Portfólio

Paula Garcia

A vida como performance

TEXTO Luciana Veras

01 de Janeiro de 2019

'Corpo ruindo', performance na exposição 'Terra comunal', retrospectiva de Marina Abramovic, em 2015

'Corpo ruindo', performance na exposição 'Terra comunal', retrospectiva de Marina Abramovic, em 2015

Foto Hick Duarte/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 217 | janeiro de 2019]

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Performance is all about state of mind.
Marina Abramovic

Difícil se contrapor à afirmação de Marina Abramovic que é, ao mesmo tempo, epíteto, sinônimo e espelho da performance. E talvez não seja essa a questão para Paula Garcia, cuja movimentação artística, em muitos aspectos, assemelha-se ao modus operandi da artista sérvia. Mas se fosse dada a essa paulistana, nascida em 1975, a prerrogativa de adicionar algo ao pensamento de que “performance é acima de tudo sobre o estado da mente”, ela acrescentaria: a performance é, também, instinto e pele. “O equilíbrio entre a mente e o corpo”, resume Paula, com seu forte sotaque paulistano a modular uma voz que carrega as experiências vividas em países diversos, e expressa um corpo talhado para o que escolheu fazer.

“Não gosto de falar que sou performer, e, sim, que sou artista, porque, mano, e se amanhã eu quiser pintar? Mas é no meu corpo que tudo acontece. Acho a coisa mais linda de fazer e ser e penso em performance o tempo inteiro. Sou obsessiva. Minha vida é performance”, comenta, aos risos, em um das conversas com a Continente. Entre encontros presenciais na capital paulistana e mensagens trocadas via e-mail e aplicativos de mensagens ao longo de meses, forjando conexões entre Estados Unidos e Ásia, Europa e um Brasil retalhado pós-eleições presidenciais, Paula se delineou com generosidade, partilhando sua história de vida e sua construção como artista de modo a ratificar o que suas obras e sua vida deflagram: passado, presente, arte, corpo, mente e instinto estão, sempre e de fato, imbricados na misteriosa trama da existência.


#8, da série Corpo ruído (Performance, 2014). Foto: Acervo Paula Garcia

O que dizer, por exemplo, de alguém que na infância tinha o “quarto inteiro forrado por pôsteres de Ozzy Osbourne e AC/DC” e que, na adolescência, decidiu abandonar o colégio para entrar no curso de teatro? “Minha mãe sempre me dizia que eu queria ser band leader.” Já como aluna do Escola de Teatro Célia Helena, acreditava que seguiria a carreira de atriz, ao mesmo tempo em que, para juntar dinheiro, passou a trabalhar como garçonete. Ou seja, cantora, intérprete ou hostess, qualquer que fosse o percurso, o corpo seria ferramenta e estrada. “Vejo o componente performativo dessa época já, faço essa relação quando, por exemplo, converso com os artistas para os quais faço curadoria sobre como, na performance, tudo é o corpo e a presença que esse corpo ocupa. Se você não está ali, inteira, presente na hora, as pessoas sacam que é bullshit”, condensa Paula.

Se, diante de qualquer trabalho da série Corpo ruído (que se inicia em 2008 com o #1 e prossegue até o #8) é impossível não sustar a respiração, tamanho o impacto da visão da artista coberta de ímãs ou a envergar uma armadura que a faz parecer um ciborgue, é improvável não arquejar quando se escuta a travessia da menina que queria ser cantora e virou uma jovem atriz e que, para viver plenamente isso, resolveu migrar para Nova York. “Quando fiz 21 anos, me deu uma louca e fui para lá sem conhecer ninguém. Morei num pensionato, comecei a estudar no Michael Howard Studio, fiz amizade com um senhor brasileiro que me deu um emprego e consegui uma audição no Actor’s Studio. Um sonho! A minha professora, quando soube dessa audição, me preparou com um texto do Garcia Lorca. Eu contracenava com um ator japonês e, no dia da audição, quem estava assistindo foi o Arthur Penn”, conta, quase sem pausa para recobrar o fôlego, referindo-se ao diretor de Bonnie e Clyde – Uma rajada de balas (1967).

Uma pausa na narrativa para Paula, com seus inegáveis dotes performativos, evocar a célebre canção de Maysa para antecipar a sequência vindoura: “No final de tudo, recebi uma carta deles de recusa, eu não tinha passado, foi devastador. Meu mundo caiu!” O emprego também, e antes de ficar sem grana e sem teto na cidade que nunca dorme, mas que cobra seu preço para quem nela sonha, recebeu uma proposta para trabalhar de office boy. Com o mesmo cabelo curto que usa até hoje, Paula começou a riscar as ruas e avenidas de Nova York de bicicleta, percorrendo dezenas de quarteirões de ruas numeradas sem se incomodar em ser chamada de “John”. “Era meu codinome, eu tinha cara de 12 anos! Em dois meses, me sentia a dona da cidade”, diverte-se.

Caso houvesse se fixado em Nova York desde então, e insistido por outro teste no Actor’s Studio, quem sabe Paula não seria atriz de renome, uma figura fácil em seriados televisivos, ou ainda a manager de uma empresa de mensageiros? Nos anos 1990, tudo estava em aberto e havia, sim, a possibilidade de ficar nos Estados Unidos. Mas ela quis voltar e, voilà, surgiu o “primeiro flerte com a performance”: juntou-se a um grupo de amigos para participar do Arte Cidade 3, na Fábrica Matarazzo, “andando nas estruturas, comendo terra, fazendo som, tudo meio bicho”. O segundo passo foi acolher um desejo antigo e empurrá-lo para a concretude: “Eu tinha uma loucura para trabalhar no Teatro Oficina e, logo quando cheguei, fui lá, do nada bati na porta e disse que queria fazer qualquer coisa. Para mim, ver aquele grupo era que nem assistir Pina Bausch: os atores eram viscerais, aquilo me dava tesão, era algo muito forte”.


Corpo ruindo (Performance, 2015). Foto: Erika Mayumi/Divulgação

Ruptura com as convenções, como se percebe, já era algo intrínseco a essa pisciana. Quando Paula Garcia procurou a trupe paulistana, estava em curso a “primeira peça da tetralogia de José Celso Martinez Corrêa que conta a vida do maior mito do teatro no Brasil, a mãe do teatro moderno brasileiro, a atriz paulista Cacilda Becker”. Cacilda!, uma “tragicomediaorgya”, estreou em outubro de 1998. No ano seguinte, “quando estavam iniciando os ensaios com Leona Cavalli para fazer Cacilda”, Zé Celso insere uma nova voz, e um novo corpo, no seu coro. “Era muito legal aquela energia, de todo mundo sendo um corpo só, então eu acabei fazendo vários personagens. Um dia, Zé chegou para mim e disse ‘lê a Cleyde’ e lá fui eu, com meu vozeirão, ler as falas de Cleyde Yáconis”, relembra.

Viagens com o Oficina renderam uma experiência incrível, mas Paula sentia “que ali não era meu lugar”. “Sempre tive essa característica de decidir fazer algo, ir lá e fazer, então eu estava feliz, mas ainda não era o que me preenchia. Foi quando Maurício Ianês, um amigo muito querido, estava saindo da FAAP, que naquela época era o lugar das artes. Pensei: está na hora de voltar a estudar.” Em 2002, ela entrou na graduação em Artes Plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, ao mesmo tempo em que trabalhava como produtora de exposições na Arte 3. “Foi na FAAP que comecei a entender o meu lugar, qual a pesquisa e a linguagem que eu puderia realmente explorar.”

A performance.

***

Portanto, quando nasce Corpo ruído, não havia ali nada ocasional. Paula já era uma artista que amadurecera sua subjetividade, coberta com as vestes de ímãs de neodímio como quem sabe a força que tem e as fronteiras que pode transcender para fazer o corpo vibrar. “Corpo ruído foi pensado como um procedimento na arte, uma série de trabalhos para testar os limites do próprio corpo. Ímas de neodímio são de terras raras, usados para diferentes aplicações na indústria, em sistemas de transmissão, por exemplo. Nos primeiros trabalhos, eu nem usava nada para separar os ímãs do meu corpo, era tudo colado com fita mesmo, em cima da pele, não havia nenhum aparato. Me cobria com tudo aquilo e, conforme ia fazendo, ia travando.”

Travar consiste em atingir o que ela descreve como “o limite do que era possível”. Da exposição Galeria expandida, na Luciana Britto Galeria, em 2010, até a realização do documentário Noise body, em 2016, a investigação traduzida em Corpo ruído foi sendo burilada, aperfeiçoada, sofisticada. Brotaram os registros: fotografias e vídeoinstalações que, de uma certa forma, perpetuavam não somente a performance em si, mas aquela escavação artística que Paula empreendia, rumo a um tempo dilatado com materiais considerados descartáveis, como se do lixo industrial emergisse a armadura ideal para habitar a efêmera e frágil contemporaneidade.


#1, da série Corpo ruído (Performance, 2010).
Foto: Marcos Cimardi/Divulgação

Para a exposição Arquivo vivo, no Paço das Artes, em 2013, sob curadoria de Priscila Arantes, Paula idealizou um avanço que fizesse jus ao nome da série: a performance era iniciada com ela de roupa preta e os assistentes, então, vinham montá-la como a uma cavaleira prestes a entrar no campo de batalha. “Usava um capacete tipo de esgrima, customizado, como de soldador, e toda a estrutura do meu corpo era coberta de ímãs. Eu chegava a carregar mais de 100 quilos, mas não era só isso: tinha pregos em todo lugar que as pessoas poderiam enfiar a mão e jogar em mim. Imagina o impacto e o som do prego ao atingir essa armadura magnética?”, indaga a artista.

Gilles Deleuze, uma vez, vaticinou: “O mais profundo é a pele”. Para quem vive da performance, a frase assume contornos de axioma. Talvez haja uma razão cármica, ou epidérmica, por assim dizer, para o vínculo que se criou entre Paula Garcia e Abramovic, a maior performer dos nossos tempos… Ou talvez seja tudo acaso, coincidências furtivas e afinidades eletivas que muitos vão pensar se tratar de uma invenção. O fato é que, em 2012, cruzaram-se as trajetórias de Marina Abramovic e da artista brasileira. Em mais uma temporada nova-iorquina, Paula participou de uma residência no Watermill Center e começou a trabalhar com Marina. Oito anos depois, a artista brasileira é curadora e integrante do comitê artístico do Marina Abramovic Institute/MAI.

A relação entre as duas propiciou que Marina atuasse como curadora de Corpo ruindo, a performance de Paula nos dois meses de Terra comunal, gigantesca retrospectiva da artista sérvia sediada no Sesc Pompeia entre março e maio de 2015, bem como de #8 de Corpo ruído, na Beyler Foundation, na Suíça. “Marina não interfere no processo, mas ressalta a importância desse mesmo processo. Antes de Corpo ruindo, minha maior performance tinha durado seis horas. O corpo ruindo mesmo, para mim, eu nunca tinha vivido no sentido dos limites, físicos e mentais, para segurar a onda durante dois meses. Ao mesmo tempo, entendi que aquilo era um mergulho profundo em mim, um mergulho interno, sem contato com o público. Em Corpo ruído, as pessoas me jogavam pregos; em Corpo ruindo, sentia pessoas dentro da caixa, com intensidade, mas sem contato.”

Entre 2016 e 2018, Paula Garcia foi curadora de exposições concebidas pelo MAI, na Grécia e na Tailândia, e também do programa de performance de duas edições da SP Arte. Sua porção artista, no entanto, não hibernou, muito pelo contrário: “Hoje, mais do que nunca, acredito no artista que é produtor, curador, propositor, que quebra com a passividade da aura do artista. Acho que artista é operário e precisa desafiar esse lugar sacralizado da arte”. Desafios, ela os têm em profusão. À Continente, descortina Crash body, projeto que vem burilando há três anos – uma colisão com um carro, ela a conduzir o veículo, com a ajuda de dublês profissionais, a ser filmada com câmeras de alta precisão e reproduzida em live stream nas redes sociais. Uma provocação ao “sistema de forças”, uma convocação ao “campo magnético”.

Destruição e transcendência, polos não tão opostos assim, como as tatuagens de love e hate que Paula carrega em cada uma das mãos, a lembrar, sempre, que amor e ódio andam juntos e que, para construir algo, é preciso aceitar sua destrutibilidade. “Trago no meu trabalho a ideia de um corpo programado, mas somos além, somos a força física e quem somos como cidadãos, mas nem sempre essa experiência está marcada no nosso corpo. Em Crash body, penso em destruir para transcender”, confabula, mens sana in corpore sano. Conceituar é importante, e disso ela bem sabe; a performance, afinal, está sobretudo no estado da mente.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

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