Depoimento

Amazônia, lugar-placenta

TEXTO E FOTOGRAFIAS RODRIGO BRAGA

01 de Agosto de 2018

'Deriva', 2010

'Deriva', 2010

Foto Rodrigo Braga

[conteúdo na íntegra (degustação) | edição 212 | agosto de 2018]

De uma maneira
geral, quase todo mundo tem uma “ideia de Amazônia”. Seja por relatos, registros textuais ou pela iconografia amplamente divulgada ao longo dos séculos em muitos exemplos não raramente exagerados, a região continua exercendo notável fascínio mundo afora. Ainda que se produzam imaginários um tanto suprarreais, é possível que um francês consiga descrever a Floresta Amazônica de maneira muito semelhante ao que um canadense ou um brasileiro do sul faria, ainda que nenhum deles jamais tenha adentrado a selva tropical. 

Se, na época do Império, o pictorialismo dos artistas viajantes chegava à Europa provocando assombro e encantamento, ou ainda se, no século XX, os cartões-postais possibilitavam rápidos “deslocamentos”, uma espécie de viagem visual a quem lá não poderia estar, hoje, um seriado de TV, uma reportagem ou brilhantes imagens cinematográficas continuam tanto informando quanto deformando o visual amazônico. 

Mas essa espécie de hipertrofia do imaginário que recai sobre a região não precisa ser encarada como uma aberração da realidade. Na verdade, a meu ver, é muito mais uma interessante permissividade lúdica, própria do humano, que involuntariamente quer conectar-se com o campo pela vontade de percorrer paisagens, algo como um desejo eremita inato a todo animal humano; já que, não muito distante no tempo histórico, o hoje ser urbano foi apartado dessa convivência natural.

Portanto, essa tal ideia de Amazônia seria hoje um encontro profícuo entre realidade e ficção – a incompletude ou mesmo o excesso de dados sobre o que de fato há nesse recanto da Terra, acaba por ativar o idílico, que produz sonhos de escapes pelo puro ímpeto de religação. Um religare com o prazer de tocar a sola do pé no solo-mãe, provavelmente fazendo lembrar-nos de sensações úmidas deixadas para trás no atual mundo de inclinações ainda falocêntricas.

E sobre aqueles solos, para quem não é nativo da região mas tem um dia a sorte de adentrar pelas hidrovias entre cidades, vilas ribeirinhas, florestas densas e praias fluviais, ao aportar, a sensação normalmente oscila entre o deslumbre e a familiaridade. Refiro-me a isso por experiência própria, que me permito relatar aqui, já que, em muito, minhas vivências amazônicas contribuíram para minha formação artística – e, afinal, é sobre o devir da criação no imaginário amazônico que este texto se debruça.

***

Nasci em Manaus na década de 1970, quando meus pais, recifenses, realizavam pesquisas acadêmicas como biólogos na Amazônia. Porém, com eles e minha irmã, voltei a Pernambuco muito cedo, às vésperas de completar apenas dois anos de idade. Não demorei a perceber que crescer no Nordeste sob a “etiqueta” de manauara me tornava, de alguma maneira, singular, ou tão especial quanto esquisito à leitura dos que me cercavam. 

Naturalmente, cabia a mim inteirar-me sobre minha origem geográfica – logo identitária. Pesquisar ainda na infância sobre Manaus e o estado do Amazonas, ao passo que seguia acompanhando meus pais a laboratórios da UFPE e a inúmeras reuniões de ONGs ambientalistas, fez eclodir em mim um sem-número de imagens mentais ligadas à floresta tropical, inevitavelmente cultivando uma imensa vontade de conhecer minha terra natal, que não deixa de ser, genericamente, a própria Terra Brasilis; ou seja, não só minha origem primária, mas também uma certa expressão da ancestralidade de todo brasileiro. 

Contudo, com sabor de frustração, sem ter tido a possibilidade de ir à terra natal nem na infância nem adolescência, acalentei minha curiosidade percorrendo caminhos com o indicador nos mapas de papel, ocupei-me com figuras de enciclopédias e livros de biologia, e também me pus a desenhar meu imaginário dos seres híbridos da floresta, que não raro eram inventados, assim como meu sonho de viagem. E, nesse sentido, considero que tive essa sorte de uma formação bem específica, algo como um pequeno cientista aprendiz e, no mesmo período, o treino de técnicas artísticas, ambos aprendizados ajudando a moldar o artista que viria a ser na vida adulta, por entre análises e sensibilidades a partir das observações dos eventos naturais e sua profusa mímese visual, fertilizando o poder da criação artística humana.

Sucedeu-se que minha chance de conseguir a sonhada viagem a Manaus e adjacências só veio em 2010, quando obtive aprovação da Funarte/MinC para um projeto de criação artística. Pela primeira vez lá, uma certa sensação familiar não era suficiente, no entanto, para que eu tivesse por inteiro a propriedade da presença enquanto um legítimo nativo. Como pertencer a um lugar que não me pertence? 

Sentimentos vagavam por entre o reconhecimento e o choque. O primeiro colapso das expectativas já aconteceu mesmo na cidade de Manaus, que, para minha surpresa, se descortinou como talvez a capital menos arborizada deste país, somado a um dos piores trânsitos com os quais já tive o desprazer de perder tempo, também com seus canais entre áreas urbanas que mais me fizeram lembrar um rio lá da clássica megalópole brasileira. Ouvir dizer que Manaus é uma cidade quente também não se compara, nem de longe, à real sensação de sentir o calor no centro da cidade com seus 40 graus e umidade a 100%. Mas o aterrador impacto visual e corporal da “minha” Manaus foi proporcional ao maravilhamento que senti ao entrar na Feira Manaus Moderna, às margens do Rio Negro abarrotado de embarcações de profusas cores, formas e tamanhos. Amontanhados de produtos e pessoas, que, de tão diversificadas, se tornavam únicas aos meus olhos.


Biomimesis, 2010

Desde então, retornei diversas vezes à capital do Amazonas, como também a Belém, e dessas para reservas ecológicas e parques nacionais bem longe de poluições de qualquer tipo. Sempre em viagens a trabalho, finalmente tive a chance de adentrar o “cartão-postal-inferno-verde” que tanto decorei pelas documentações de terceiros, mas desta vez produziria meus próprios registros, ao modo do meu imaginário particular. Construções ficcionais que partem da direta observação in loco de elementos e eventos naturais, ou do humano e suas narrativas, mas que, sobretudo, passam pelos sentidos físicos de um corpo que é todo membrana ouriçada pelo encontro com o meu lugar dos desejos.

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A mítica Amazônia sempre foi e continua sendo destino desejado por muitos visitantes estrangeiros, gozando hoje, inclusive, de um fluxo muito específico de rotas turísticas que sequer passam pelas principais capitais brasileiras; ou seja, que se direcionam apenas e diretamente à selva e seus exóticos valores naturais. Assim é, por exemplo, o que acontece com a rota de pesca esportiva frequentada pelos japoneses que se dirigem ao município de Barcelos, ou os fluxos para os internacionalmente divulgados cruzeiros e hotéis fluviais de luxo nas entranhas insólitas da floresta. De modo análogo, em termos de encantamento que a região produz, aparentemente estão também muitos artistas contemporâneos nacionais (não amazônicos) e internacionais. 

Em 2013, por ocasião de um edital ao qual me submeti e fui aprovado, conheci o então nascente Projeto Labverde, idealizado e coordenado pela curadora manauara Lilian Fraiji. Desde então acompanho as edições que levam dezenas de artistas de várias procedências a atividades imersivas, borrando fronteiras entre meio ambiente, ciências e artes, elegendo como principal base a Reserva Florestal Adolpho Ducke (nas bordas de Manaus) em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa. 

Nesse contexto, conheci diversos artistas locais, nacionais e estrangeiros e suas práticas já originalmente ligadas de alguma forma às artes e às ciências. Eis que o referido projeto tornou-se, para mim, também um rico campo de pesquisas que me levou a pensamentos a respeito de assuntos que também tanto já me moveram como artista.


Ilha Negra, 2011

Posteriormente, e recentemente, fui membro da comissão julgadora da edição de 2018, o que me possibilitou ter acesso à leitura dos projetos e, por isso mesmo, me permito aqui qualificar, grosso modo, as propostas artísticas numa tentativa de entender minimamente esse fenômeno de interesses pela Amazônia de artistas dos cinco continentes, que, aliás, curiosamente são, na sua maioria, mulheres. É claro que um número expressivo de artistas que desejam uma experiência dessa já tem, em seus interesses e práticas, relações com o meio ambiente ou ciências. 

Ainda mais especificamente, percebi que as propostas envolviam, em geral, as seguintes abordagens: ações performáticas perpetrando seus próprios corpos em justaposição à paisagem, ou imersão direta junto à terra e os elementos que abundam sobre ela (como a vegetação verdejante ou em decomposição, sementes, pedras, argila etc.); relações de afinidade e construções simbólicas em torno da água em qualquer estado (correnteza, poças, umidade); pesquisas que passam do estético ao cinestésico (como coletas de formas, texturas, cores, sabores, cheiros); discursos voltados a uma espécie de metafísica intuitiva que desperta ligações com o cosmo ou com alguma espiritualidade ou sentido uno de existência. 

Outras abordagens relevantes são as aproximações com as ciências e tecnologia, incluindo gravações de áudios e imagens de última geração, por exemplo; também o uso de metodologias de captura, inventário e classificação são recorrentes, embora de maneira bem distinta dos cientistas, na verdade assumindo usos mais randômicos, abrindo generoso espaço aos acasos do começo ao fim.

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Não tenho dúvida de que a pujança da natureza nessa porção do planeta evoca os sentidos e a imaginação, sobretudo aos mais sensíveis desbravadores que despertam de maneira lúdica o interesse de um dia estarem de corpo imerso (e, para nossa análise, também a alma) na vívida experiência amazônica. E quem prefere ter o privilégio de uma estadia mais longa e que se pretenda mais aprofundada com as infinitas versões de naturezas logo percebe que uma conexão quase carnal com a terra e seus diversos habitantes é possível. Ainda mais especificamente, é atribuída pelo senso comum aos artistas uma curiosidade ou uma tal sensibilidade aguçada capaz de fazê-los debruçar-se com interesse transversal sobre seus objetos. 

Quem sabe artistas que versam experiências ambientais não teriam um senso estético mais voltado a sentidos um tanto ou quanto mais sutis do que apenas o inicial prazer da satisfação retiniana? Ou seja, seria possível que os artistas e as artistas se seduzissem não tão somente pelo visual ou o analítico, mas que explorassem sensações mais abrangentes, como quem quer adentrar com a pele, sentir os odores e sabores, ouvir os pequenos seres, estar e pensar a sós, sob um tempo dilatado, sobre todas as evocações sensíveis que um igarapé proporciona? As terras extremamente irrigadas, os vapores, as chuvas densas, a água por si, enfim, além de um grande berçário, poderiam ser metáforas para a gestação geral de seres, ou para a gestação de ideias, de criação de mundos como princípio?

Pois, próximo à latitude zero, é de corpo quente e poros abertos que a experiência criativa acontece. O calor vaporoso que faz pifar os equipamentos eletrônicos na floresta é o mesmo que conduz os rios a subirem aos céus, que, por sua vez, transportam-nos de norte a sul do continente. Esse mesmo mormaço constante também alucina os desavisados, obrigando-os a pensarem de outra forma. Nada como realmente adentrar o cartão-postal. Ao chegar de avião, fica-se confuso por não saber se o “inferno verde” é gigantesco ou enorme. Seja em sobrevoo, seja embarcado, seja trilhando por dentro, logo se aprende que a monotonia é a verdadeira tônica daquela paisagem para quem não está preparado para enxergar miudezas. De grande angular, vê-se um enorme tecido poroso sangrado por veias reluzentes. De objetiva macro, cada folha é singular. Quem se conforta com lâmpadas fluorescentes, sem pestanejar, conta ser fotofóbico à luz do Equador; mas, na Amazônia, não se entra de óculos escuros, sob o risco de desperdiçar a natureza sem filtro. 

Lá, mosquitos e vespas sempre encontram centímetros quadrados sem repelentes, só para aguçar o tato de quem tem melanina, e principalmente de quem não tem. Trilhas abertas na mata só aparecem em caminhos entre casas ribeirinhas ou em rotas turísticas; mas os curiosos artistas normalmente curtem correr riscos e logo se afeiçoam mais aos moradores do que aos visitantes com seus guias. Nesse lugar-placenta, as casas flutuam durante as cheias, bem como as ilhas de formigas migratórias. Ainda nas feiras, aprende-se que a floresta dá praticamente uma fruta para cada letra do alfabeto; depois, logo se acostuma a comer o disponível possível. Aí os sabores aguçam ainda mais o devir criativo. 


Decanto, 2011

Não espere flores a olho nu na Amazônia, não se sua ideia de flor for a de cor quente e cheiros como perfumes in vitro. É possível se surpreender com uma flor que você nem vê, mas que tem o odor da carniça. Só depois de alguns dias, vai começar a ver pequenas estrelas amarelas, brancas, laranjas por entre o folhiço no chão. Não se engane, são florações belíssimas. Os rios cor de chá mergulham e banham mistérios abissais – ao menos para nós que não conversamos com os botos-cor-de-rosa, ou com os tucunarés com suas duplas de olhos na cara e na cauda. Os mais belos “peixes de aquários” também reluzem por lá, mas só vai ver quem primeiro não temer as piranhas, os jacarés, as arraias, pois mergulhar na casa deles não é questão de coragem, mas de simbiose. 

Se o sol é o deus à sua própria luz, as nuvens, por sua vez, têm a presteza de fazerem o dia virar noite com tranquilidade e em poucos minutos. As quase dolorosas gotas de chuva só serão o alerta de que os relâmpagos podem ser fatais, mesmo que não houvesse trovões, treme a terra como sirenes eloquentes. Se a conexão digital inevitavelmente foi perdida há dias, talvez nem mesmo sinta mais a necessidade de conferir a quantas andam os ponteiros, já que as marcações temporais serão outras: a “hora da chuva” contará tanto mais para você quanto para uma comunidade de araras. Mas nada como deitar ao solo numa clareira em noite sem luar, prestar atenção aos sons dos seres da mata e não mais sentir medo; apenas assim será possível escutar o assobio de uma estrela cadente que, por algum segundo, roubará a cena na manta celeste. 

Se, de alguma forma, certos artistas se identificam com o estar na natureza em estado criativo, talvez sejam instigados por um tom subliminar ancestral, uma espécie de “arquétipo de Gaia”. De algum modo, cremos que o universo é feminino, ou que a mãe primordial é a Terra. Gigante e aquosa por natureza, a Amazônia se assemelha a um grande útero do planeta. O poder de geração de vida é tão grande que estar lá dentro de maneira plena é radicalmente comungar com a criação.

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EXTRA:

Assista a vídeo com o artista na exposição Agricultura da imagem

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RODRIGO BRAGA
, artista plástico. As obras que ilustram este depoimento foram realizadas por ele no Parque Nacional de Anavilhanas, Rio Negro. 

 

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