Crítica

Uma terra que arde

O Brasil é percorrido por 53 nomes da fotografia nacional na exposição 'Terra em transe', com curadoria de Diógenes Moura no Dragão do Mar, em Fortaleza

TEXTO OLÍVIA MINDÊLO, DE FORTALEZA*

01 de Janeiro de 2019

Os cãos x os anjos, tradição carnavalesca do interior da Bahia

Os cãos x os anjos, tradição carnavalesca do interior da Bahia

Foto Adenor Gondim/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 217 | janeiro de 2019]

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Não importa o palco, porque, seja no Mar, seja na Cidade, seja no Sertão, a tragédia do homem é uma só: a tentativa de decifrar o segredo da vida; e a luta contra a fome, a injustiça, o sol, a opressão, a miséria; e o amor, e o ciúme; e a tentação da revolta, e a do assassinato, e a do suicídio; e o sofrimento causado pelos desastres da guerra e a insondável solidão diante da Morte! Trecho d’A lanterna de Maurina e as visagens de Quaderna, de Ariano Suassuna

Estão lá. Os golpes da ditadura estão lá. A tiros, lapadas, bombas, corpos arrastados a olho nu. A PM está lá, no derrame de sangue da chacina que deixou um bar de Osasco (SP) com cara de abatedouro. Está lá, logo de cara, o Museu Nacional que arde em chamas, a cidade de Mariana afundada em lama e, do outro lado do Brasil, no Pará, um menino que vive da lama, catando caranguejo no mangue. Estão lá ainda os cãos da Bahia, pintados de preto para performar demônios que, na tradição popular, se “pegam” com anjos em praça pública – depois, tudo termina em cachaça. Estão lá os ritos para Exu; o pagador de promessas subindo, a nado, o Morro da Conceição, no Recife. Juntos, estão lá passado, presente, futuro. Não há tempo seguro, senão uma terra em transe, irremediável. Essa terra tem nome, já sabemos. Mas o curador Diógenes Moura pretende deixar tudo mais claro:

Ele mesmo, o país que escorre como água embrulhada entre os dedos dos seus próprios filhos. É assim desde Vidas secas. É assim desde Carandiru. É assim desde que a terra tremeu pela primeira vez. Todos juntos Brasil adentro entre as balas de AR-15, dos políticos infames em processo de putrefação…

Interpretar a terra brasilis já foi busca de diferentes montagens expositivas nestes mais de cinco séculos. Ora sob um olhar colonizado, estereotipado, selador de visões dominadoras e hegemônicas; ora sob o viés crítico, que, para lembrar Walter Benjamin, tem por exercício “escovar a história a contrapelo”. Apropriando-se do título de um dos marcos do cinema brasileiro, a exposição Terra em transe, em cartaz até março no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC), em Fortaleza, pertence seguramente à segunda categoria, trazendo a perspectiva dos que sofrem os desmandos da vida coletiva na própria pele.


Manifestação estudantil e repressão policial no Rio, em 1968. Foto: Evandro Teixeira/Divulgação

A reunião do trabalho de 53 nomes da fotografia nacional, incluindo um colecionador, em 14 núcleos expositivos e mais de 400 imagens distribuídas por dois pisos extensos, é algo de potente no cenário atual, para dizer um pouco. A narrativa construída por Diógenes Moura – durante 15 anos, curador de fotografia da Pinacoteca de São Paulo – tem uma assinatura eloquente e carrega-se de dramaticidade, às vezes de histeria, mas consegue se equilibrar numa montagem minimamente pensada, que dosa nosso olho entre eletrochoques e alguns respiros, fazendo sentir o corpo inteiro em estado de vertigem.

No Brasil revisto aqui, a bandeira não elege presidente. Em vez disso, cobre o caixão de um morto pelo regime militar de 1964-1985 ou, em ranhuras, estampa o peito de um metalúrgico em luta nos anos 1980 – ambos registros de Juca Martins, autor de cliques históricos do período ditatorial, ao lado de Evandro Teixeira, outro fotojornalista da “velha guarda”. Estão os dois lá, numa seleção imprescindível à história nacional, tudo em preto e branco. Nessa mesma sala, o curador cria uma ponte importante com a atualidade, ao mostrar imagens de Eric Gomes e Danilo Verpa durante protestos e conflitos políticos recentes em São Paulo. Na série de Verpa, justo em frente à imagem do metalúrgico com a bandeira, vemos também um homem, desta vez em cor: em uma mão, ele sustenta o pano verde e amarelo surrado; na outra, segura um cachimbo de crack.




Acima, foto de Juca Martins, em 1980. Em seguida, imagem de Danilo Verpa de 2017

Ainda no mesmo núcleo, intitulado Ame-o ou deixo-o, quem nos recebe é o corpo no chão de Aurora Maria Nascimento Furtado, presa, torturada e morta pelo Estado brasileiro em 1972. A imagem de arquivo foi replicada pela fotógrafa Nair Benedicto, também da geração de Juca e Evandro e outro nome de peso na denúncia contra o governo militar – tanto que foi presa, torturada, mas teve a sorte de poder contar a história. O “alinhavo” da sala vem com outra leitura contemporânea: as colagens de Gilvan Barreto em cima de nomes de torturadores do baixo escalão que, segundo a Comissão da Verdade, atendiam por codinomes como Major Camarão, Soldado Curió, Delegado Varejeira; a chamada Tigrada no zoológico de horrores.

Terra em transe é uma aula de curadoria, em seu propósito fundamental: conduzir o olhar e o entendimento das coisas; gerar dissensos e fazer refletir. O convite leva a mirar as imagens, cada uma delas, mas é preciso olhá-las em conjunto. A sala que antecede à narrada acima, por exemplo, apresenta uma seleção de achados antigos do colecionador Rubens Fernandes Junior, que recolhe fotografias brasileiras há mais de 35 anos. Entre suas relíquias, vemos soldados de guerra, anões de circo, fotos de família e as cabeças do bando de Lampião expostas na escadaria de Piranhas, em Alagoas. O maior desses achados cumpre a função de cartão de visitas na entrada da exposição:

Uma família unida e feliz que aparece na fotografia (...) alugou por quinhentos mil réis dois garotos negros para servir de “mascote” e “ilustrar” a cena muda. Até um padre aparece na imagem, possivelmente em nome de Deus, mergulhado em seu mundo de perversidade e mentiras. As crianças aos pés de todos eles. Em preto e branco, a mancha fotográfica reverbera até hoje em nosso cotidiano. Quantos séculos precisaremos para resolver a “Lei Áurea”?


Família posa, em 1929, com crianças negras alugadas, como indica dedicatória.
Imagem: Coleção Rubem Fernandes Junior/Divulgação


Seja nos textos curatoriais – curtos e poéticos –, seja na expografia ou na seleção dos trabalhos visuais (além de fotos e intervenções, há vídeos também), Terra em transe cumpre uma função histórica e didática, sem se deixar ser óbvia – pois do óbvio vivemos e nada sentimos. É preciso sentir, deparar-se com o evidente. Ao fazê-lo, o curador e todo seu corpo pensante assumem uma postura ética. Nada é neutro. Ao lançar mão do trabalho daqueles que saem às ruas sem medo de buscar histórias, Diógenes Moura forja seu papel de formador em um olhar sensível, num contexto construído para nos livrar das leituras apressadas, naturalizadas, embora os clichês e estigmas também habitem, vez por outra, o conjunto – por que ainda os corpos negros e dissidentes são os mais retratados? O resultado é dialético, em uma narrativa geradora de dúvidas, porque na linha tênue entre realidade e ficção. Talvez por isso, seja capaz de nos recolocar diante de nossa própria existência – trágica, no caso brasileiro.

O espelho aqui é cruel, semelhante àquele exibido em Martírio, documentário de Vincent Carelli sobre o extermínio indígena em nossas terras. Na mostra, aliás, os povos originários ficaram em segundo plano, porém o discurso está posto e o fotojornalismo – como prática autoral – é a linguagem-guia. As reportagens que deram origem a alguns ensaios não são mencionadas, uma pena, mas as imagens são índices importantes, devemos prestar atenção nelas, aprender a vê-las, como diz o pensador e artista catalão Joan Fontcuberta.

A exposição ensina. No núcleo Salve Deus!, por exemplo, interessa mais o drama que o rito. Interessa o nado a seco de Amauri a subir o morro enquanto as lentes de Beto Figueiroa o imortalizam; o vermelho e as unhas pintadas de Exu enquadrados pela sensibilidade incômoda de Guy Veloso; o balde de sangue, a cachaça, os fogos e o Belzebu de Mirian Fitchner. Se não quiser ver, nem vire o rosto, caso contrário será tomado pelo assombro de Adenor Gondim com seus cãos de guarda. Não há piedade em Terra em transe; há somente nós e nossa insistência em existir, essa força que nenhum presidente é capaz de apagar.

“Quando a alma está cansada, o diabo a leva. Mas tem vezes que o anjo salva”, diz o texto.

***

Sobre os alívios.

A sala especial de Maureen Bisilliat, com suas “iluminuras” de reisados, maracatus, senhoras, cenas nordestinas já cravadas em nosso imaginário. Memória insistente de um povo que resiste; imagens que levaram Ariano Suassuna a escrever um livro nunca publicado em homenagem à fotógrafa, agora no alto de seus 80 e mais anos. A própria mostra é uma prévia d’A laterna de Maurina e as visagens de Quaderna, escrito nos anos 1980 e que deve ser lançado como publicação póstuma do escritor ainda este ano, pela editora Record. Há um trecho numa das paredes da exposição, de onde tiramos a epígrafe deste texto.

Outros alívios. O ensaio de Luiz Braga com Lucas, o menino-lama, corpo de modelo, bailarino da Ilha do Marajó. A série dos ciganos da Bahia, por Márcio Lima. A vida na estrada de Ricardo Teles a encontrar anões de circo e missa rezada em baú de caminhão. Os pulos na água de Rosa Gauditano e Ricardo Sena. Os pássaros de Nayara Jinknss no Mercado Ver-o-Peso, em Belém. As travestis de Celso Brandão. As divas trans de Claudia Guimarães e Ana Carolina Fernandes. O carnaval do Pacotão, por Joaquim Paiva. Os meninos de Tamandaré, por Miguel Chikaoka. As quebradeiras de coco-babaçu de Márcio Vasconcelos. Os corpos esparramados na areia de Celso Oliveira. A ironia dos “Lulinhas” pelados de Luiz Santos.


Travestis no coreto de praça de Pão de Açúcar (AL), em 1999.
Foto: Celso Brandão/Divulgação


Todo alívio, ou êxtase, ou alegria parecem, contudo, incapazes de sustentar o peso da melancolia. Somos um país triste, diz a exposição. Não existe saída nas cidades, ou nos campos. Há – estas, sim – contradições que nos fundamentam, nos unem, nos mantêm de pé. Para Walter Benjamin, mais uma vez, não existe documento da cultura que não contenha a barbárie, o contraste. A suntuosidade e beleza dos prédios romanos se ergueram sob o suor dos escravos. De um lado, esse Carnaval; do outro, a fome total. Um menino brinca com um balão, enquanto um senhor de rua empunha um revólver de brinquedo. Em seguida, o fotógrafo assusta o mendigo que dorme na rua. A sequência de Victor Dragonetti, aliás, tem poder de síntese em Terra em transe.

Para onde olhamos, o olhar é barroco, e barroco além dos anjos esquisitos de Marcelo Reis na Basílica de Salvador, presentes na mostra. Diógenes Moura é mais barroco ainda, a ele interessa o desmantelo das contradições, os excessos, os exageros de um povo capaz de dançar sobre um cadáver, sem metáforas. Um Brasil nascido entre os lapsos civilizacionais; um projeto falido que deu certo.


O êxtase de quem está no mar pela primeira vez. Foto: Celso Oliveira/Divulgação

Não tem Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro que deem conta. Possivelmente, Jessé de Souza ou Guimarães Rosa. Luana Muniz, a Rainha da Lapa, sabe bem. Cercado pela Cracolândia, no centro de São Paulo, o curador vê e quer ser visto. Em contagem regressiva, constrói sua narrativa, cuja estética é a do submundo – ou a do fim-começo de tudo –, numa perspectiva totalmente mediada pela lógica da imagem. É por ela, dentro dela, que percorre suas veredas. E nos leva junto. Segundo ele, Terra em transe não é uma releitura do filme de Glauber Rocha, como poderíamos esperar; é resultado de um livro muito pessoal que o curador, também escritor, acaba de lançar pela Vento Leste, intitulado O livro dos monólogos (recuperação para ouvir objetos). Nas suas palavras, “uma tentativa de aproximar a cidade de seus transeuntes; os dias e as noites; a solidão e o seu contrário; as palavras e os músculos do tempo; a procura e uma resposta que nunca poderá ser encontrada”.

Folheando as páginas dessa coleção de relatos, excertos poéticos sobre ele e sobre nós, entendemos sua missão: viver e pensar com imagens. No recurso da metalinguagem, ancora sua provocação na exposição, cujo mérito é começar pelo Nordeste, esta terra consciente de sua existência, e cuja itinerância torna-se obrigatória a estes tempos de Escola sem Partido.

Às vezes a palavra vence a imagem. Outras, a imagem silencia a palavra. Apenas mais um detalhe e a cidade avançará sobre nós, entre uma coisa e outra, entre prantos e ômegas, a partir de uma voz anônima: “Você pega e joga uns dois litros de Quiboa (água sanitária) no corpo, depois dá um mergulho no mar. Tira todas as bactérias”, anuncia o vendedor de controles remotos em frente à galeria onde fica a primeira escada rolante da cidade. (O livro dos monólogos)

***

Sobre as imagens.

Se passamos tanto tempo da vida aprendendo a usar números e letras, por que achamos “fácil” lidar com imagens, essas que são a principal forma de mediação destes tempos? Um questionamento trazido por participantes da primeira edição do Fotofestival Solar, em dezembro, de onde surgiram exposições como Terra em transe e outras quatro (Miragem, Vento solar, Sobre a cor da sua pele e Sueño de la razón), em cartaz também, até março, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Tanto essas quanto a retrospectiva da fotógrafa Claudia Andujar no IMS-Paulista, em São Paulo, são complementares ao entendimento de nosso tempo, deste 2019 que se anuncia no Brasil. Antes da universidade, da escola, da livraria, da internet, do cinema, da praia, do samba ou das compras em liquidação, vamos já para o museu.


Igreja de um distrito de Mariana (MG) após o rompimento da barragem.
Foto: Avener Prado/Divulgação



Incêndio no Museu Nacional, em setembro de 2018, no Rio de Janeiro. Foto: Uanderson Fernandes/Divulgação

OLÍVIA MINDÊLO, editora da Continente Online, com mestrado em Sociologia e incursões na curadoria e na crítica de arte.

*A jornalista viajou a Fortaleza a convite do Fotofestival Solar.

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