não se adequam muito ao tipo de pesca praticada aqui, em que os pescadores iam para o lago pescavam o pirarucu e passavam dias salgando o peixe. Os portugueses chegam aqui com uma nova técnica de pesca, de arrasto de redes, que os pescadores daqui não tinham. Por conta disso, os pescadores fazem um levante, expulsam os barcos portugueses e tomam o vice-consulado em Santarém. Termina assim esse encontro dos pescadores brasileiros e portugueses. Mas aí me deu uma ideia. Eu descobri umas pescadoras mulheres, que eram as avieiras, muito femininas e que, na época que entram na pesca, não era usual mulheres pescarem. Com essa pesquisa, quero ver o que é que ficou de Portugal aqui em Santarém e o que eles levaram daqui para lá. Esse projeto será finalizado em miniaturas, biombos, paisagens e as bonequinhas em que estarão embutidos MP3s com as falas das pescadoras que serão entrevistadas. Esse projeto vou desenvolver até agosto deste ano. Estou correndo contra o tempo para deixar esse trabalho pronto.


O Lago da Lua ou Yaci Uará, 2010. Foto: Elza Lima

CONTINENTE Você mandou umas fotos bem bonitas das mulheres do ensaio O Lago da Lua ou Yaci Uará – As Amazonas do rio-mar. Fala um pouco sobre esse trabalho, de como ele busca estabelecer diálogo entre a mitologia das mulheres guerreiras do Amazonas e o presente daquelas que habitam esse lugar, as guerreiras contemporâneas.
ELZA LIMA Meu projeto era mais ou menos assim: se o (explorador espanhol Francisco de) Orellana tivesse descoberto o Rio Amazonas em 2010, que tipo de mulheres ele encontraria? Nesse trabalho, eu achei várias referências da carta do Orellana. A cidade de Pedra existe, inclusive eu mostro em fotos, e existe um matriarcado lá, que eu não sei se é pelo sangue indígena, em que a mulher é muito forte, ou se é pelo próprio mito de criação do Amazonas, que eu nem sei se é mito, o que tem de mito, o que tem de verdade. Acho a Amazônia muito visual, ela já nasce pra ser visual, porque, quando a Amazônia é descoberta em 1542, ela é quase como a descoberta do Paraíso. Os descobridores ficavam na dúvida – como isso existe? Você vê, na Europa, se vivia o retorno à Grécia, era o Renascimento. Por conta disso, o Orellana vem munido dessa memória. E aí, que acontece?, era a descoberta do Paraíso, um lugar que não constava na Bíblia. Como Deus, que conhece tudo, poderia não citar na Bíblia esses lugares? Se ele não citou, isso é o Paraíso, é o lugar escondido, onde vai ter ouro, onde todos meus males vão ser sanados. Os bichos são diferentes, os peixes, em fartura. E aí a Amazônia se cria através da primeira carta do (frei Gaspar de) Carvajal e Orellana, que é linda. Inclusive, no dia do lançamento do meu livro, eu fiz carimbos nos exemplares com trechos da carta do achamento.

CONTINENTE Elza, mudando de assunto, queria lhe perguntar sobre o manuseio que você faz da tecnologia. Porque há sempre essa curiosidade sobre que equipamentos e lentes o fotógrafo usa, que luzes prefere manipularEntão, queria lhe perguntar como é esse seu aporte, como você sai para fotografar.
ELZA LIMA O meu equipamento é Nikon, agora a Secretaria (de Cultura, onde Elza trabalha) comprou um Canon, eu achei muito bom. Mas meu equipamento sempre foi Nikon, eu usava analógica, as fotos que estão no livro da Ipsis foram todas feitas em analógica, porque a seleção que fizemos só vai até 2000. Já o Yaci Uará eu fiz com digital, não vejo nenhuma diferença entre as duas tecnologias. Agora, eu adoro analógica, com o filme você se sente segura, eu sempre penso: “E se roubarem o HD?”. Ninguém vai roubar o negativo. A digital é uma coisa fugidia…

CONTINENTE É realmente inquietante essa passagem da matéria para o imaterial
ELZA LIMA Parece que o mundo se prepara para desaparecer. Acho que as coisas estão ficando muito passageiras, tudo acontece muito rápido. A gente caminha para situações momentâneas. Essa segurança que a gente tinha está se esvaindo, desaparecendo.

CONTINENTE Aí você passou a usar também equipamento em vídeo em alguns trabalhos. Ou você grava com a própria câmera as suas filmagens?
ELZA LIMA Eu vou para o campo com uma pessoa filmando junto – pra mim, quem filma é a Luciana Magno, que é uma artista muito boa. Enquanto eu fotografo, ela filma, tem um rolo de filme que eu ainda nem olhei.

CONTINENTE Você tem preferência por determinadas luzes? No livro Elza Lima, da Ipsis, fica muito evidente um enquadramento muito peculiar, de ângulos e cortes abruptos.
ELZA LIMA Todo mundo fala isso. As pessoas não veem similares ao meu trabalho; o Eustáquio (Neves, fotógrafo mineiro) falou uma vez isso pra mim. As pessoas falam muito dessa forma do olhar, mas eu acho que a forma do olhar é uma coisa muito nossa também. Porque é assim na Amazônia: por exemplo, eu vou andando e, quando eu vejo, lá vem um bicho, lá, ali está um cara encostado numa árvore… então há esses meandros que o teu olho vai acostumando, são esses imprevistos. Tem uma foto de que eu gosto muito de falar que é a do menino com a borboleta. Eu estava doente numa rede lá no barco e aí eu vi a cena. A primeira foto é aquele menino colocando areia, quando eu vou descendo do barco, vejo o menino com a borboleta na mão, aí as coisas vão se formando e acontecem. Acho que essa forma é muito intuitiva, eu não tenho a racionalidade dela, acho que ela é inerente à minha estreita relação com a Amazônia desde criança. Então isso vai se construindo no próprio olho, eu vou me habituando a ver assim. Eu saio muito pra fotografar com Luiz Braga, com Tiago Santana, e tu vês que as fotos que nós fazemos são completamente diferentes entre si, porque tu tens um olho muito construído já, com a tua vivência.

CONTINENTE Você gosta de trabalhar com pós-produção e tratamento de imagens?
ELZA LIMA Não, não, eu nem sei. Eu ia me enrolar toda. Eu faço aquele tratamento basiquinho, esse eu faço, mas quando eu vou para uma exposição, sou muito rigorosa, acho que o público merece o melhor que tu podes dar, então eu quero tudo perfeitinho. Por exemplo, essas fotos que saíram no meu livro da Ipsis foram todas escaneadas dos negativos, estão bastante “maquiadas”, afinal são 30 anos de existência dos negativos.

CONTINENTE Tem gente boa para fazer laboratório, ampliação, impressão em fine art em Belém?
ELZA LIMA Está surgindo agora um…

CONTINENTE Porque está havendo esse movimento retrô, de valorização do negativo, de boas impressões, num contramovimento à extinção dos suportes e técnicas tradicionais.
ELZA LIMA Eu nem acho que a fotografia vai acabar, acho que ela vai mudando, se adaptando…

CONTINENTE Mas você não acha que hoje é difícil para o fotógrafo fotografar? Porque tem muita gente fotografando, não é?
ELZA LIMA É, a gente tem um excesso de imagem, mas eu acho que isso é o tempo de depurar. Acho que também todo mundo escreve, mas poucas pessoas vão escrever bem e vão ficar. É o mesmo processo da fotografia, todo mundo fotografa; agora, vai haver uma seleção própria da espécie.


Foto de caráter fantástico integra o ensaio O Lago da Lua.
Foto: Eliza Lima

CONTINENTE E tem também aquela coisa de viver a fotografia, de dedicar-se a ela.
ELZA LIMA Aquelas pessoas que são viciadas em fotografia como a gente, aí é outra história, tu não podes viver sem isso.

CONTINENTE Queria comentar aqui a dinâmica de edição do livro Elza Lima com o curador Eder Chiodetto. Ele em São Paulo, você em Belém, foi a distância mesmo?
ELZA LIMA Ele veio a Belém duas vezes, primeiro para gravar minha entrevista, que foi meio pingue-pongue, né? O Eder vem muito a Belém, foi um processo de dois anos de edição. Gostei muito de trabalhar com ele, ele me deu alguns puxões de orelha, porque eu sou meio dispersa, vou fazendo as coisas, esqueço das outras. Ele me pediu umas 200 imagens, eu enviei pra ele e a gente foi conversando a partir desse conjunto, o que eu gostava, tinha algumas que ele queria tirar, aquele processo natural de edição. Gostei muito do resultado.

CONTINENTE Sim, há uma cadência narrativa, não ficou cronológico
ELZA LIMA É verdade. O (escritor e cineasta) Sylvio Back me disse uma coisa interessante. Quando recebeu o livro, ele me mandou um e-mail dizendo assim: “Esse seu livro é uma tela de cinema antigo, girando é um filme”. Acho esse processo de edição essencial. Acho que uma outra pessoa olhando o seu trabalho tira aquele ranço do nosso olhar, ela vai te mostrando o processo sem tu notares. Quer dizer, eu não tive muita consciência do que estava sendo narrado até o livro ficar impresso. O outro olhando, ele te mostra caminhos que tu nem vês.

CONTINENTE Agora fala um pouco sobre o trabalho que você faz na Secretaria de Cultura de documentação das manifestações populares paraenses.
ELZA LIMA Eu trabalho há 32 anos na Secretaria de Cultura de Pará e esse é um trabalho mais documental, que a gente faz a partir do calendário anual. Tem o Festival de Ópera, tem o Salão do Livro, que é a terceira maior feira do gênero no Brasil…

CONTINENTE E tem as festas populares.
ELZA LIMA Tem, tem. Mas essas festas agora estão fora das atribuições da nossa secretaria, tem um órgão só para elas. Mas eu fiz muito as festas populares. Com esse material faço capas de livros, de CDs, porque nós temos uma produção imensa de livros e publicações, só você vindo aqui para ver esse trabalho importante que temos feito aqui.

CONTINENTE Como é que você avalia o vigor das manifestações populares que acontecem nas áreas centrais de Belém, nas periferias e nas áreas ribeirinhas?
ELZA LIMA Acho que as manifestações populares de relevância acontecem nas regiões ribeirinhas, elas têm grande força. Inclusive nós temos um evento aqui que é em junho, que são os pássaros juninos e só existem no Pará. Eles vêm de uma tradição dos teatros trazidos da Europa para se apresentar aqui, no Ciclo da Borracha. E aí, ele mesclam o teatro – então as roupas são dos príncipes e dos reis do teatro europeu – e as lendas locais. Tem a lenda do passarinho, em que a princesa é dona do passarinho, o caçador vem e mata o passarinho, eles chamam o umbandista pra ressuscitar; e, no final, o médico é que ressuscita. Há todo um enredo, um cenário e um vestuário que mesclam as tradições daqui – do Uirapuru, da Cobra Grande – e esses Pássaros se dividem em cordões: o cordão dos bichos, que é a história da Cobra Grande, e o cordão dos Pássaros. Essa é uma tradição forte que está inserida na cultura dos ribeirinhos.

CONTINENTE Em Pernambuco, as manifestações culturais estão muito relacionadas com a geografia, a natureza. Por exemplo, há as festas ligadas ao litoral, à Zona da Mata, ao Agreste, ao Sertão. Existe no Pará algo semelhante?
ELZA LIMA Aqui há algo parecido. Por exemplo, existem regiões onde as procissões são feitas no rio, em barcos, como no Círio de Paracatu; há aquelas onde os rezadores de almas vão retirar almas das casas, cada casa que precisa despachar uma alma coloca uma vela na janela, daí os rezadores tiram as almas e levam para o cemitério, tudo cantando, de latim à caboclada. São especificidades culturais conforme o lugar. São coisas parecidas com Pernambuco. Aliás, sobre isso, há as obras de João Cabral e Suassuna. Suassuna veio muito às nossas feiras de livro, veio umas cinco vezes. Era uma figura, educado, doce, conversava com todo mundo, dançava. Adorei a convivência com ele. Mas, olha, eu fui fazer uma palestra em Sevilha e só me lembrava do João Cabral. Porque ele escreveu muito sobre Sevilha. Eu andava e olhava as ruas me lembrando dos poemas dele.

CONTINENTE Mais de uma vez, li a respeito do seu interesse pela leitura de clássicos, mitologia e obras sobre a Amazônia. Em que sentido essas referências estão nas suas fotografias? Que obras você considera importantes para que as pessoas entendam a cultura do Norte e a vida dos ribeirinhos paraenses?
ELZA LIMA É interessante ler Dalcídio Jurandir e seus 11 livros, que formam o Ciclo do Extremo Norte; Macunaíma, de Mário de Andrade; Cobra Norato, de Raul Bopp; Moronguetá, de Nunes Pereira; Arqueologia da Amazônia, de Eduardo Góes Neves; Martim Cererê, de Cassiano Ricardo; a obra de Bruno de Menezes, pode iniciar com Batuque; Márcio de Souza, a tetralogia Crônicas Do Grão-Pará e Rio Negro. Os viajantes, entre eles, Padre João Daniel, no livro Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas; Alexandre Rodrigues Ferreira, em Viagem filosófica; Carta do cronista, de Frei Gaspar de Carvajal – sobre o descobrimento do grande rio das Amazonas; e o livro de Ignácio Batista de Moura, meu bisavó, De Belém a São João do Araguaia.

CONTINENTE Belém ficou conhecida nacionalmente por ser uma cidade em que a fotografia era muito vivida e estimulada, sobretudo a partir dos anos 1980, com a chegada do paulista Miguel Chikaoka e a criação da Associação Fotoativa. Você poderia contar um pouco dessa história para nós, que estamos distantes geográfica e afetivamente desse contexto?
ELZA LIMA Antes da Fotoativa tivemos o Fotoclube do Pará, com projeção nacional e até internacional. Gratuliano Bibas, era um desses. Porfírio da Rocha, Pedro Pinto, Luiz Braga, Leila Jinkings, Paulo Santos, Geraldo Ramos, Patrick Pardini, Dilermando Cabral, Eduardo Kalif atuavam nas cenas paraense e nacional, entre outros. Miguel, com sua Fotoativa, além de um sensível educador, formando uma nova geração de fotógrafos, tem como mérito criar oportunidades através de vários diálogos com a comunidade, estabelecendo um público apreciador da fotografia, além de ser um grande fotógrafo.

CONTINENTE Você acha que Belém continua sendo uma referência nacional, quando falamos de produção fotográfica, uma cidade que reúne profissionais tão singulares como você, Guy Veloso e Luiz Braga, entre tantos outros, e que se notabilizou pela criação de coletivos, ou você acha que houve uma desagregação?
ELZA LIMA Acho que hoje há uma dispersão, as coisas são feitas e passam rápido, você não vê a continuidade dos trabalhos. A gente está passando por mudanças que não sabe aonde vai dar.

CONTINENTE Sim, porque, quando comparamos, por exemplo, com o período da reabertura política no Brasil, nos anos 1980, os encontros de fotografia, o forte grupo do Pará aí envolvido, reuniam muita gente, mobilizavam caravanas
ELZA LIMA Inclusive, foi o que deu força à fotografia naquele momento, esses encontros. Porque foi através deles que nos conhecemos. De Belém foi pra Curitiba, de Curitiba foi pra Belo Horizonte. Esses encontros é que fizeram o elo da fotografia no Brasil.

CONTINENTE Hoje, encontros de fotografia e fotógrafos ocorrem, mas com um espírito diferente daquele. Há o Festival de Valongo, em Santos, por exemplo, no qual você esteve em 2017, não é? O que você achou?
ELZA LIMA Achei muito bom mesmo, até porque eles fazem um entrosamento com a comunidade. Então, no final da noite, tinha pessoas da favela e das comunidades mais desamparadas que iam se apresentar, tocar, falar poesia, fiquei encantada. E as exposições, impecáveis.

CONTINENTE Isso tem a ver também com a expansão que a fotografia está conquistando como arte
ELZA LIMA Está. Tenho ido a vários encontros, no sertão da Bahia, Minas, Tiradentes, lugares que estão reunindo as pessoas em torno da fotografia.

ADRIANA DÓRIA MATOS, jornalista, é editora da Continente e professora universitária.

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