Ensaio

A filosofia e o poder têm uma tensão sexual não resolvida

A série ficcional 'Merlí' é mote para a análise do ensino de Filosofia nas escolas

TEXTO RAPHAEL DOUGLAS TENÓRIO
ILUSTRAÇÕES LUÍSA VASCONCELOS

01 de Outubro de 2018

No seriado, o professor Merlí traz o espírito crítico da filosofia para a sala de aula

No seriado, o professor Merlí traz o espírito crítico da filosofia para a sala de aula

Ilustração Luísa Vasconcelos

[conteúdo exclusivo para assinantes | ed. 214 | outubro de 2018]

Onde mora o algoritmo também vive o que salva. Exatamente, estamos falando de Netflix e suas séries. Há séries filosóficas? Sim. Trazem algo novo para a filosofia. Calma. O que há de novo quando falamos de filosofia? Em filosofia, novo não necessariamente é bom. A bem da verdade, quase nunca é. O considerável em filosofia é o que envelheceu, cravou-se de impressões, tatuou-se de experiências, sofreu resistência e mostrou-se maturável.

Não é sem razão que o personagem principal da série catalã Merlí, originalmente exibida na TV3 e desde 2016 no Netflix, sobre um professor de filosofia e sua simpática turma, não é uma jovem promessa acadêmica. Merlí Bergeron, vivido pelo ator Francesc Orella, é um sujeito de meia-idade, recém-despejado, em vias de morar com a mãe, cheio de conflitos com o filho, querendo recuperar o sentido da paternidade e cujos defeitos e qualidades de um homem médio entram em simbiose com as cogitações filosóficas cultivadas em ambiente escolar e fora dele. Um homem com vocação para ensinar, sem dúvida. O encantador da trama é que Merlí não é um vencedor, assim como tradicionalmente se considera marginal a filosofia e a quem a ela se associa.

A série não se faz totalmente filosófica, uma vez que precisa seguir todos os protocolos para ser “hashtagueada” por uma determinada faixa etária sem causar overdose intelectual. No entanto, ousa, ao dar nomes de correntes filosóficas e filósofos a cada capítulo. Todos já mortos: o consumo de um produto racional do passado no mais atual hoje. A virtude de Héctor Lozano, criador da série, é expor como a filosofia é paradoxalmente aquilo que pode atualizar um sujeito desatualizando-o.



O seriado é um almoço com diversos tipos de guarnição. Do carnívoro ao vegano. A filosofia é apenas um dos pratos. Quem assiste à série na esperança de se alimentar apenas de filosofia não sairá com a nutrição completa: mas certamente não morrerá de fome. A série digere filósofos e filosofias na tentativa de fortalecer intelectualmente a musculatura de cada episódio ao versar sobre inúmeros temas: de dramas adolescentes a profundas questões pedagógicas.

É bela ênfase ao espírito crítico e à necessidade de buscar a felicidade que o professor espraia constantemente entre seus jovens discípulos. É a casa escolar na qual gostaríamos de morar. Uma morada onde a educação é intimista e a filosofia, no sentido mais profundo da palavra, torna-se o autêntico achegamento ao saber em clima de amizade.

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